O indiciamento e o desindiciamento no Inquérito Policial Militar

27/04/2015 às 22:11
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Visa este artigo a investigar, apesar da omissão legislativa, a natureza jurídica do indiciamento e do desindiciamento na seara processual penal militar e suas repercussões diante dos princípios e garantias constitucionais.

INTRODUÇÃO

O indiciamento, embora gere diversos reflexos durante a instrução do Inquérito Policial Militar (IPM) e até mesmo na carreira dos militares indiciados, não consta com definição expressa na legislação processual penal militar.

Tampouco é regulada a hipótese de desindiciamento por parte da autoridade policial judiciária militar responsável pela condução do IPM quando verifique que não mais subsistem os indícios que apontavam que o então indiciado teria concorrido com a prática criminosa

Desta forma, visa este artigo a investigar a natureza jurídica do indiciamento e do desindiciamento na seara processual penal militar e suas repercussões diante dos princípios e garantias constitucionais.

 

INDICIAMENTO

O indiciamento é a formalização contra determinada pessoa da condição de suspeito que ela passará a possuir no curso das investigações criminais conduzidas no IPM. Não há sua previsão expressa no Código de Processo Penal Militar (CPPM), decorrendo sua definição da interpretação dos arts. 7º, §§2º, 3º e 4º e arts. 13 e 16, todos do CPPM.

Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar (2013, p. 126), definem-no como:

 

A informação ao suposto autor a respeito do fato objeto das investigações. É a cientificação ao suspeito de que ele passa a ser o principal foco do inquérito. Saímos do juízo de possibilidade para o de probabilidade e as investigações são centradas em pessoa determinada.

 

O indiciamento, assim, tem como função principal publicizar que determinado indivíduo é foco de investigação criminal. É atribuição exclusiva da autoridade policial judiciária militar e não pode ser determinado pelo magistrado - sob pena de violar-se o sistema acusatório-, nem pelo membro do Ministério Público Militar, que não tem o formal indiciamento como requisito para o oferecimento da denúncia.

Admitir-se o indiciamento por requisição destas autoridades seria o equivalente a determinar que o encarregado de IPM, no exercício de suas atribuições, considere determinada pessoa como provável autora do fato criminoso investigado[1]. Nesta linha, há precedente do Superior Tribunal de Justiça: “O indiciamento constitui atribuição exclusiva da autoridade policial (...) é por meio do indiciamento que a autoridade policial aponta determinada pessoa como a autora do ilícito em apuração” (RHC, 47.984-SP, Rel. Min. Jorge Mussi, j. 4/11/2014 –Disponível no Informativo 552 de 17dez14).

Inerente ao indiciamento é a realização da precisa identificação do suspeito, que se ausente deve ser feita de forma indireta, atentando-se, em todo caso, ao que prescreve o art. 5º, LVIII, da Constituição: “o civilmente identificado não será submetido a identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei”.

Por fim, na esfera militar o indiciamento presta-se também como instrumento para compatibilização hierárquica do indiciado com o encarregado do IPM, que sempre deverá possuir maior posto ou antiguidade, conforme previsto no art. 10, §5º, do CPPM, preservando-se, desta forma, a hierarquia, que junto com a disciplina compõe os pilares das Forças Armadas (art. 142, CF) e auxiliares (art. 42, CF).

 

MOMENTO PARA O INDICIAMENTO

Não há um momento específico para o indiciamento, devendo o mesmo ocorrer quando o encarregado do IPM detiver elementos suficientes que apontem determinada pessoa como provável autora do fato delitivo investigado, o que acontece, geralmente, ao final das investigações. Deve ser realizado de forma bastante cautelosa e devidamente motivado, para evitar que se configure ato arbitrário e haja constrangimento desnecessário ao indiciado, pois a informação do indiciamento fica registrada permanentemente na folha de antecedentes, ainda que o inquérito policial militar venha a ser depois arquivado.

Não pode, todavia, o indiciamento, que é ato de caráter inquisitivo, ser realizado após o recebimento da denúncia, eis que escaparia à sua finalidade e causaria constrangimento ilegal, sanável por habeas corpus. Conforme reiteradas decisões do STJ:

 

Não se admite a determinação de indiciamento formal do acusado, medida própria do inquérito policial, quando o feito já se encontra na fase judicial. Precedentes. 3. Uma vez ultimada a persecutio criminis pré-processual, é mais do que evidente a impertinência da medida em testilha. 4. Ordem concedida para revogar a decisão que determinou o indiciamento do Paciente.

(STJ, HC Nº 293.623 - SP Relatora: Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, Data de Julgamento: 20/05/2014, T6 - SEXTA TURMA)

 

No caso de prisão em flagrante, o indiciamento do preso será automático e ocorrerá  simultaneamente com a  lavratura do auto de prisão, uma vez que para que alguém seja preso em flagrante, nas hipóteses do art. 244 do CPPM, deve se encontrar em uma situação de presunção de autoria delitiva, tornando-se pela própria prisão, objeto central das investigações criminais que decorrerão.

