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Direito e Ciência na Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen

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01/02/2002 às 01:00
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RESUMO

A ousadia da Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen, desqualificando a importância do jusnaturalismo como teoria válida para o Direito e pretendendo dar caráter definitivo ao monismo jurídico estatal, fez dele o alvo preferido das teorias críticas no Direito, inconformadas com os déficits éticos do pensamento jurídico assim purificado e com o consequente desinteresse dos juristas em realizar cientificamente um Direito atrelado a critérios de legitimidade não apenas formais. Ocorre que, atuando no marco do paradigma positivista, não poderia ser diferente o projeto kelseneano: uma ciência das normas que atingisse seus objetivos epistemológicos de neutralidade e objetividade. Era preciso expulsar do ambiente científico os juízos de valor, aliás como já o haviam feito as demais disciplinas científicas. O plano da Teoria Pura era, assim, atingir a autonomia disciplinar para a ciência jurídica. Essa é a grande importância de seu pensamento, isto é, o seu caráter paradigmático. E se de fato estamos vivendo um novo momento de transição paradigmática, nada melhor do que bem compreender as bases desse paradigma que se transforma. Esse é o objetivo deste texto e para tanto, iremos analisar a formulação de Kelsen, na Teoria Pura, da relação entre ciência e direito, procurando, a partir de uma perspectiva crítica ao positivismo que a caracteriza, vislumbrar, ao final, as limitações dessa formulação, com apoio do que denominei aqui de o viés hermenêutico.


DIREITO E CIÊNCIA NA TEORIA PURA DO DIREITO DE HANS KELSEN

Uma Leitura Crítica

No início do século XX, Hans Kelsen apresenta, na sua obra Teoria Pura do Direito, uma concepção de ciência jurídica com a qual se pretendia finalmente ter alcançado, no Direito, os ideais de toda a ciência: objetividade e exatidão. É com esses termos que o autor apresenta a primeira edição de sua obra mais conhecida. Para alcançar tais objetivos, Kelsen propõe uma depuração do objeto da ciência jurídica, como medida, inclusive, de garantir autonomia científica para a disciplina jurídica, que, segundo ele, vinha sendo deturpada pelos estudos sociológicos, políticos, psicológicos, filosóficos etc.[1]

A ousadia do pensamento kelseneano, desqualificando a importância do jusnaturalismo como teoria válida para o direito e pretendendo dar caráter definitivo ao monismo jurídico estatal, fez de Kelsen o alvo preferido das teorias críticas no Direito, inconformadas com os déficits éticos do pensamento jurídico assim purificado e com o consequente desinteresse dos juristas em realizar cientificamente um direito atrelado a critérios de legitimidade não apenas formais.

Ocorre que, atuando no marco do paradigma positivista, não poderia ser diferente o projeto kelseneano: uma ciência das normas que atingisse seus objetivos epistemológicos de neutralidade e objetividade. Era preciso expulsar do ambiente científico os juízos de valor, aliás como já o haviam feito as demais disciplinas científicas. O plano da teoria Pura era, assim, atingir a autonomia disciplinar para a ciência jurídica.[2] Creio, por isso, que essa é a grande importância de seu pensamento, isto é, o seu caráter paradigmático. E se de fato estamos vivendo um novo momento de transição paradigmática, nada melhor do que bem compreender as bases desse paradigma que se transforma. Esse é o objetivo deste texto e para tanto, iremos analisar a formulação de Kelsen, na Teoria Pura, da relação entre ciência e direito, procurando, a partir de uma perspectiva crítica ao positivismo que a caracteriza, vislumbrar as limitações dessa formulação.


NORMAS E PROPOSIÇÕES JURÍDICAS

A relação entre direito e ciência na Teoria Pura do Direito de Kelsen começa pela definição do objeto da ciência do direito, que para ele é constituído em primeiro lugar pelas normas jurídicas e mediatamente pelo conteúdo dessas normas, ou seja, pela conduta humana regulada por estas. Assim, enquanto se estudam as normas reguladoras da conduta, o Direito como um sistema de normas em vigor, fica-se no campo de uma teoria estática do Direito. Por outro lado, se o objeto do estudo desloca-se para a conduta humana regulada (atos de produção, aplicação ou observância determinados por normas jurídicas), o processo jurídico em seu movimento de criação e aplicação, realiza-se o que ele chama de teoria dinâmica do Direito. Esse dualismo, entretanto, é apenas aparente, já que a dinâmica está subordinada à estática por uma relação de validade formal, pois os atos da conduta humana que desencadeiam o movimento do Direito são eles próprios conteúdo de normas jurídicas, e só nesta medida é que interessam para o estudo da ciência jurídica.

