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O crime de estupro de vulnerável e o direito à autodeterminação sexual do menor

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21/06/2014 às 14:33
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Para aferir se o comportamento do agente é adequado socialmente, é necessário levar em consideração os usos e costumes da população, na época e local em que ocorreu a conduta, investigando-se o sentimento da maioria da sociedade a respeito da capacidade de autodeterminação do adolescente na esfera da sexualidade.

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO..1 O CRIME DE estupro DE VULNERÁVEL. 1.1 A PROTEÇÃO PENAL DO MENOR NOS CRIMES SEXUAIS..1.2 O BEM JURÍDICO TUTELADO.. 1.3 ASPECTOS RELATIVOS À CONDUTA TÍPICA..1.3.1 Sujeito ativo..1.3.2 Sujeito passivo.. 1.3.3 Verbo típico.1.3.4 Elementos normativos.1.3.5 Elemento subjetivo..1.3.6 Objeto material .1.3.7 Consumação1.3.8 Qualificadoras1.3.9 Aspectos processuais.  1.3.10 A possibilidade de estupro bilateral 2 A CONTROVÉRSIA ACERCA DA PRESUNÇÃO DE VIOLÊNCIA..2.1  PANORAMA ANTES DA ALTERAÇÃO LEGISLATIVA PROMOVIDA PELA LEI 12.015/092.1.1 Presunção de violência: correntes doutrinárias e posições jurisprudenciais . 2.1.1.1 Teoria absoluta2.1.1.2 Teoria relativa2.1.1.3 Teoria constitucional2.1.1.4 Posições jurisprudenciais2.2 O NOVO TIPO PENAL (ART. 217-A): ESTUPRO DE VULNERÁVEL.. 2.2.1 A nova roupagem da discussão acerca da relatividade da presunção de violência. 2.2.2 Aplicação da nova legislação nos Tribunais. 3 A POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO SOCIAL AO CRIME DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL. 3.1 O PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO SOCIAL.. 3.2 A INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO SOCIAL NO CRIME DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL.. 3.2.1  A mudança no contexto sexual do jovem... 3.2.2 Redução da idade da primeira relação sexual .3.2.3 Gravidez na adolescência3.2.4 Os reflexos das mudanças sociais no direito penal .3.2.5O direito ao livre exercício da sexualidade pelo menor e a capacidade de consentimento na prática de atos sexuais3.2.6 Incidência do princípio da adequação social: parâmetros de aplicação. CONCLUSÃO.


INTRODUÇÃO                           

O objetivo desse trabalho é propor uma discussão a respeito da possibilidade de aplicação do princípio da adequação social ao crime de estupro de vulnerável. Trata-se de tema relevante e hodierno para a ciência jurídica, uma vez que a evolução da sociedade impõe crescentes e constantes questionamentos a respeito das condutas tipificadas pelo legislador como crimes, bem assim da aplicação de princípios e institutos a fim de privilegiar decisões justas.

O bem jurídico tutelado nos crimes sexuais é a dignidade sexual, e, especificamente em relação à vítima menor, a proteção ao desenvolvimento livre da personalidade sexual. A proteção penal no que tange ao crime sexual praticado contra criança e adolescente tem gerado muita polêmica, especialmente em face das mudanças sociais verificadas em relação à moral sexual e do direito à autodeterminação sexual do menor.

De acordo com a presunção legal de violência para os menores no âmbito dos crimes sexuais, os indivíduos abaixo de determinada idade não possuem capacidade para consentir à prática da relação sexual. Não obstante, a fixação de limite etário como marco da aquisição da capacidade de autodeterminação sexual da pessoa é passível de críticas, uma vez que o alcance da liberdade sexual é um processo dinâmico e gradativo, insuscetível de determinação exata pelo legislador.

Nesse sentido, antes da alteração legislativa promovida pela Lei nº 12.015/09, vigorava uma controvérsia doutrinária e jurisprudencial quanto à natureza da presunção de violência no crime de estupro da vítima menor de 14 (quatorze) anos, se absoluta ou relativa. Com o advento do novo tipo penal estupro de vulnerável (artigo 217-A do Código Penal), aboliu-se a expressão “presunção de violência” e referiu-se à idade do menor como elemento da conduta típica, sendo necessário avaliar a atual posição doutrinária e jurisprudencial sobre o tema.

