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A (im)prescindibilidade do inquérito policial

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21/06/2014 às 16:22
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Apesar de doutrina tradicional não reconhecer a relevância do inquérito policial, é inquestionável a importância desse instrumento integrante da estrutura da persecução penal, que consiste num procedimento investigatório imparcial que reproduz, com fidelidade, a realidade fática do ato investigado e suas circunstâncias.

1 INTRODUÇÃO

A prescindibilidade do inquérito policial é um tema polêmico, que traz bastantes discussões e que ostenta duas correntes predominantes. De um lado, encontramos uma corrente que defende a eliminação do inquérito e do outro, uma que advoga por sua manutenção.

A finalidade do inquérito policial é a realização de diligências para apurar uma infração penal e sua respectiva autoria. Por isso, se ao final dele houver provas suficientes de autoria e materialidade, o titular da ação penal poderá ingressar em juízo. Assim, o instituto poderá servir de sustentáculo para a propositura da competente ação penal.

O inquérito policial, com esse nomen iuris[1] e características fundamentais próprias, originou-se, no direito brasileiro, com a promulgação do Decreto nº 4.824, de 22 de novembro de 1871, que regulamentou a Lei nº 2.033, de 20 de setembro do mesmo ano. Portanto, há quase um século e meio, o inquérito policial é instrumento oficial de persecutio criminis extra-juditio[2] [3].

Embora há tempos tentem eliminar o inquérito policial, ele persistiu após as várias tentativas de sua expurgação do ordenamento jurídico. Contrariando essas tentativas, ele foi mantido, ampliado e valorizado, deixando de ser uma peça meramente informativa, para se tornar alicerce da futura ação penal.

Tal afirmação sucede porque, por volta dos anos 1940, quando da unificação dos Códigos de Processo Penal, o legislador optou pela manutenção do inquérito policial, por conta da vastidão territorial do país. Na ocasião, advogou-se pelo Juízo de Instrução, sistema no qual a prova é recolhida pelo próprio juiz, ficando a investigação, praticamente, a seu cargo. Todavia, tal ideal não foi posto em prática[4]

Apesar da grande importância do inquérito, a proposta de sua eliminação ganhou adeptos em vários pontos do país, dentre membros da magistratura e do Ministério Público, reforçando a posição de que o inquérito policial é dispensável. Em contrapartida, tal proposta ganhou também opositores, que advogam pela manutenção do inquérito policial, uma vez que acreditam na indispensabilidade desse instrumento, que vige no país há quase 150 anos e que tem por finalidade servir de base e sustentação para a ação penal a ser promovida pelo Ministério Público, bem como fornecer elementos probatórios ao juiz.

Muito se fala da eliminação do inquérito policial, no entanto, os defensores de tal causa, a priori, não lançam argumentos e propostas concretas que demonstrem como ficaria a ação penal sem ele. Deve-se ressaltar ainda que, apesar de ser antigo e necessitar de certas inovações, esse instituto deve resistir no ordenamento jurídico atual, visto que serve como supedâneo a enfeixar as provas que são produzidas, funcionando como um verdadeiro filtro processual, a fim de evitar que acusações infundadas cheguem até a fase processual. Por isso, quando do recolhimento de provas suficientes, o inquérito justificará o próprio processo[5].

Diante do exposto, a pesquisa que fundamenta este trabalho monográfico se propõe a elucidar a importância do inquérito policial, centralizando-se nas seguintes questões de pesquisa: a) Qual a importância do inquérito policial para o Estado Democrático de Direito? b) Qual a importância do inquérito policial para a deflagração da ação penal? c) Seria possível o promotor de justiça assumir a postura de órgão investigatório? d) Seria válida a tentativa de eliminar o inquérito policial do ordenamento jurídico brasileiro?

