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Personalidade jurídica e personalidade judiciária: qual é a diferença?

24/10/2015 às 12:38
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A personalidade judiciária confere ao órgão a capacidade de estar em juízo apenas para defender seus interesses institucionais. Assim, caso se trate de pretensão de cunho patrimonial, a competência para atuar em juízo não será do órgão, e sim da pessoa jurídica respectiva.

Resumo: Nosso artigo tem por objetivo esclarecer o significado dos termos “personalidade jurídica” e “personalidade judiciária”, fazendo também um exame da nova Súmula 525 do STJ, que trata da personalidade judiciária das Câmaras Municipais. Criado em abril de 2015, este verbete ganhou a seguinte redação: "A Câmara de Vereadores não possui personalidade jurídica, apenas personalidade judiciária, somente podendo demandar em juízo para defender os seus direitos institucionais". 

Sumário: 1 A personalidade jurídica. 2. A capacidade de ser parte. 3. A personalidade judiciária. 3.1.  Personalidade judiciária das pessoas formais. 3.2. Personalidade judiciária de órgãos públicos. Conclusão. Notas.


1. A personalidade jurídica

No âmbito jurídico, o conceito de personalidade está ligado ao de pessoa. Assim, todo aquele que nasce com vida torna-se uma pessoa, adquirindo personalidade jurídica. Trata-se de um atributo ou qualidade inerente a todo ser humano. A personalidade jurídica pode ser definida como “a aptidão, reconhecida pela ordem jurídica a alguém, para exercer direitos e contrair obrigações”[1], isto é, para titularizar relações jurídicas.

O direito também reconhece personalidade jurídica a certas entidades denominadas pessoas jurídicas, compostas de pessoas físicas ou naturais, que se agrupam para melhor atingir os seus objetivos econômicos ou sociais, como as associações e sociedades. [2]

Veja-se que o Código Civil de 2002 reconhece em seu no art. 1º, que “toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil” (grifo nosso). [3] Dessa forma, é certo afirmar que toda pessoa (física ou jurídica) tem aptidão para exercer direitos e submeter-se a deveres na órbita da ciência do Direito, podendo se apresentar no polo ativo ou passivo de uma relação jurídica.

As pessoas jurídicas podem ter personalidade jurídica de direito privado ou personalidade jurídica de direito público. As chamadas pessoas jurídicas de direito público, nos termos dos artigos 41 e 42 do Código Civil, podem ser de direito público interno (ex.: entes federativos, autarquias e fundações públicas) ou externo (ex.: Estados estrangeiros, ONU, MERCOSUL).

Veja-se que os entes federativos (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) são detentores de personalidade jurídica de direito público interno, dispondo de uma série de prerrogativas processuais, podendo figurar numa relação processual como autores ou réus.


2. A capacidade de ser parte

No processo civil brasileiro, a regra fundamental sobre a capacidade de ser parte encontra-se no art. 7º do CPC/73, verbis:

CPC/73. Art. 7º Toda pessoa que se acha no exercício dos seus direitos tem capacidade para estar em juízo.

Como bem observou Carvalho Filho, “a regra, é verdade, alude à capacidade de estar em juízo, exigindo a lei que, para tê-la, a pessoa deve estar no exercício dos seus direitos. Mas é verdade também que a capacidade de estar em juízo é um “plus” em relação à capacidade de ser parte. Desse modo, é possível extrair do dispositivo a regra pertinente a esta última capacidade”.[4]

Observe que a redação do art. 7º do CPC, ao referir-se à pessoa, atrelou a capacidade de ser parte ao fato de o participante da relação processual ser dotado de personalidade. Daí se infere que, em princípio, só tem capacidade de ser parte a pessoa (física ou jurídica). Vale dizer: como regra, os sujeitos da relação processual devem ser pessoas, físicas ou jurídicas. [5] 


3. A personalidade judiciária

3.1 Personalidade judiciária das pessoas formais

A lei processual admite também como dotados de capacidade de ser parte alguns conglomerados jurídicos, que, apesar de não possuírem personalidade jurídica de direito material, são autorizados a figurar na relação processual como se fossem pessoas. São as chamadas pessoas formais, ou seja, não têm a personalidade jurídica de direito material, mas equivalem formalmente às pessoas no que toca à possibilidade de figurarem no processo. [6]

A doutrina e a jurisprudência passaram a afirmar que as pessoas formais, embora destituídas de personalidade jurídica, seriam detentoras de personalidade judiciária. Isso porque, muito embora não tenham personalidade de direito material, possuem capacidade de ser parte, sendo tratadas como pessoas na relação processual.