Delimitado o alcance da controvérsia, cumpre examinar a possibilidade de aplicação do princípio da adequação social no crime de estupro de vulnerável. Nesse particular, devem ser objeto de consideração as mudanças sociais quanto à sexualidade, a relevância do consentimento do menor à prática sexual e a existência de ofensa ao bem jurídico protegido. A proposta do estudo é, assim, abordar os diversos aspectos a respeito do tema, especialmente em face dos princípios penais e das disposições constitucionais e legais.

Para a elaboração do trabalho, além de revisão bibliográfica também foi realizada análise de decisões judiciais sobre a matéria, o que corrobora a relevância da discussão proposta.

A monografia, intitulada “A possibilidade de aplicação do princípio da adequação social ao crime de estupro de vulnerável”, foi dividida em três capítulos. O primeiro capítulo, “O crime de estupro de vulnerável”, propõe um breve estudo acerca do crime de estupro de vulnerável, no que diz respeito à proteção penal do menor nos crimes sexuais, o bem jurídico tutelado e outros aspectos relativos à conduta típica.

O segundo capítulo, “A controvérsia acerca da presunção de violência”, tem por objeto situar a discussão doutrinária e jurisprudencial acerca da natureza da presunção de violência nos crimes sexuais contra menonres, antes e depois da alteração legislativa promovida pela Lei nº 12.015/09.

O terceiro capítulo, “A possibilidade de aplicação do princípio da adequação social ao crime de estupro de vulnerável”, pretende esclarecer o princípio da adequação social e em seguida avaliar a possibilidade de aplicação ao crime de estupro de vulnerável. Para tanto, merece relevo discussões a respeito da mudança no contexto sexual do jovem e os reflexos dessas mudanças no direito penal. A abordagem prossegue quanto ao direito ao livre exercício da sexualidade pelo menor e a capacidade de consentimento na prática de atos sexuais. Por fim, propõe a definição de parâmetros de aplicação no que tange à incidência do princípio da adequação social ao crime de estupro de vulnerável.

O tema relativo à aplicação do princípio da adequação social ao crime de estupro de vulnerável é relevante, pois procura atenuar o rigor da norma penal às situações socialmente adequadas. Portanto, destaca-se a relevância e originalidade da pesquisa, que busca acrescentar a discussão acerca da aplicação do princípio da adequação social à antiga controvérsia que assumiu novo contorno com a alteração legislativa promovida.


1 O CRIME DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL

O crime de estupro de vulnerável está previsto no art. 217-A do Código Penal, introduzido pela Lei n. 12.015/09, que assim dispõe: “Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de (catorze) anos”. A pena cominada para o delito é reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.

O tipo penal objetiva proteger a dignidade sexual do menor de 14 (quatorze) anos, considerado vulnerável.

1.1 A PROTEÇÃO PENAL DO MENOR NOS CRIMES SEXUAIS           

A proteção penal no que tange ao crime sexual praticado contra criança e adolescente possui respaldo constitucional e legal. O artigo 227, §4º, da Constituição Federal determina que a lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente.

O Estatuto da Criança e do Adolescente, nos artigos 4° e 5°, atribui à família, ao Estado e à comunidade o dever de proporcionar a proteção à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, no que tange à liberdade, à dignidade, ao respeito, à exploração, à violência e à crueldade.

Quanto aos indivíduos maiores e capazes, a norma penal incide para garantir que as relações sexuais sejam consentidas, ou seja, a preocupação é com a liberdade sexual. Assim, é punida no âmbito penal a prática de atos sexuais quando houver violência ou grave ameaça.

Por outro lado, em relação aos menores, a tutela penal no campo sexual leva em consideração a situação particular dos indivíduos em desenvolvimento, razão pela qual se considera que há uma coação psicológica à prática da relação sexual, diante da impossibilidade de compreensão do ato praticado. [1]

Criou-se, assim, a presunção legal de violência para os menores no âmbito dos crimes sexuais, que prescreve que indivíduos abaixo de determinada idade não possuem capacidade para consentir à prática da relação sexual, considerada violenta por disposição legal.

A presunção legal de violência nos crimes sexuais contra menores remonta ao Direito Romano, segundo o princípio “Qui velle non potuit, ergo noluit”, formulado por Carpsovio na obra “Practica Nova Rerum Criminalium” a partir de passagens do Digesto. De acordo com esse critério jurídico-penal, adotado em vários ordenamentos jurídicos, quem não pode querer, não quer, quem não pode consentir, dissente. [2]

Com efeito, no Brasil, o legislador optou por estabelecer a presunção de violência nos delitos sexuais contra menores mediante a fixação de um limite etário da vítima. Essa técnica permite a tipificação de condutas como crime sexual ainda que ausente o emprego de violência ou grave ameaça, uma vez que a idade da vítima passa a ter natureza de elemento integrante da tipicidade penal.