Kelsen apresenta o ordenamento jurídico positivo - conjunto das normas válidas - como uma pirâmide de normas, onde se articulam o aspecto estático e o aspecto dinâmico do Direito. A noção de validade formal é o elemento que integra esses dois aspectos, pois, nesse arranjo, cada norma retira de uma outra que lhe é superior, na escala hierárquica do ordenamento jurídico, a sua existência e validade. Assim, por exemplo, no momento em que é criada ou aplicada (dinâmica), para que seja considerada válida a norma, é preciso verificar se as condições de sua produção ou aplicação (capacidade e/ou competência dos agentes, além do procedimento de produção e aplicação) estão previamente contidos nos comandos de outras normas já produzidas e integrantes do ordenamento jurídico (estática). O ponto final dessa cadeia de validade é o que Kelsen chama de norma fundamental - pressuposto lógico do sistema normativo. As considerações acerca desse tema demandariam um outro esforço reflexivo que escapa aos objetivos do presente artigo.[3]

Segundo Kelsen, a ciência jurídica representa uma interpretação normativa dos fatos: "Descreve as normas jurídicas produzidas através de atos de conduta humana e que hão-de ser aplicadas e observadas também por atos de conduta e, consequentemente, descreve as relações constituídas, através dessas normas, entre os fatos por elas determinados"[4]. A diferença conceitual entre proposições jurídicas da ciência, que são os juízos hipotéticos que enunciam que, de acordo com o ordenamento, sob certas circunstâncias ali previstas, devem ocorrer certas conseqüências também previstas por este ordenamento e normas jurídicas, que não são juízos acerca de uma realidade externa, mas sim mandamentos que encerram comandos, permissões e atribuições de poder ou de competência é então estabelecida pelas funções: descritiva, da ciência e prescritiva, do Direito. É que, para Kelsen, a ciência não produz direito, não possui essa função criadora, pois limitada ao papel de conhecimento do direito produzido pela autoridade jurídica, isto é, por aquele a quem o ordenamento atribui capacidade ou competência para produzir normas jurídicas, na relação entre estática e dinâmica do Direito, que aprendemos como a teoria dogmática das fontes do Direito.

Essa distinção entre ciência jurídica e Direito, Kelsen a situa no plano da validade formal, afastando do campo do Direito as questões relativas à veracidade ou falsidade de seus imperativos de conduta:

"A distinção revela-se no fato de que as proposições normativas formuladas pela ciência jurídica, que descrevem o Direito e que não atribuem a ninguém quaisquer deveres ou direitos, poderem ser verídicas ou inverídicas, ao passo que as normas de dever-ser, estabelecidas pela autoridade jurídica - e que atribuem deveres e direitos aos sujeitos jurídicos - não são verídicas ou inverídicas, mas válidas ou inválidas, tal como também os fatos da ordem do ser não são quer verídicos, quer inverídicos, mas apenas existem ou não existem, somente as afirmações sobre esses fatos podendo ser verídicas ou inverídicas." [5]

Ao realizar esse deslocamento, Kelsen atrai para as proposições da ciência jurídica a aplicação dos princípios lógicos (da não-contradição, p. ex.), uma vez que não sendo as normas jurídicas passíveis de comprovação de sua verdade ou falsidade, não se poderia colocar diretamente relacionado a elas o problema do conflito ontológico entre prescrições. É a ciência que se encarrega de resolver os problemas, o que lhe garante dignidade ou utilidade prática, caso contrário, poder-se-ia atribuir-lhe um caráter supérfluo de mera repetidora daqueles preceitos normativos.