A partir das questões que norteiam a pesquisa realizada, o objetivo geral desta monografia é analisar o instituto do inquérito policial no direito brasileiro, enaltecendo sua importância. Entre os objetivos específicos, a pesquisa preocupa-se em conceituar o inquérito, identificar a sua natureza jurídica, os seus destinatários e a sua finalidade, enumerar suas principais características, discutir acerca do porquê de tantos doutrinadores defenderem a sua dispensabilidade, questionar a possibilidade de o Órgão Ministerial assumir a presidência do inquérito policial e retorquir sua dispensabilidade no direito pátrio.

A doutrina define o inquérito como sendo uma peça meramente informativa, destinada à apuração de uma infração penal e de sua autoria. Não há grandes aprofundamentos a respeito desse tema, o que existe, no geral, são apenas lições superficiais, como se esse instituto não fosse detentor de relevância.

Isto ocorre porque os doutrinadores fazem uso apenas da interpretação literal dos artigos destinados ao inquérito, prendendo-se a uma visão tecnicista e esquecendo-se de que quase a totalidade das ações penais em curso ou já transitadas em julgado foram precedidas de um inquérito policial. Ademais, é importante lembrar também que todas as provas produzidas dentro desse importante procedimento investigativo, são, na maioria das vezes, apenas repetidas em juízo.

Tendo por base os esclarecimentos trazidos alhures, esta pesquisa propõe-se como uma importante oportunidade de quebrar paradigmas e fomentar as reflexões acerca da importância do inquérito policial. Por outro lado, nela, analisar-se-á a importância desse instituto investigando, assim, o seu papel na efetivação do princípio do devido processo legal como garantia de direitos fundamentais.

Para concretização deste trabalho monográfico, realizou-se um estudo de natureza qualitativa, por meio da utilização de pesquisa exploratória e bibliográfica. A pesquisa qualitativa se caracteriza pela obtenção de dados descritivos que são analisados indutivamente, havendo a interpretação dos fenômenos e a atribuição de significados[6].

Ao contrário do que ocorre na pesquisa quantitativa, na qualitativa, não há a obrigatoriedade de formulação de hipóteses, nem a exigência de dados numéricos para especificar ou mensurar o objeto em análise, pois seu foco não é a quantificação, mas a interpretação dos fenômenos e a atribuição de significados[7].

A pesquisa exploratória tem como objetivo proporcionar maior familiaridade com o problema com vistas a torná-lo mais explícito[8]. Já a pesquisa bibliográfica é a desenvolvida a partir de referências teóricas publicadas por autores a respeito de determinado assunto[9]. No caso deste trabalho, recorreu-se às seguintes fontes bibliográficas: Constituição Federal, lei, doutrina, princípios e artigos publicados na internet.

A partir da pesquisa bibliográfica, que abrange a análise da literatura selecionada, estruturar-se-á esta monografia em quatro partes. Além desta introdução, inicialmente aborda-se, no primeiro capítulo, o conceito, a natureza jurídica, os destinatários, a finalidade e as características do inquérito policial. A abordagem sobre a imprescindibilidade do inquérito dar-se-á no segundo capítulo, que compõe a terceira parte deste trabalho monográfico. Ao final, encontram-se as conclusões, seguidas das referências.


2 INQUÉRITO POLICIAL: CONCEITO, NATUREZA JURÍDICA, DESTINATÁRIOS, FINALIDADE E CARACTERÍSTICAS

2.1 Conceito

A doutrina processual penal apresenta uma vasta conceituação sobre o inquérito policial.

Tourinho Filho assim o define: “O inquérito é o conjunto de diligências realizadas pela Polícia Civil ou Judiciária (como denomina o CPP), visando elucidar as infrações penais e sua autoria”[10].

