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As implicações jurídicas da exigência do cheque caução pelos estabelecimentos de saúde

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18/10/2003 às 00:00
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DAS ALTERNATIVAS VIÁVEIS

Embora todos esses argumentos sejam relevantes para que o debate seja feito dentro da racionalidade jurídica, alguns magistrados de nossos Tribunais não considera válida a exigência do cheque caução em hipóteses de pacientes que possuem planos e seguros de saúde. Entretanto, de forma nenhuma é possível afirmar que esse entendimento é pacífico.

Uma alternativa proposta por alguns profissionais consiste exatamente na exigência de um sinal ou princípio de pagamento. Ao invés do consumidor fornecer um cheque representando a totalidade do valor do serviço a ser executado, seria assinado tão somente um cheque traduzindo um princípio de pagamento, podendo o hospital compensar o título de crédito na hipótese da operadora não autorizar o procedimento.

Nessa hipótese, seria fundamental a celebração de um contrato de prestação de serviço por via do qual o consumidor ficaria ciente que o cheque seria compensado como sinal caso a operadora não autorizasse a internação ou o procedimento médico necessário. O consumidor, portanto, já teria plena ciência de tal situação, impedindo a incidência do disposto no art. 46 do Código de Defesa do Consumidor, que dispõe:

"Art. 46. Os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão do seu sentido e a alcance."

A cláusula que implica na obrigação do consumidor arcar com o pagamento dos valores na hipótese de recusa da operadora deve ser redigida com destaque, nos termos do art. 54 do CDC, devendo todo o conteúdo do contrato ser redigido em termos claros e com caracteres ostensivos de modo a facilitar sua compreensão pelo consumidor.

Cumprindo essas formalidades e buscando sempre que possível manter o consumidor constantemente informado acerca da conta hospitalar e sua evolução, como é possível sustentar a ilegalidade do sinal a ser exigido pela instituição hospitalar? Afinal de contas, trata-se de um negócio jurídico condicional, possuindo plena validade jurídica caso ocorra a condição prevista contratualmente, qual seja a negativa da operadora de custear as despesas.

O consumidor precisa ser informado expressamente desse risco, sendo esse ônus imputado ao hospital. Assim, é importante que o consumidor seja informado por escrito a respeito da possibilidade de negativa da operadora, inclusive no tocante a materiais cirúrgicos, evitando qualquer alegação de ausência de conhecimento quanto a esse aspecto.

Em que pesem essas considerações, é possível afirmar que inclusive a exigência desse título de crédito como sinal ou princípio de pagamento foi vedada pela Resolução 44 da ANS. Ou seja, somente após a obtenção da negativa de cobertura, que deve ser providenciada o quanto antes, é que é possível exigir a assinatura do documento que garanta o pagamento da dívida, eis que a Resolução veda esse tipo de exigência somente no ato ou anteriormente à prestação do serviço.

Entendo que a interpretação da Resolução da ANS deve ser orientada pela razoabilidade e pela sua finalidade.

Qual foi a finalidade desse ato normativo?

A meu ver, foi exatamente com o escopo de proibir que um paciente titular de um plano de saúde ou seus dependentes venham a ser submetidos a obrigação de fornecer uma garantia quando possuem a legítima expectativa de que a operadora irá acobertar integralmente o tratamento.

Contudo, e quando o paciente já tem ciência da inexistência de cobertura contratual? Obviamente, se a operadora já negou a autorização antes mesmo da prestação do serviço ou se trata de um procedimento que o próprio contrato ou a legislação não contempla como obrigação da operadora de acobertar, entendo que a exigência do sinal ou de uma garantia não poderia ser considerada irregular, eis que o usuário estava fora do espectro de proteção do plano de saúde e propositadamente manifestou seu intento de ser considerado um paciente particular ou assumir o pagamento daquelas despesas de forma extraordinária ao pagamento da operadora.

É importante nessa hipótese harmonizar os interesses das partes contratantes, devendo ser valorizadas condutas que propiciem a satisfação das expectativas dos parceiros contratuais. O abuso de direito não ocorre somente por parte do consumidor, podendo surgir comportamentos matreiros e maliciosos de pessoas que buscam em uma instituição de saúde privada um atendimento gratuito, impondo vultosos prejuízos financeiros aos hospitais.

Trata-se de uma interpretação que se mostra mais consentânea com o bom senso e com a razoabilidade, sob pena de tal Resolução transmudar-se em norma draconiana que visa a regular inclusive a relação jurídica alheia ao plano de saúde como se ato legislativo fosse em uma clara subversão da divisão de poderes constitucionalmente consagrada.

Outra medida que deve ser adotada pelos hospitais dizem respeito a elaboração dos contratos de prestação de serviços hospitalares, contendo a seguinte cláusula:

"O CONTRATANTE deverá entregar, no prazo de ____________, contados do atendimento, a guia de internação emitida pela operadora do plano de saúde, sob pena de ser obrigado a arcar com o pagamento integral de todas as despesas decorrentes de sua internação no estabelecimento hospitalar, submetendo-se às regras e preceitos relativos ao atendimento particular.

O CONTRATANTE manifesta concordância que os exames, atendimentos, procedimentos cirúrgicos e especiais, taxas, materiais e medicamentos, inclusive órteses e próteses, bem como diárias e serviços, não autorizadas pela operadora de plano de saúde, serão cobrados de acordo com a tabela de preços de atendimentos particulares praticadas pelo Hospital."