Entretanto, é necessário que a lei indique expressamente os conglomerados jurídicos detentores de capacidade jurídica. Como exemplos de pessoas formais podemos citar, dentre outros, a massa falida (art. 12, III, CPC), o espólio (art. 12, V, CPC), o condomínio (art. 12, IX, CPC) e a sociedade sem personalidade jurídica (art. 12, VII, CPC). Nesses casos, o código confere a capacidade para ser parte e para estar em juízo, indicando as pessoas físicas que as representarão, ativa e passivamente.

3.2 Personalidade judiciária de órgãos públicos

Cumpre indagar: os órgãos públicos podem ter capacidade de ser parte?

Pode-se definir o órgão público como um centro de competência, pertencente a uma entidade estatal, que congrega atribuições exercidas pelos agentes públicos que o integram. Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello “os órgãos nada mais significam que círculos de atribuições, os feixes individuais de poderes funcionais repartidos no interior da personalidade estatal e expressados através dos agentes neles providos”. [7]

Portanto, o órgão público não tem personalidade jurídica própria, já que integra a estrutura da Administração Direta, existindo relação de hierarquia e subordinação perante a administração central. Vale dizer: o órgão público é um ente jurídico despersonalizado, pois apenas integra a estrutura administrativa da pessoa jurídica do qual faz parte.

Ora, tendo em vista que o órgão público não é pessoa, em princípio não pode ser parte no processo. Seus atos são imputados à pessoa jurídica à qual pertencem. Trata-se da regra da imputação volitiva de Gierk - segundo a qual as ações cometidas pelos agentes e servidores públicos são atribuídas à pessoa jurídica a que ele esteja ligado.[8]

A despeito dessa regra geral, tanto doutrina quanto a jurisprudência pátria admitem situações específicas em que um órgão público poderá, excepcionalmente, ter capacidade de ser parte. Nesse caso, diz-se que o órgão público possui personalidade judiciária.

Podemos dizer que a personalidade judiciária é uma criação doutrinária acolhida pela jurisprudência no sentido de admitir que entes sem personalidade jurídica possam atuar em juízo para defender os seus direitos institucionais próprios e vinculados à sua independência e funcionamento.

 Para que seja reconhecida personalidade judiciária a um órgão publico, são necessários alguns requisitos, a saber: a) é preciso que o órgão seja integrante da estrutura superior da pessoa federativa; b) que tenha competências outorgadas pela Constituição; e c) que esteja defendendo seus direitos institucionais – entendidos esses como sendo os relacionados ao funcionamento, autonomia e independência do órgão.

Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça publicou a Súmula 525 para afirmar a personalidade judiciária das Câmara de Vereadores nos casos em que atuarem com fins estritamente institucionais, entendidos esses como sendo os relacionados ao funcionamento, autonomia e independência do órgão. O verbete ganhou a seguinte redação: "A Câmara de Vereadores não possui personalidade jurídica, apenas personalidade judiciária, somente podendo demandar em juízo para defender os seus direitos institucionais". 

Cumpre ressaltar que, nos casos em que a questão for de natureza meramente patrimonial, a capacidade de ser parte será da pessoa pública, e não de seus órgãos. Aplica-se, nesse caso, o princípio da imputação volitiva de Gierk. Exemplo: imagine-se que uma viatura da Câmara Municipal causa danos a alguém. Nesse caso, a capacidade de ser parte deve ser atribuída a quem tenha personalidade jurídica, isto é, ao Município, e não à Câmara – que é um órgão público integrante da estrutura do Município. 