Para Júlio Fabbrini Mirabete:

Inquérito policial é todo o procedimento policial destinado a reunir os elementos necessários à apuração da prática de uma infração penal e de sua autoria. Trata-se de uma instrução provisória, preparatória, informativa, em que se colhem elementos por vezes difíceis de obter na instrução judiciária, como auto de flagrante, exames periciais, etc.[11]

Já Fernando Capez conceitua:

É o conjunto de diligências realizadas pela polícia judiciária para a apuração de uma infração penal e de sua autoria, a fim de que o titular da ação penal possa ingressar em juízo (CPP, art. 4º). Trata-se de procedimento persecutório de caráter administrativo instaurado pela autoridade policial.[12]

Paulo Rangel preconiza:

Inquérito policial, assim, é um conjunto de atos praticados pela função executiva do Estado com o escopo de apurar a autoria e a materialidade (nos crimes que deixam vestígios – delicta facti permanentis) de uma infração penal, dando ao Ministèrio Público elementos necessários que viabilizem o exercício da ação penal.[13]

Vicente Greco Filho sustenta: “O inquérito policial é uma peça escrita, preparatória da ação penal, de natureza inquisitiva”[14].

Nos dizeres de Guilherme de Souza Nucci:

[...] trata-se de um procedimento preparatório da ação penal, de caráter administrativo, conduzido pela polícia judiciária e voltado à colheita preliminar de provas para apurar a prática de uma infração penal e sua autoria.[15]

Nestor Távora e Rosmar Rodrigues apresentam uma definição mais completa, afirmando que o inquérito policial vem a ser:

[...] o procedimento administrativo, preliminar, presidido pelo delegado de polícia, no intuito de identificar o autor do ilícito e os elementos que atestem a sua materialidade (existência), contribuindo para a formação da opinião delitiva do titular da ação penal, ou seja, fornecendo elementos para convencer o titular da ação penal se o processo deve ou não ser deflagrado.[16]

Resumindo tais definições, pode-se afirmar que o inquérito é um procedimento persecutório, de natureza inquisitiva, de caráter administrativo, que constitui instrução provisória, preparatória e informativa, em que há a coleta de provas (que por vezes são difíceis de obter na instrução judiciária). Ele é presidido pela autoridade policial, objetivando apurar a autoria e a materialidade de um crime não transeunte, que, se constatadas, servirão como supedâneo da ação penal.

Assim sendo, o inquérito, é a documentação das diligências realizadas pela Polícia Judiciária, integrando instrumento formal das investigações.

2.2 Natureza Jurídica

Paulo Rangel afirma que a natureza jurídica do inquérito:

É de um procedimento administrativo de índole meramente administrativa, de caráter informativo, preparatório da ação penal.

O inquérito é um instituto que deve ser estudado à luz do direito administrativo, porém, dentro do direito processual penal, já que são tomadas medidas de coerção pessoal e real contra o indiciado, necessitando, neste caso, de intervenção do Estado-juiz.[17]

O inquérito policial é um procedimento de índole eminentemente administrativa, de caráter informativo e preparatório da ação penal, sendo regido pelas regras do ato administrativo em geral[18]. Tendo em vista que ele não visa diretamente à punição, mas ao esclarecimento da ocorrência delituosa e à identificação do autor, pode-se afirmar que não se trata de um processo, mas de um procedimento administrativo, uma vez que o inquérito não constitui relação trilateral, já que o investigado não é parte do procedimento, pois este se desenvolve unilateralmente.

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Destarte, tratando-se de um procedimento com o escopo de apurar a prática de um fato, em tese, tido como infração penal, não há que se falar na aplicação do princípio do contraditório durante o inquérito. Isso, porque o indiciado não é acusado de nada, ele é apenas objeto de investigação. O contraditório, portanto, somente poderá ter aplicabilidade durante o exercício da função jurisdicional, e não da função executiva.

Nesse sentido, acentua Frederico Marques: “um procedimento policial de investigação, com o contraditório, seria verdadeira aberração, pois inutilizaria todo o esforço investigatório que a polícia deve realizar para a preparação da ação penal”[19].

Assim, a inquisitoriedade possibilita a agilidade nas investigações, proporcionando que delegado de polícia atue com maior eficiência.