O Código Imperial previa no artigo 219: “Deflorar mulher virgem, menor de 17 anos.” O aviso 512 de 05.11.1862 entendeu que o crime dessa natureza deveria ter uma pena mais grave, subrogando o artigo 222: “Ter cópula carnal por meio de violência, ou ameaças com qualquer mulher honesta”. Em outros termos, no caso da prática do ato com vítima menor de 17 (dezessete) anos, considerava-se ter ocorrido violência, já que a adolescente não possuía entendimento para consentir. [3]

A presunção se tornou relevante com o advento do Código Penal de 1890, no qual estava prevista expressamente a presunção da violência contra menores de 16 anos. No Código Penal de 1940, vigente até os dias de hoje, a presunção de violência contra menores de 16 anos foi reformulada para 14 anos.

Na reforma promovida pela Lei n. 12.015/09, a idade de 14 anos foi mantida, mas foi criado tipo penal autônomo denominado “estupro de vulnerável”, tendo sido revogado o art. 214 do Código Penal, que dispunha expressamente acerca da presunção de violência.

A idade de 14 anos foi fixada nos ordenamentos jurídicos português, brasileiro, alemão e Italiano (no qual era de 12 anos sendo ampliado para 14 anos em sua última reforma). Outros ordenamentos fixam a faixa de 12 anos, quais sejam: argentino, paraguaio, mexicano, chileno. O código espanhol, que fixava a idade de 12 anos, passou para os 13 anos em sua última reforma. [4]

Uma grande parcela dos profissionais da área de saúde e cientistas define que o menor teria capacidade para decidir sobre a vida sexual na faixa etária acima dos 14, uma vez que esta idade é a fase da puberdade, em que se expressam transformações psicológicas que estabelecem a maturidade. Nesse sentido, esclarece Adelina de Cássia Bastos Oliveira Carvalho:

Boa parte dos profissionais da área de saúde e das ciências humanas tem definido a faixa etária acima de 14 anos de idade como a fase da puberdade conceituada esta como o conjunto de transformações psicofisiológicas ligadas à maturação sexual, daí a escolha desta idade como marco a partir do qual se instala, no terreno sexual, a capacidade de consentir, pelo legislador brasileiro. [5]

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Não obstante, há críticas quanto à fixação de limite etário como marco da aquisição da capacidade de autodeterminação sexual da pessoa, uma vez que o alcance da liberdade sexual é um processo dinâmico e gradativo insuscetível de determinação exata pelo legislador.

Ademais, há inegáveis influências pessoais, culturais, éticas que determinam relevantes diferenças em cada indivíduo quanto à obtenção da capacidade para decidir, com liberdade, a vida sexual. “Não deixa de ser, a nosso ver, no mínimo extravagante pensar que em uma determinada data a pessoa adquire plena consciência da atividade sexual, não a possuindo, todavia, até a véspera da mesma.” [6]

Por outro lado, o critério adotado pelo sistema penal soviético, da maturidade sexual, a ser definido pelo juiz, caso a caso, é criticado pela doutrina, diante do perigo de deixar à apreciação do julgador, sendo certo que a capacidade de consentir do ofendido não pode ser aferida tão somente pela maturidade fisiológica.[7]

A presunção legal de violência foi fortemente criticada por Carrara, que questionava por qual motivo também não se presume a violência em relação a outros delitos, como no furto. Atualmente, essa questão está sendo debatida em face do conflito entre o interesse em se proteger os menores e o reconhecimento de interesses individuais do próprio vulnerável. [8]

Destarte, diante das grandes mudanças no contexto social e moral, discute-se no âmbito nacional e internacional qual o melhor critério a ser adotado, porquanto os menores vêm adquirindo consciência sobre a sexualidade antes das faixas etárias adotadas pelos legisladores.

1.2 O BEM JURÍDICO TUTELADO

A tutela penal dos bens jurídicos deve observar o princípio da intervenção mínima, segundo o qual o direito penal só deve intervir quando a ordem jurídica não possuir outros meios para prevenir a ocorrência do dano, ou seja, apenas incide subsidiariamente, quando necessário.