Através do contrato de prestação de serviços o hospital dispõe de um instrumento jurídico eficaz para exigir o pagamento das despesas médico-hospitalares, mesmo que o paciente não tenha assinado qualquer garantia. É importante que esse contrato seja elaborado de acordo com as peculiaridades de cada hospital, contendo informações claras e principalmente dispondo acerca das limitações aos direitos dos pacientes.

Além do mais, o hospital pode incluir o nome do consumidor em serviços de proteção ao crédito como mais um instrumento para obter o pagamento dos valores devidos.

Assim sendo, embora existam argumentos jurídicos que possam sustentar a ilegalidade da Resolução Normativa 44 da ANS, até que a mesma seja invalidada recomenda-se a elaboração de contratos de prestação de serviços por parte das entidades hospitalares, devendo tais instrumentos ser mantidos mesmo na hipótese de revogação daquele ato normativo.

Do ponto de vista jurídico, o contrato de prestação de serviço, acompanhado das contas hospitalares, é perfeitamente eficaz para fundamentar uma ação de cobrança na via judicial. O cheque caução por si só não pode ser considerado como título executivo extrajudicial para fundamentar uma ação executiva.

Isso porque, no momento da sua emissão, o valor dos serviços a serem prestados não é certo, uma vez que não podem ser completamente determinados naquele momento. A natureza da intervenção médica dependerá do diagnóstico, que pode não ser definitivo, das características pessoais do paciente e da resposta ao tratamento, entre outros. Assim, no momento de sua emissão, o cheque, apesar de conter uma quantia certa, não goza dessa certeza e liquidez, por estar vinculado a um negócio jurídico incerto em seu conteúdo.

O cheque nessas condições perde a sua qualidade mais útil que é a possibilidade de ser executado sem questionamento de seu conteúdo. Por estar ligado ao contrato que lhe deu origem, pode ser discutido judicialmente em seu valor da mesma maneira em que pode ser discutido o contrato de prestação de serviços médico-hospitalares. Ele terá valor de um documento comum (obrigação quirografária) que terá que passar por um processo de conhecimento antes de ser constituir num título executável.

Dessa forma, o hospital não poderá utilizar-se do cheque-caução para instruir uma ação de execução, podendo, contudo, buscar a prestação jurisdicional por intermédio de uma ação de cobrança ou mesmo uma ação monitória. É importante também destacar que o contrato de prestação de serviço médico-hospitalar, mesmo que assinado por duas testemunhas, também não pode servir como título executivo, eis que o valor do contrato dificilmente pode ser definido com precisão no momento da internação.

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Outra questão que pode ser levantada pelo emitente do cheque no momento de sua execução são as chamadas exceções que o emitente tem em relação ao hospital. Haverá a possibilidade de oposição de exceções pessoais sempre que credor e devedor tenham entre si relações jurídicas, ou seja, que não tenham como vínculo entre si apenas o cheque em questão, mas que entre eles também haja relações outras que possam ser alegadas quando da cobrança.

Com efeito, se estivermos analisando simplesmente a questão jurídica não restam dúvidas de que o hospital está mais bem amparado com um contrato de prestação de serviços bem elaborado do que com um mero cheque caução que sequer pode ser considerado título executivo e não explicita absolutamente nada acerca das obrigações das partes contraentes. Ademais, o contrato atende os preceitos do Código de Defesa do Consumidor no tocante a devida informação.

Por outro lado, a questão relativa a coerção para que a conta seja paga poderá ser obtida mediante a inclusão do nome dos devedores nos cadastros de restrição ao crédito, devendo tal informação constar no contrato acerca de sua possibilidade.


Notas

01. Lei 9.784/99:

Art. 11. A competência é irrenunciável e se exerce pelos órgãos administrativos a que foi atribuída como própria, salvo os casos de delegação e avocação legalmente admitidos.

Art. 13. Não podem ser objeto de delegação:

I - a edição de atos de caráter normativo;

02. Constituição Federal:

Art. 5.

LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.

03. Lei 9.784/99: Art. 68. As sanções, a serem aplicadas por autoridade competente, terão natureza pecuniária ou consistirão em obrigação de fazer ou de não fazer, assegurado sempre o direito de defesa.

04. Veja o entendimento externado por um magistrado, posteriormente confirmado pelo Tribunal de Justiça do DF, na Apelação Cível n. 2000 07 1 012580-3, em 26 de agosto de 2002:

"A afirmação de que assinou o ajuste autorizando os procedimentos com volição viciada ante o estado de saúde de seu neto não merece guarida judicial. Ao Embargante era possível procurar a rede pública de hospitais. A eleição do Hospital Embargado, particular, foi livre e enseja a contraprestação pelo pagamento. Seu neto recebeu alta e está saudável. Nada há nos autos que indique procedimento equivocado do Hospital. Ao revés prestou o atendimento adequado. Este Juízo lamenta a condição financeira do Embargante. Lamenta sinceramente as razões do Embargante que ensejaram a eleição do Hospital Particular, entendendo que seu neto seria melhor assistido. Mas não pode imputar ao Embargado o dispêndio havido voluntariamente pelo Embargante. Há o débito. Cumpre ao Embargante o pagamento."

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Sobre o autor
Roberto Carvalho

advogado do escritório Manucci, Carvalho e Rocha Advogados Associados, sócio-diretor da Juris Consultores Consultoria Empresarial, professor do IEC/PUC Minas

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, Roberto. As implicações jurídicas da exigência do cheque caução pelos estabelecimentos de saúde. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 107, 18 out. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4421. Acesso em: 29 mar. 2024.

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