2.3 Destinatários

Conforme a Constituição Federal[20], no seu art. 129, I, o inquérito policial tem como destinatário imediato o Ministério Público (titular exclusivo da ação penal pública, no caso de crime que se apura mediante ação penal pública) ou o ofendido (titular da ação penal privada, na hipótese de ação penal privada) e como destinatário mediato, o juiz, que se utilizará dos elementos de informação nele constantes, para o recebimento da peça inicial e para a formação do seu convencimento quanto à necessidade de decretação de medidas cautelares.[21]

2.4 Finalidade

Examinando os artigos 4º e 12 do Código de Processo Penal, observa-se que o inquérito se destina à apuração da existência de uma infração penal e da sua respectiva autoria, almejando, dessa forma, que o titular da ação penal disponha de elementos que o autorizem promovê-la.

Fernando Capez ensina que a “finalidade do inquérito policial é a apuração de fato que configure infração penal e a respectiva autoria para servir de base à ação penal ou às providências cautelares”[22]. Nesse sentido, a finalidade investigatória do inquérito cumpre dois objetivos: fornecer elementos para a formação da opinio delicti[23] do órgão acusador, isto é, convencer o Ministério Público ou o querelante de que há prova suficiente do crime e de sua autoria, e dar embasamento probatório suficiente para que a ação penal tenha justa causa[24].[25]

Tourinho Filho leciona que:

[...] Apurar a infração penal é colher informações a respeito do fato criminoso. Para tanto, a Polícia Civil desenvolve laboriosa atividade, ouvindo testemunhas, tomando declarações da vítima, procedendo a exames periciais, nomeadamente os de corpo de delito, exames de instrumento do crime, determinando buscas e apreensões, acareações, reconhecimentos, ouvindo o indiciado, colhendo informações sobre todas as circunstâncias que circunvolveram o fato tido como delituoso, buscando tudo, enfim, que possa influir no esclarecimento do fato. Apurar a autoria significa que a Autoridade Policial deve desenvolver a necessária atividade visando a descobrir, conhecer o verdadeiro autor do fato infringente da norma[26]

Guilherme de Souza Nucci afirma que:

Sua finalidade é a investigação do crime e a descoberta do seu autor, com o fito de fornecer elementos para o titular da ação penal promovê-la em juízo, seja ele o Ministério Público, seja o particular, conforme o caso.[27]

Assim sendo, a finalidade do inquérito policial é apurar a infração penal e a sua respectiva autoria, informando ao juiz sobre o que foi apurado, fornecendo ao magistrado todas as informações necessárias, sendo que o Ministério Público se utilizará dessas informações para oferecer a denúncia ou requerer o arquivamento dos autos.

2.5 Características

2.5.1 Procedimento escrito

Tendo em vista as finalidades do inquérito, não se concebe a existência de uma investigação meramente verbal, visto que a adoção da forma escrita constitui uma garantia do próprio investigado. Acerca disso, dispõe o artigo 9º do Código do Processo Penal que “todas as peças do inquérito policial serão, num só processado, reduzidas a escrito ou datilografadas e, neste caso, rubricadas pela autoridade”[28].

Embora o inquérito não esteja sujeito a formas indeclináveis, como pode servir de base para a comprovação da materialidade do delito e para a decretação da prisão preventiva, etc., exige-se um rigor formal da peça investigatória nas hipóteses, como, por exemplo, no caso do interrogatório da prisão em flagrante, descrito no artigo 304 e seguintes do Código de Processo Penal. Nada impede, todavia, que outras formas de documentação sejam utilizadas de modo a imprimir maior fidelidade ao ato, funcionando de maneira complementar.