CAUSALIDADE (SER) E IMPUTAÇÃO (DEVER-SER)

Na modernidade, a ciência, impulsionada pelo racionalismo e pelo empirismo, pretendeu ter emancipado o conhecimento "verdadeiro" acerca dos fatos naturais e sociais das amarras e preconceitos místicos que caracterizavam o saber antigo. Para tanto, invertendo a ordem do conhecimento estabelecido, que buscava a solução para os problemas nas verdades absolutas e nos argumentos de autoridade, voltou sua atenção para os próprios fenômenos, no sentido de identificar e descrever, em meio ao aparente caos dos fatos, as regularidades, isto é, a verdadeira ordem das coisas. Sua principal arma metodológica foi a aplicação do método indutivo para a elaboração de proposições (leis e teorias) científicas fundadas no pressuposto de que a natureza possui uma ordem que pode ser descrita em linguagem matemática. O princípio explicativo dessa ordem natural passa a ser o princípio da causalidade, que se presta apenas à descrição isenta, imparcial, de como as coisas realmente são, de como, sob certas circunstâncias, determinado fato como causa será responsável (inexoravelmente, para uns, ou estatisticamente, para outros) pela ocorrência de um outro determinado fato, como seu efeito. Em tal concepção, não há espaço para perguntas do tipo teleológicas, finalísticas. Essa revolução no conhecimento, promovida pelo paradigma científico, foi assim explicada por Rubem Alves, no seu Filosofia da Ciência, que me permito transcrever, pelo refinamento crítico e implicitamente irônico de seu texto:

"Explicar alguma coisa em função da pergunta para quê? é compreendê-la em função de seus propósitos, objetivos, finalidades. (...) Se o que fazemos se explica teleologicamente, não se deverá concluir que a grande obra da divindade, o universo, deve se explicar em função de seu propósito? É claro. Se se admite que a natureza é um produto da ação criadora de Deus, a expressão mais alta da sabedoria é ter consciências dos propósitos do Criador. E foi assim que as perguntas teleológicas foram feitas à natureza e as respostas obtidas serviram para dar sentido à vida das pessoas. Só havia um pequeno problema com elas: belas esteticamente, fascinantes psicologicamente, mas irremediavelmente à mercê das idiossincrasias da subjetividade. Elas não podiam ser testadas e corrigidas.

‘O livro da natureza está escrito em caracteres matemáticos’ (Galileu, Il Saggiatore). De fato, momento crucial na história da ciência. Mais do que isso: declaração subversiva, digna da inquisição. Que afirmava Galileu? Que o universo não tem um sentido humano. Por meio dessa afirmação, ele arranca a natureza do quadro quente e amigo marcado pelo amor e pela sabedoria divina, e a coloca num mundo frio em que dominam as relações entre os números. No mundo dos números não se pode mais fazer a pergunta acerca da finalidade do universo."[6]

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De volta à Teoria Pura, segundo Kelsen, o que se denomina princípio da imputação (responsabilização) tem, nas proposições jurídicas, função análoga à do princípio da causalidade em relação às leis naturais. Tal qual uma lei natural, também uma proposição da ciência jurídica liga entre si dois elementos: se "A" é, "B" é (causalidade); se "A" é, "B" deve ser (imputação). A diferença consiste, no entanto, no fato de que, na proposição da ciência jurídica, a ligação entre os elementos fáticos (conduta como pressuposto e conseqüência punitiva, permissiva ou autorizativa, como resultado) é produzida por uma norma jurídica, isto é, por um ato de vontade autorizado.[7] A norma jurídica, assim como qualquer norma, não tem a finalidade de descrever os fatos sociais, no caso, as condutas humanas, pelo contrário, ela representa uma interferência na ordem natural ou social desses fatos, qualificando imperativamente as condutas a que se refere (atribuindo responsabilidades, conferindo poderes, ou interditando condutas). Mesmo assim, tais relações jurídicas, uma vez constituídas por essa imperatividade formalmente autorizada, devem ser apenas descritas pelo cientista, na medida em que compõe uma relação de imputabilidade.[8] O conteúdo das normas (fatos e valores) deve permanecer intocado.