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CONCLUSÃO

À luz do exposto, podemos concluir que a capacidade jurídica para exercer direitos e contrair obrigações pode decorrer: 1) da personalidade jurídica; ou 2) da personalidade judiciária. Vejamos:

  1. Personalidade jurídica - A personalidade jurídica pode ser definida como a aptidão genérica de adquirir direitos e assumir obrigações na ordem civil. A ideia de personalidade jurídica está, em princípio, ligado ao de pessoa. Assim, todo aquele que nasce com vida torna-se uma pessoa, adquirindo personalidade jurídica. Entretanto, o direito também reconhece personalidade às pessoas jurídicas. Estas podem ter personalidade jurídica de direito privado ou personalidade jurídica de direito público. Veja-se que o Código Civil de 2002 reconhece em seu no art. 1º, que “toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil”
  2. Personalidade judiciária – A personalidade judiciária trata-se de uma criação doutrinária acolhida pela jurisprudência no sentido de admitir que entes sem personalidade jurídica possam, excepcionalmente, atuar em juízo.
  • Personalidade judiciária das pessoas formais: Possuem personalidade judiciária as chamadas pessoas formais, isto é, aqueles conglomerados jurídicos, que, apesar de não possuírem personalidade jurídica de direito material, são autorizados por lei a figurar na relação processual como se fossem pessoas.
  • Personalidade judiciária de órgãos públicos: Podem possuir personalidade judiciária alguns os órgãos públicos – que, como se sabe, são entes despersonalizados. Para que seja reconhecida personalidade judiciária é preciso que o órgão público: a) seja integrante da estrutura superior da pessoa federativa; b) tenha competências outorgadas pela Constituição; c) esteja defendendo seus direitos institucionais - ou seja, aqueles relacionados ao funcionamento, autonomia e independência do órgão.

Exemplo: a Câmara de Vereadores (órgão público integrante da estrutura administrativa do Município) não possui personalidade jurídica, mas apenas personalidade judiciária, podendo atuar em juízo apenas para defender seus interesses institucionais. Nesse sentido é o comando da recém publicada Súmula 525 do STJ.

Vale frisar: a personalidade judiciária confere ao órgão a capacidade de estar em juízo apenas para defender seus interesses institucionais. Assim, caso se trate de pretensão de cunho patrimonial, a competência para atuar em juízo não será do órgão, e sim da pessoa jurídica respectiva.


NOTAS

[1] BEVILÀQUA, Clóvis. Teoria Geral do Direito Civil, Rio de Janeiro: ed. Rio, 1975, p. 78-79.

[2] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, Vol. 1 - parte geral, 10. ed., São Paulo : Saraiva, 2012, p. 88.

[3] Aqui, cumpre registrar o seguinte: “Em necessária perspectiva civil-constitucional, a personalidade não se esgota, destarte, na possibilidade de alguém (o titular) ser sujeito de direitos, mas, por igual, relaciona-se com o próprio ser humano, sendo a consequência mais relevante do princípio da dignidade da pessoa humana. (...) Cuida-se de uma aptidão genericamente reconhecida: toda pessoa é dotada de personalidade. É a possibilidade de ser titular de relações jurídicas e de reclamar o exercício da cidadania, garantida constitucionalmente, que será implementada (dentre outras maneiras) através dos direitos da personalidade.” (...) Afirma-se, pois, “que a personalidade não se resume à possibilidade de ser titular de direitos e obrigações, ou seja, ao conceito abstrato de pessoa próprio do ideário oitocentista, importando o reconhecimento de direitos que tocam somente ao ser humano, expressão de sua própria existência”, no dizer de Rafael Garcia Rodrigues.” (FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Direito Civil : teoria geral. 9ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 179-180).

[4] Cf. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Personalidade Judiciária de Órgãos Públicos. Revista da EMERJ, v.5, n.19, 2002, p. 162. Disponível em: http://www.emerj.tjrj.jus.br. Acesso em 10/10/2015.

[5]  Idem.

[6] Ibdem, p. 163.

[7] Cf. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Apontamentos sobre os agentes públicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1975, p. 69.

[8] O Princípio da Imputação Volitiva tem como idealizador o alemão Otto Gierke (1841-1921), que baseou-se na noção de imputação volitiva. Otto Gierke comparou o corpo humano ao Estado: cada repartição estatal funciona como uma parte do todo, semelhante aos órgãos do corpo humano. Daí se originou o termo "órgão público”.

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Sobre a autora
Alice Saldanha Villar

Advogada, colunista e articulistas de diversas revistas jurídicas e periódicos. Autora dos livros “Direito Sumular - STF”, “Direito Sumular - STJ” e "Direito Bancário" - Editora JHMIZUNO, São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VILLAR, Alice Saldanha. Personalidade jurídica e personalidade judiciária: qual é a diferença?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4497, 24 out. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/43552. Acesso em: 28 mar. 2024.

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