2.5.2 Sigiloso

O artigo 20 do CPP preconiza que: “A autoridade assegurará, no inquérito, o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade”[29]. Como salienta o próprio texto normativo, por causa de imperativos ditados pela segurança da sociedade e do Estado, o direito genérico de obter informações dos órgãos públicos, assegurado pelo art. 5º, XXXIII, da Constituição Federal, pode sofrer limitações. Nesse esteio, ao contrário do que ocorre com o processo, o inquérito não comporta publicidade, devendo, portanto, ser sigiloso em sua essência.

Nestor Távora e Rosmar Rodrigues ensinam:

O sigilo do inquérito é estritamente necessário ao êxito das investigações e à preservação da figura do indiciado, evitando-se um desgaste daquele que é presumivelmente inocente. Objetiva-se assim o sigilo aos terceiros estranhos à persecução penal e principalmente à imprensa, no intuito de serem evitadas condenações sumárias pela opinião pública, com a publicação de informações prelibatórias, que muitas vezes não se sustentam na fase processual.[30]

Destaca-se que esse sigilo não se estende ao magistrado, nem ao membro do Ministério Público. Deve-se diferenciar, ainda, o sigilo externo das investigações, que é aquele imposto para evitar a divulgação de informações essenciais do inquérito ao público em geral por intermédio do sistema midiático, do sigilo interno, que é aquele imposto para restringir o acesso aos autos do procedimento por parte do indiciado e/ou do seu advogado.

De acordo com o artigo 7º, XIII a XV e o seu § 1º, da Lei nº 8.906/1994 (Estatuto da OAB), o advogado pode consultar os autos do inquérito policial:

Art. 7º São direitos do advogado:

[...]

XIII - examinar, em qualquer órgão dos Poderes Judiciário e Legislativo, ou da Administração Pública em geral, autos de processos findos ou em andamento, mesmo sem procuração, quando não estejam sujeitos a sigilo, assegurada a obtenção de cópias, podendo tomar apontamentos;

XIV - examinar em qualquer repartição policial, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de inquérito, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos;

 XV - ter vista dos processos judiciais ou administrativos de qualquer natureza, em cartório ou na repartição competente, ou retirá-los pelos prazos legais [...].

Malgrado haver esse permissivo legal sustentado o acesso aos autos do inquérito ao advogado, havia posições de magistrados sustentando o sigilo absoluto do inquérito policial.

Tourinho Filho explica que:

A investigação sem sigilo é fogo que não arde. Sem embargo disso, o Estatuto da Advocacia (Lei nº 8.906/94) dispõe, no seu art. 7º, serem direitos do advogado: “(...) XIV – examinar em qualquer repartição policial, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de inquérito, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos”.

É verdade que o § 1º do art. 7º faz restrições. Estas, contudo, não alcançam o inc. XIV do artigo.

Como o Estatuto da Advocacia é lei federal, e posterior ao CPP, logo, o sigilo dos inquéritos praticamente desapareceu. Malgrado o excelente trabalho de Marcelo B. Mendroni no Bol. IBCCrim n. 83, p. 10-12, e na Revista da  APMP/SP n.28, o Supremo Tribunal Federal, apreciando, em 10-8-2004, o HC 82.354-8/PR, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, decidiu estar em vigor o disposto no inc. XIV do art. 7º do Estatuto da Advocacia, podendo o Advogado consultar autos de inquérito, ainda que conclusos (Informativo STF n. 356 RTJ, 17/1/258). E acrescentou com elevado acerto: “a oponibilidade ao defensor constituído esvaziaria uma garantia constitucional do indiciado (CF, art. 5º, LXIII), que lhe assegura, quando preso, e pelo menos lhe faculta, quando solto, a assistência técnica do advogado, que este não lhe poderá prestar se lhe for sonegado o acesso aos autos do inquérito sobre o objeto do qual haja o investigado de prestar declarações”.[31]

Destarte, houve uma controvérsia acerca da possibilidade de que a parte e seu advogado tenham acesso aos autos do inquérito policial. Isso se deu porque, por um lado, esse acesso é garantido ao advogado, por força do artigo 7º, XVI, da Lei nº 8.906/1994, o Estatuto da Advocacia, e, por outro, ele é negado, conforme o artigo 20 do Código de Processo Penal, que garante o sigilo do inquérito.