Criticam-se, assim, por inviabilidade científica, as proposições de uma teoria metafísica do Direito e afirma também o autor que, limitada às descrições normativas, à ciência jurídica também não cabe investigar a eficácia da norma - saber se esta é ou não vivenciada como regra social -, pois aí estaria forçada a emitir juízos da ordem do ser, juízos sobre a realidade. Assim, segundo ele, não cabe à ciência jurídica dizer se uma norma é ou não justa, ou se é ou não obedecida, mas sim se é válida formalmente, se tem vigência.

Kelsen ressalva, ou alerta, que embora se utilize da expressão dever-ser, o sentido dessa expressão traz na proposição da ciência jurídica um caráter meramente descritivo, ainda que o objeto dessa descrição - a norma jurídica - não seja um fato da ordem do ser, mas também um dever-ser. O jurista científico - afirma - apenas descreve o Direito; assim como o físico em relação ao seu objeto, ele apenas afirma a ligação entre dois fatos. E mesmo considerando que o objeto da ciência jurídica seja constituído pelas normas e, portanto, pelos valores ali inscritos, as proposições científicas, assim como as leis naturais - enfatiza Kelsen - são uma descrição alheia a valores.

Ainda raciocinando analogicamente, Kelsen compara as leis naturais, elaboradas pela Física, enquanto descrição da ordem natural (ser), com as proposições descritivas da ordem jurídica, produzidas pela ciência jurídica, que ele então denomina leis jurídicas, que não são propriamente as normas jurídica (dever-ser), mas apenas a sua descrição científica.

Esse jogo de espelhos entre o Direito (objeto) e a ciência jurídica (sujeito), que resulta da formulação positivista de Kelsen, é de fato fonte de muita confusão. Há momentos, durante a leitura, em que não se sabe bem de que lado está o quê, principalmente quando Kelsen recorre à analogia com as ciências naturais para justificar as funções que reputa idênticas àquelas da ciência jurídica, ou seja, a descrição de seus respectivos objetos de conhecimento: os fatos da ordem natural (ser) e as normas jurídicas (dever-ser): nesse momento a norma jurídica equipara-se a um objeto reificado, uma coisa a ser descrita, um dever-ser-que-é válido formalmente - ressalte-se. Mas aqui reside a primeira confusão, pois para ele, embora sejam realidades ontologicamente diversas, prestam-se ao mesmo tipo de apreensão cognitiva, isto é, podem ser descritas pelo conhecimento científico, desde que, entretanto, sejam aplicados princípios explicativos diferentes: causalidade e imputação. Portanto, são ciências diferentes, peculiares, mas comungam da mesma metodologia positivista. Diz Kelsen:

"Assim como a lei natural é uma afirmação ou enunciado descritivo da natureza, e não o objeto a descrever, assim também a lei jurídica é um enunciado ou afirmação descritiva do Direito, a saber, da proposição jurídica formulada pela ciência do Direito, e não o objeto a descrever, isto é o Direito, a norma jurídica. Esta - se bem que quando tem caráter geral seja designada como ‘lei’ - não é uma lei, não é algo que, por qualquer espécie de analogia com a lei natural, possa ser designado como ‘lei’. Ela não é, com efeito, um enunciado pelo qual se descreve uma ligação de fatos, uma conexão funcional. Não é sequer um enunciado, mas o sentido de um ato com o qual se prescreve algo e, assim, se cria a ligação entre fatos, a conexão funcional que é descrita pela proposição jurídica, como lei jurídica."[9]

A meu ver, o problema dessa epistemologia positivista, que, num esforço de abstração, produz a sua dicotomia central entre o que é Direito (norma) e o que é Ciência (proposição ou lei jurídica), é não considerar preliminarmente que, diferentemente da descrição da ordem natural, que se faz em linguagem matemática, a descrição jurídica, embora aspire ao rigor matemático e sistêmico, se faz na mesma linguagem natural (comum) e, portanto, imprecisa com a qual se produz o seu objeto, as normas jurídicas (gerais e individuais, conforme a competência ou a capacidade do agente produtor). Além disso, é mais ou menos certo que, na descrição da natureza, a causalidade ocorra indepentemente do cientista, mas na "descrição" (compreensão) da normatividade válida formalmente, o jurista, em razão da necessária interpretação que realiza, não raramente recompõe a imputação.