A finalidade do direito penal é proteger os bens juridicamente fundamentais à satisfação das necessidades humanas para propiciar a convivência entre os indivíduos.[9]

É, assim, decorrência do princípio da intervenção mínima o princípio da ultima ratio e fragmentariedade do direito penal, que prescreve que o direito penal deve ser afastado sempre que existir outros mecanismos menos lesivos para se impor, no controle social, o respeito à dignidade da pessoa humana, de forma mais eficaz e menos agressiva.[10]

Nos crimes sexuais, o bem jurídico tutelado pela norma é a dignidade sexual, ou seja, objetiva-se garantir o livre exercício da sexualidade do indivíduo.

A liberdade sexual, em seu aspecto positivo ou dinâmico, significa a livre disposição do sexo ou do próprio corpo conforme desejos e opções do indivíduo, tanto quanto à forma de manifestação sexual quanto ao destinatário desta, observando-se os limites definidos pela tolerância e pelo respeito da liberdade sexual alheia. Em seu aspecto estático ou passivo, a liberdade sexual se concretiza na faculdade que o indivíduo possui de não suportar de outrem a realização de atos de natureza sexual contra a sua vontade.[11]

Nesse sentido, a Lei nº 12.015/09 alterou o título VI do Código Penal, de “dos crimes contra os costumes” para “dos crimes contra a dignidade sexual”, expressão relacionada à liberdade e ao desenvolvimento sexual da pessoa. Essa alteração, elogiada pela doutrina, “[...] aproxima o direito penal dos padrões contemporâneos de moralidade política vigentes nas democracias liberais [...]” [12].

Destarte, houve uma modificação do objeto protegido pela norma penal, que anteriormente tutelava a moralidade, o considerado aceitável pela sociedade em matéria de comportamento sexual, passando à tutela da dignidade sexual, com ênfase na liberdade sexual, entendida como a faculdade de livre escolha ou livre consentimento nas relações sexuais.[13] A esse respeito, Alamiro Velludo Salvador Netto destaca:

A substituição da alcunha significa – ao que parece – a quebra de um paradigma e, ao mesmo tempo, uma visão mais temporal e laica da questão, privilegiando e protegendo, enfim, a autodeterminação sexual. [14]

No caso da vítima menor, o bem jurídico tutelado é também a dignidade sexual, mas especialmente a proteção ao desenvolvimento livre da personalidade sexual das crianças e adolescentes.[15] Ao estabelecer como crime a prática de ato sexual com menor, ainda que sem violência ou grave ameaça, a norma penal visa impedir que a criança e o adolescente sofram traumas psicológicos em razão de uma atividade sexual precoce, conforme realça Cezar Roberto Bitencourt:

Na realidade, na hipótese de crime sexual contra vulnerável, não se pode falar em liberdade sexual como bem jurídico protegido, pois se reconhece que não há a plena disponibilidade do exercício dessa liberdade, que é exatamente o que caracteriza sua vulnerabilidade. Na verdade, a criminalização da conduta descrita no art. 217-A procura proteger a evolução e o desenvolvimento normal da personalidade do menor, para que, na sua fase adulta, possa decidir livremente, e sem traumas psicológicos, seu comportamento sexual. [16]

Com efeito, um precoce despertar sexual pode causar pertubações fisiológicas e psicológicas, tais como traumatismos, bloqueios de afetividade e promiscuidade, justificando uma tutela especial em relação aos jovens. [17]

Considera-se, assim, que o indivíduo que não completou a idade determinada em lei ainda não possui o discernimento necessário para decidir com liberdade a respeito da prática de atos sexuais. A proteção penal objetiva a preservação de condições básicas para que crianças e adolescentes possam alcançar um desenvolvimento livre de sua personalidade sexual.

Cumpre salientar, contudo, que em determinadas hipóteses o adolescente, embora não tenha atingido a idade fixada em lei, possui discernimento para decidir pela prática de ato sexual, sem ofensa à sua dignidade. Nessas hipóteses, inexiste violação ao bem jurídico tutelado e a disposição penal atua como circunstância repressora do exercício da sexualidade.

1.3  ASPECTOS RELATIVOS À CONDUTA TÍPICA

1.3.1     Sujeito ativo

A norma do art. 217-A não estabelece expressamente o sujeito ativo do crime de estupro de vulnerável, razão pela qual pode ser praticado por qualquer pessoa, homens e mulheres, inclusive contra pessoa do mesmo sexo, “[...] com a ressalva de que, quando se tratar de conjunção carnal, a relação deverá, obrigatoriamente, ser heterossexual” [18].