O Supremo Tribunal Federal, então, pacificou a matéria, consagrando o acesso do advogado aos autos do inquérito, editando a súmula vinculante n. 14, in verbis:

É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.[32]

A súmula vinculante, portanto, veio a combater a existência de investigações sigilosas que impossibilitavam a ciência, pelo réu, dos fatos investigados e que, depois, o fossem surpreender com a denúncia oferecida pelo Órgão Ministerial. Por conseguinte, havendo documentação do material probatório, que já faz parte dos autos do inquérito, o acesso não pode ser negado aos advogados.

Em decorrência do sigilo, o parágrafo único do artigo 20 do CPP prevê: “Nos atestados de antecedentes que lhe forem solicitados, a autoridade policial não poderá mencionar quaisquer anotações referentes à instauração de inquérito contra os requerentes, salvo no caso de existir condenação anterior”[33]. Assim, fica preservado o estado de inocência do investigado, evitando os efeitos estigmatizantes provocados pela certidão de antecedentes.

2.5.3 Oficialidade

Fernando Capez preconiza que o “inquérito policial é uma atividade investigatória feita por órgãos oficiais, não podendo ficar a cargo do particular, ainda que a titularidade da ação penal seja atribuída ao ofendido”[34]. Por isso, em virtude do princípio da legalidade ou do princípio da obrigatoriedade da ação penal pública, ele é presidido pelo delegado de polícia de carreira.

Assim sendo, a atividade da autoridade policial independe de qualquer espécie de provocação, sendo a instauração do inquérito obrigatória diante da notícia de uma infração penal, ressalvados os casos de ação penal pública condicionada e de ação penal privada.

2.5.4 Autoritariedade

Por exigência expressa do texto constitucional, mais precisamente do artigo 144, §4º da Constituição Federal[35], o inquérito deve ser presidido por uma autoridade policial, qual seja, o delegado de polícia de carreira, que é uma autoridade pública.

2.5.5 Indisponibilidade

O artigo 17 do Código de Processo Penal estabelece que, uma vez iniciado o procedimento investigativo, a autoridade policial deve levá-lo até o final, não podendo, portanto, arquivá-lo.

Nestor Távora e Rosmar Rodrigues explicam que:

A persecução penal é de ordem pública, e uma vez iniciado o inquérito, não pode o delegado de polícia dele dispor. Se diante de uma circunstância fática, o delegado percebe que não houve crime, nem em tese, não deve iniciar o inquérito policial. Contudo, uma vez iniciado o procedimento investigativo, deve levá-lo até o final [...].[36]

Por ser o inquérito policial indisponível, após a sua instauração regular, ele não pode ser, portanto, arquivado pela autoridade policial.

2.5.6 Oficiosidade

Segundo o artigo 5º, I, do Código de Processo Penal[37], no caso de ação penal pública incondicionada, a autoridade policial deve atuar de ofício, instaurando o inquérito e apurando os fatos. Isto posto, é dispensada qualquer autorização para agir, diferentemente do que ocorre nos crimes de ação penal condicionada e de ação penal privada.

Nos casos de ação penal condicionada e de ação penal privada, o legislador condiciona a persecução criminal à autorização da vítima ou ainda lhe confere o próprio direito de ação. A autoridade policial depende, assim, da autorização do ofendido, visto que a própria legislação, qual seja, o artigo 5º, §§ 4º e 5º, do CPP[38], condicionou o início do inquérito a esse requisito.