Na verdade, essa aproximação epistemológica com as ciências naturais, construídas dentro do paradigma positivista da separação total entre sujeito e objeto, é bastante conveniente aos pressupostos da Teoria Pura, não obstante me parece ser esse o ponto mais contraditório desse arranjo. É conveniente porque ao estabelecer a equivalência entre os enunciados das ciências naturais (leis naturais causais) e as proposições tidas por meramente descritivas da ciência jurídica (leis jurídicas imputativas), Kelsen pretende ter resolvido o problema das valorações éticas do ordenamento, afirmando serem estas questões metajurídicas. Visto assim, o Direito, o ordenamento jurídico, analogicamente, seria como o sistema planetário, pronto para ser descrito objetivamente, desde que o cientista saiba manejar um outro princípio explicativo diferente do princípio da causalidade, o princípio da imputabilidade. Mas não estaria então a Teoria Pura correndo o risco de desaguar, nessa transposição do mundo natural para o mundo jurídico, ainda que por caminhos opostos, no mesmo universo abstrato dos jusnaturalistas e sua representação idealizada - pois referida a valores universais e imutáveis - da ordem social?

Ocorre que, havendo coincidência do veículo lingüístico pelo qual se manifestam tanto a ciência quanto o seu objeto - a norma - já de saída torna-se muito difícil acreditar que ambos irão se comportar sempre de maneira tão exemplar como, por exemplo, o físico Kepler e a órbita do planeta Marte: o objeto ali, existindo (o Direito como dever-ser, ressalte-se) e o sujeito aqui, descrevendo. Não parece suficiente, portanto, para sustentar-se essa cisão perfeita, no terreno jurídico, o recurso ao princípio da imputabilidade, pois sendo diferente a natureza do objeto jurídico - prescrição normativa, dever-ser - a contaminação de ambos - sujeito e objeto - parece ainda mais inevitável, pelo menos diante dos chamados hard cases.

Um relevante desdobramento da formulação kelseneana é assim procurar desviar do Direito para a sua ciência as questões - tão caras aos cientistas naturais - relativas ao controle de seus postulados, a partir de critérios de verdade e de falsidade, de identidade e de não-contradição. E aqui transparece mais uma vez a crença do autor na pureza de seu objeto, a norma jurídica formalmente válida, nada podendo ser dito acerca de sua verdade ou falsidade - que no direito seria a compatibilidade dessa normatividade com critérios valorativos -, pois este é exatamente o ônus suportado pela ciência jurídica, eu diria, esta é, afinal, sua dignidade.

Visto de uma outra forma, portanto, mesmo no marco da teoria pura, o papel da ciência jurídica até então passivo e descritivo revela-se muito mais justificador do que se imagina. É que se as proposições da ciência estão sujeitas à verificação de sua verdade ou falsidade, quando afirmam a validade ou invalidade de uma norma, ainda que esse exame se pretenda estritamente formal, a resposta daí resultante poderá ser aplicada ainda que indiretamente, à própria norma. A esse respeito discorre o chileno Oscar Sarlo:

"...de tal manera, la ciencia jurídica será el conjunto sistemático de proposiciones acerca de normas, esto es, proposiciones que afirmam la validez de las normas que integran un sistema jurídico, y por tanto son susceptibles de los valores de verdad/fasedad. Mediante la crucial distinción - antes no tenida en cuenta por los juristas - entre discurso normativo de la autoridad y el discurso descriptivo de los juristas, Kelsen logra aplicar el control racional sobre la ciencia jurídica, e idirectamente, a los propios enunciados normativos"[10]

Essa observação parece indicar que mesmo toda a preocupação com a pureza não livra Kelsen do envolvimento de sua concepção de ciência com o mundo essencialmente político da produção de normas, ainda que ele ressalve que a autoridade criadora, seja o juiz ou o legislador, deve conhecer o Direito, valendo-se, pois, do trabalho do jurista científico, apenas como uma etapa preliminar de seu processo criativo, ou melhor, decisório.

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Sobre o autor
Mauro Almeida Noleto

mestre em Direito pela Universidade de Brasília, professor de Direito do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB) e do Instituto de Ensino Superior de Brasília (IESB)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NOLETO, Mauro Almeida. Direito e Ciência na Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 54, 1 fev. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2644. Acesso em: 29 mar. 2024.

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