 

INDICIAMENTO E GARANTIAS CONSTITUCIONAIS

O indiciamento formal além de cientificar e formalizar a imputação que recai sobre o indivíduo, presta-se a permitir que o investigado exerça as garantias constitucionais e prerrogativas legais, que são asseguradas ao indiciado e não as são às testemunhas, como, por exemplo, o direito de permanecer calado e formular quesitos em exames periciais (art. 316, CPPM). Desta forma, para que cumpra seu escopo, o indiciamento deve ser devidamente motivado pela autoridade encarregada do IPM, esclarecendo-se os elementos probatórios que o conduziram para que não reste caracterizado constrangimento ilegal, sanável pela impetração de habeas corpus.

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Conforme assinala Guilherme de Souza Nucci (2013, p. 53), tem o indiciado:

 

Direito ao silêncio, merece ter sua integridade física preservada, não pode ser submetido a qualquer procedimento vexatório (direito à imagem), pode constituir advogado para acompanhar a investigação, enfim, como pessoa que é, deve ter preservados seus direitos constitucionais.

 

Entendemos ainda que, como consequência da garantia constitucional da não auto-incriminação, o indiciado poderá optar por não comparecer perante a autoridade policial judiciária militar para ser interrogado, sem que isto acarrete sua condução coercitiva (tal como ocorre com as testemunhas, conforme prevê o art. 347, §2º, do CPPM) e que tampouco poderá ocorrer a decretação de sua prisão preventiva sob este fundamento[2].

 

DO DESINDICIAMENTO

Uma vez realizado o indiciamento, poderá o próprio encarregado do inquérito promover o cancelamento/desindiciamento do então suspeito se não houver indícios que comprovem que o mesmo não concorreu com a prática criminosa?

Poder-se-ia sustentar que o indiciamento significaria um arquivamento subjetivo do IPM, posto que haveria o encerramento das investigações em relação àquela pessoa. Não poderia o encarregado, segundo esta linha de pensamento, não poderia o encarregado cancelar o indiciamento porque só ao Ministério Público Militar (MPM) cabe requerer o arquivamento dos autos, conforme previsão do art. 24 combinado com o art. 25, §2º, do CPPM.

Ocorre, todavia, que a autoridade policial judiciária militar, como toda autoridade administrativa no exercício do poder de autotutela, poderá rever seus atos se eivados de vício e cancelar o indiciamento daquele que erroneamente foi indiciado[3], retirando o peso dos efeitos deletérios que um indiciamento traz à carreira e à dignidade do militar e evitando que eles se protraiam ainda mais no tempo. Ademais, a indisponibilidade do inquérito, prevista no art. 24, do CPPM, é do procedimento como um todo, sendo o indiciamento apenas um ato dentro do IPM, que é regido pela discricionariedade dos atos investigatórios;

O cancelamento do indiciamento por parte do encarregado, assim, não se constitui em arquivamento subjetivo do inquérito, tampouco vincula o MPM, destinatário final do IPM, que ao recebê-lo poderá: a) “requisitar diligências por ele consideradas imprescindíveis ao oferecimento da denúncia” (art. 26, I, CPPM); ou b) oferecer a denúncia contra o sujeito que foi desindiciado, se julgar que possui elementos indiciários suficientes para tal.

 

CONCLUSÃO

Embora o indiciamento não conte com definição legal expressa, deve ser realizado de forma criteriosa e devidamente motivada pelo encarregado do IPM, em qualquer fase da investigação na qual já se possua elementos indiciários suficientes que apontem determinada pessoa como provável autora do delito,  para que sirva como instrumento para o exercício das garantias constitucionais e prerrogativas legais que são asseguradas aos indiciados e não como ato arbitrário da autoridade  policial judiciária militar.

Caso se verifique que os motivos que fundamentaram o indiciamento não procedem, deverá o encarregado providenciar o seu cancelamento/desindiciamento, no exercício do poder de autotutela conferido a todos agentes da Administração Pública, para que os efeitos deletérios do indiciamento à carreira e até mesmo à dignidade do que é indevidamente indiciado, não se prolonguem mais no tempo.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal militar comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de direito processual penal. 8ª ed. Salvador: Jus Podium, 2013.


[1] Na esfera processual comum, a Lei 12.830/2013, em seu art. 2º, §6º, tornou expresso o que grande parte da doutrina processualista já lecionava – o indiciamento é ato privativo do delegado de polícia, que mutatis mutandis, tem atribuições semelhantes na condução do inquérito policial às do encarregado na condução do IPM.

[2]     O Supremo Tribunal Federal já decidiu nesta linha, conforme pode ser verificado no julgamento do HC 89503/RS, com relatoria do Ministro Cezar Pelluzo.

[3]     Conforme dispõe a súmula nº 473 do STJ: “A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial”.

 

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Sobre o autor
Luiz Rosado Costa

É oficial do Quadro Complementar de Oficiais do Exército Brasileiro, área de Direito. Graduado em Direito pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), especialista em Aplicações Complementares às Ciências Militares (EsFCEx - 2011) e especialista em Direito Constitucional (UGF - 2013).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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