Trata-se, pois, de crime comum quanto ao sujeito ativo, admitindo-se a coautoria e a participação. [19]

1.3.2     Sujeito passivo

O sujeito passivo do crime de estupro de vulnerável é a criança ou o adolescente menor de 14 anos. “Assim, até zero hora do dia em que a vítima de estupro completa catorze anos, independentemente de sua vontade, o Estado pune aquele que lhe fizer qualquer ato libidinoso ou conjunção carnal” [20].

Ao completar 14 anos, eventual vítima estará protegida pelo crime de estupro, previsto no art. 213 do Código Penal, se for constrangida a praticar conjunção carnal ou ato libidinoso mediante violência ou grave ameaça. Se, porém, a prática do ato sexual for consentido, o fato será atípico.

O § 1º do art. 217-A amplia o rol do sujeito passivo do delito, dispondo que “Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.”

A causa referida no dispositivo “[...] pode ser permanente ou transitória, pode ser induzida ou criada pelo agente ou pode ser inerente à condição da pessoa. [...]”[21] Há, assim, uma equiparação legal, porquanto essas situações também são consideradas de vulnerabilidade.

Portanto, quanto ao sujeito passivo, o crime é próprio, somente podendo figurar como vítima pessoa vulnerável ou equiparada, ou seja, o menor de 14 anos, o enfermo ou o deficiente mental, que não tem o necessário discernimento para a prática do ato, e todos os que, por qualquer motivo, não podem oferecer resistência.

Ademais, podem ser sujeitos passivos do crime de estupro de vulnerável tanto pessoas do sexo feminino quanto do sexo masculino, restando caracterizado o crime em relação a hetero ou homossexual. [22]

Porém, cumpre salientar que o objeto do presente estudo cinge-se à análise do delito de estupro de vulnerável contra os menores de 14 anos, razão pela qual será afastada qualquer discussão relativa às demais possíveis vítimas do delito.

1.3.3     Verbo típico

O crime de estupro de vulnerável possui dois verbos típicos: “ter” conjunção carnal e “praticar” outro ato libidinoso.

O verbo típico ter significa conquistar, possuir, adquirir. O verbo típico praticar significa fazer, realizar, levar a efeito, executar. Ambos afastam a ideia de violência, de forma que basta ter conjunção carnal ou praticar ato libidinoso com menor de 14 anos para configurar a tipicidade formal do delito. [23]

Os verbos típicos ter e praticar pressupõem o comportamento positivo por parte do agente, razão pela qual se trata, em regra, de crime comissivo. Porém, é possível a caracterização da omissão imprópria, caso o agente se encontre em uma das hipóteses de garantidor previstas no § 2º do artigo 13 do Código Penal. [24]

Nesse particular, o delito em análise diferencia-se do crime de estupro, previsto no art. 213 do Código Penal, que possui “constranger” como verbo típico, que significa forçar, obrigar, subjugar a vítima ao ato sexual.

1.3.4     Elementos normativos

A norma contida no art. 217-A prescreve dois elementos normativos de índole jurídica, quais sejam, “conjunção carnal” e “ato libidinoso”. Conjunção carnal refere-se à introdução do pênis na vagina, que pode ser completa ou incompleta. Ato libidinoso é toda manifestação física que possui como finalidade satisfazer a lascívia, exigindo-se o efetivo contato corporal com a vítima. [25] Tais elementos normativos também estão presentes no crime de estupro, previsto no art. 213 do Código Penal.

Há, ainda, um elemento normativo de índole cultural, qual seja, “menor de catorze anos”, relacionado à prova documental da idade da vítima.

1.3.5     Elemento subjetivo

O elemento subjetivo do delito previsto no art. 217-A é o dolo específico, pois o ato praticado deve possuir o fim libidinoso, de satisfazer a lascívia.

Para a caracterização da tipicidade penal do crime de estupro de vulnerável é necessário que o dolo do agente abranja a idade da vítima. Se o agente pratica conjunção carnal ou ato libidinoso com menor de 14 anos desconhecendo essa circunstância, caracteriza-se erro de tipo, afastando-se o dolo e a própria punição da conduta, porquanto inexistente a forma culposa. [26]

Destaca-se, outrossim, que na hipótese de erro de tipo em razão do desconhecimento da idade da vítima, pode subsistir o crime de estupro, previsto no art. 213 do Código Penal, caso praticada a conduta com violência ou grave ameaça, conforme esclarece Rogério Greco:

No que diz respeito à idade da vítima, para que ocorra o delito em estudo, o agente, obrigatoriamente, deverá ter conhecimento de ser ela menor de 14 (quatorze) anos, pois, caso contrário, poderá ser alegado o chamado erro de tipo que, dependendo do caso concreto, poderá conduzir até mesmo à atipicidade do fato ou à sua desclassificação para o delito de estupro, tipificado no art. 213 do Código Penal. [27]

O erro de tipo pode ocorrer, na prática, em face das compleições físicas precocemente desenvolvidas da vítima, que aparenta possuir idade superior ao limite legal. Alessandra Orcesi Pedro Greco e João Daniel Rassi também tratam da hipótese em que o indivíduo possui de fato mais de 14 anos, embora a certidão de nascimento conste data de nascimento posterior:

Situação peculiar é a de o menor ter certidão errônea, de que consta ser menor de 14 anos, mas, na verdade, por questões não incomuns no grande Brasil, ter idade mais adiantada. Constatada essa circunstância a hipótese é de atipicidade ou crime impossível, porque o que vale para a condenação penal é a realidade concreta e não a documental. [28]

Por outro lado, em caso de dúvida do agente sobre a idade da vítima, prevalece a tipicidade do crime, porquanto caracterizado o dolo eventual.

1.3.6     Objeto material

O objeto material do crime é a pessoa menor de 14 anos com quem se pratique conjunção carnal ou ato libidinoso. Como se trata de delito contra a dignidade sexual da pessoa, “[...] a norma, sensível ao sentimento humano, confunde o objeto material com o sujeito passivo” [29].

1.3.7     Consumação

A consumação do crime de estupro de vulnerável ocorre com a prática de qualquer ato libidinoso onde haja contato corporal. Em outros termos, ainda que a intenção do agente seja a prática da conjunção carnal, o crime se consuma com o primeiro ato libidinoso. [30]

A tentativa do crime é possível, desde que antes de iniciado o contato sexual, que não ocorre por circunstâncias alheias à vontade do agente.

1.3.8     Qualificadoras

Os parágrafos 3º e 4º do art. 217-A estabelecem crimes qualificados pelo resultado ou preterdolosos. Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave, a pena é de 10 a 20 anos de reclusão. Se resulta morte, é de 12 a 30 anos de reclusão.

Da leitura dos dispositivos, conclui-se que as lesões leves integram o crime de estupro de vulnerável e são por ele absorvidas.

Os resultados lesão grave ou morte podem decorrer de dolo ou culpa, mas devem necessariamente estar relacionados com o contexto do crime de estupro de vulnerável. Por outro lado, se a lesão grave ou a morte ocorrem em contexto diverso do crime sexual, haverá concurso de crimes.

1.3.9     Aspectos processuais

A ação penal no crime de estupro de vulnerável e pública incondicionada, conforme previsto no art. 225, parágrafo único, do Código Penal, com a redação conferida pela Lei n. 12.015/2009.

De acordo com o art. 234-B do Código Penal, inserido pela Lei n. 12.015/2009, os processos em que se apuram o crime de estupro de vulnerável deverão ser tramitados em segredo de justiça.

O crime é considerado crime hediondo, nos termos do art. 1º, inc. VI, da Lei n. 8.072/1990. Por essa razão, incidem as respectivas disposições processuais, quais sejam, o cumprimento da pena no regime inicialmente fechado e o prazo diferenciado para o livramento condicional.

Em razão da pena cominada ao delito, é incabível proposta de transação penal e a suspensão condicional do processo, conforme a Lei n. 9.099/1995.

1.3.10   A possibilidade de estupro bilateral

É importante destacar que a partir da Lei n. 12.015/2009, vislumbra-se possível a caracterização, em tese, da figura do estupro bilateral. Destarte, se dois indivíduos menores de 14 (quatorze) anos relacionarem-se sexualmente, ainda que sem violência, estariam praticando ato infracional correspondente a estupro de vulnerável, um contra o outro. Essa possibilidade é criticada por parte da doutrina, pois afasta por completo a autodeterminação sexual dos jovens. [31]

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Sobre a autora
Vanessa de Souza Farias

Graduada em direito pela Universidade de Brasília. Pós-Graduada pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. Analista processual no Ministério Público do Distrito Federal e Territórios.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FARIAS, Vanessa Souza. O crime de estupro de vulnerável e o direito à autodeterminação sexual do menor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4007, 21 jun. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29641. Acesso em: 29 mar. 2024.

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