Segundo Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar, no caso de:

[...] delação anônima, em crime de ação penal privada, não poderá a autoridade policial iniciar o inquérito sem a prévia autorização da vítima. Da mesma forma, se terceiro for à delegacia no lugar do ofendido, o inquérito não será deflagrado.[39]

Nesse sentido, não se tem reconhecido a denúncia anônima de fato criminoso como notitia criminis[40]. No entanto, o delegado de polícia poderá realizar investigações de ofício e, se verificar a existência de crime de ação pública incondicionada, poderá instaurar o inquérito de ofício; diferentemente do que ocorre no caso da ação penal privada e da ação penal condicionada à representação da vítima, em que o delegado não poderá instaurá-lo de ofício, pois necessitará da autorização do ofendido.

2.5.7 Discricionariedade

O inquérito policial, que faz parte da fase pré-processual, não possui o rigor procedimental da persecução em juízo. Assim, o delegado de polícia desenvolve as investigações da forma que melhor lhe aprouver. O delegado de polícia é o encarregado das investigações, dando rumo às diligências, as quais estão indicadas nos artigos 6º e 7º do Código de Processo Penal.[41]

O artigo 14 do mesmo código preconiza que a autoridade policial pode atender ou não aos requerimentos patrocinados pelo indiciado ou pela própria vítima, fazendo um juízo de conveniência e oportunidade quanto à relevância do que lhe for solicitado. No entanto, conforme o artigo 158 do CPP[42], no caso de infração penal que deixe vestígios, a realização de exame de corpo de delito se faz indispensável.

Ressalte-se que, apesar da inexistência de hierarquia entre juízes, promotores e delegados, no caso de requisições de diligências efetuadas pelo juiz ou promotor perante o delegado, este estará obrigado a atender.

2.5.8 Inquisitivo

O inquérito policial é inquisitivo, ou seja, as atividades persecutórias ficam concentradas nas mãos de uma única autoridade e não há oportunidade para o exercício do contraditório ou da ampla defesa. Assim sendo, na fase pré-processual, não há que se falar em partes, visto que há apenas uma autoridade investigando e o suposto autor da infração, normalmente na condição de indiciado. [43]

Fernando Capez explica:

Caracteriza-se como inquisitivo o procedimento em que as atividades persecutórias concentram-se nas mãos de uma única autoridade, a qual, por isso, prescinde, para a sua atuação, da provocação de quem quer que seja, podendo e devendo agir de ofício, empreendendo, com discricionariedade, as atividades necessárias ao esclarecimento do crime e da sua autoria. É característica oriunda dos princípios da obrigatoriedade e da oficialidade e da ação penal.[44]

A inquisitoriedade do inquérito significa que as atividades persecutórias se concentram nas mãos de uma única autoridade e não há o cabimento dos princípios da ampla defesa e do contraditório. Na fase pré-processual ainda não existem partes, apenas uma autoridade investigando o indiciado, que se apresenta como objeto da atividade investigatória, resguardados, entretanto, seus direitos e suas garantias individuais.

Ademais, a Constituição Federal[45], em seu artigo 5º, LV, proclama os princípios do contraditório e da ampla defesa, referindo-se aos litigantes e aos acusados em geral, não podendo aplicá-los, consequentemente, ao indiciado, uma vez que não há, nessa fase pré-processual investigativa, uma acusação propriamente dita, há apenas uma autoridade realizando investigações.

Nestor Távora e Rosmar Rodrigues explanam que:

A inquisitoriedade permite agilidade nas investigações, otimizando a atuação da autoridade policial. Contudo, como não houve a participação do indiciado ou suspeito no transcorrer do procedimento, defendendo-se e exercendo contraditório, não poderá o magistrado, na fase processual, valer-se apenas do inquérito para proferir sentença condenatória, pois incorreria em clara violação ao texto legal.[46]

A inexistência de contraditório, nesta fase preliminar, que é o inquérito policial, proporciona, assim, maior eficiência investigativa, garantindo a boa atuação da Polícia Judiciária.

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Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Talita Regina Souza. A (im)prescindibilidade do inquérito policial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4007, 21 jun. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29625. Acesso em: 28 mar. 2024.

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