Artigo Destaque dos editores

Direitos humanos e cultura: uma análise segundo o pensamento de pluralidade de Hannah Arendt

Exibindo página 2 de 2
08/05/2016 às 16:42
Leia nesta página:

Direitos Humanos e cultura: uma analise segundo o pensamento de pluralismo de Hannah Arendt.

Hannah Arendt foi uma das maiores pensadoras de todos os tempos, em sua filosofia ela analisou o homem e sua interação com o mundo, sobretudo os indivíduos diante da sua condição humana. Na sua obra A Condição Humana (1958), ela propõe e estuda os conceitos inerentes a tal condição, são eles: a  ação, a liberdade e igualdade perante o ideal de dignidade que é a fonte dos Direitos Humanos.  

Conforme Arendt, os Direitos Humanos, declarados no século XVIII, possuem problemas já em sua própria fundamentação, a própria Declaração dos Direitos do Homem representou a previsão da emancipação do homem, ao passo que naquele momento a o fato de possuir a condição humana e ser dotado de dignidade propiciou que o homem fosse à fonte da lei. Assim, o individuo não estava limitado às regras provenientes de uma divindade, nem da vontade de um soberano, o homem havia se libertado de qualquer tutela era dotado de direitos simplesmente por ser humano. No entanto, como dispõe Arendt (1906-1975. p, 324) “mal o homem havia surgido como ser completamente emancipado e isolado, que levava em si mesmo a sua dignidade, sem referência a alguma ordem superior que o importasse, diluía-se como membro de povo”, visto que “surgia um paradoxo contido na declaração dos direitos humanos inalienáveis: ela se referia a um ser humano “abstrato” , que não existia em parte alguma”.

Nesse sentido, a concepção de Direitos Humanos que emanam do homem ou da condição humana, de um ser que é abstrato e não definível, opõe-se a condição humana de pluralidade, essencial a ação humana. Hannah (1906- 1975. p 16) define pluralidade como: “A pluralidade é a condição da ação humana pelo fato de sermos todos os mesmo, isto é, humanos, sem que ninguém seja exatamente igual a qualquer pessoa que tenha existido, exista ou venha existir”, diante desse conceito fica evidente que é requisito da condição humana a premissa de singularidade, em que os humanos são indivíduos dotados de características especificas e únicas. O ser diante da sua humanidade, não pode ser delimitado por concepções universais, visto que possuí peculiaridades inerentes a sua existência.

Sob esse aspecto, a própria estruturação dos Direitos Humanos na ideia de homem, abstrata e universal, que exclui qualquer particularidade e singularidade dos indivíduos que existem no mundo real, vai de encontro à própria atividade dignificadora do ser humano denominado pela autora de a ação. Brito (2006) destaca que:

“ A ação é política em sua natureza,  pois é a interação peculiar do ser humano concreto e singular com outros homens tão concretos e  diversos quanto existem em uma comunidade real. E é precisamente por essa característica que cada indivíduo, concreto e singular, emana dignidade; porque é único, e não uma cópia homogênea e  substituível de uma natureza genérica.”

Dessa maneira, na perspectiva arendtiana, os Direitos Humanos, perdem o próprio  sentido de dignidade, visto que deveriam ser um reflexo da dignidade da pessoa humana, pensados e dispostos em harmonia com a pluralidade humana, não de maneira universal.

A discussão entre a ideia de Direitos Humanos universais frente à diversidade cultural pode ser analisada sob o pensamento de pluralidade elencado por Hannah Arendt. A cultura é algo inerente ao ser humano, esta enraizada na nossa condição humana e, nós humanos somos seres condicionados, como dispõe a filosofa ( 1906-1975. p,17) : 

Os homens são seres condicionados: tudo aquilo com o qual eles entram em contato torna-se imediatamente uma condição para a sua existência. O mundo no qual transcorre a vita activa consiste em coisas produzidas pelas atividades humanas; mas, constantemente, as coisas que devem sua existência exclusivamente aos homens também condicionam seus autores humanos.

Diante do exposto, é possível elucidar que as expressões culturais são essenciais para a condição humana. Sendo a cultura produção do homem e fruto de sua atividade no âmbito social, é essencial aos indivíduos, indispensável à dignidade da pessoa humana e, consequentemente, imperiosa para efetivação dos Direitos Humanos. Ou seja, a cultura é condição da existência humana, Arendt (1906-1975. p, 17) esclarece que :

Além das condições nas quais a vida é dada ao homem na Terra e, até certo ponto, a partir delas os homens criam as suas próprias condições que, a despeito de sua variabilidade e sua origem humana, possuem a mesma força condicionante das coisas naturais. O que quer que toque a vida humana ou entre em duradoura relação com ela, assume imediatamente o caráter de condição da existência humana.

A cultura sendo criação humana, expressão da originalidade do indivíduo, dotada de caráter e condição da existência, pois, é demonstração da pluralidade de cada individuo deve ser protegida. Sob esse aspecto, seria função primordial dos Direitos Humanos zelarem pela efetivação e realização das multiplicidades culturais, no entanto, a sua atual concepção universal vai contra o ideal de pluralidade; em que somos dotados de características únicas, personalíssimas, assim, a eficácia de tais direitos não é alcançada.

 Em sua obra enfatiza que o direito fundamental de cada  indivíduo, antes de qualquer um dos direitos enumerados em declarações, é o direito a ter direitos, isto é,  o direito de pertencer a um comunidade disposta e capaz de garantir-lhe qualquer direito.  Dispõe também que para a efetividade das declarações, leis, normas e todo documento em que o poder seja perpetuado às palavras devem está em harmonia com os atos, esclarece Arendt (2011. p, 64) que:

E o poder não pode ser armazenado e mantido em reserva para casos de emergência, como os instrumentos de violência: só existe a sua efetivação. O poder só é efetivado enquanto palavra e o ato não se divorciam, quando as palavras não são vazias e os atos não são brutais, quando as palavras não são empregadas para velar intenções mas para revelar realidades , e os atos não são usados para violar e destruir , mas para criar relações e novas realidades

Assim, para que ocorra uma efetividade da Declaração Universal dos Direitos Humanos, faz-se necessário que o conteúdo do documento esteja de acordo com a realidade fática para que a cultura como condição do homem e as diversidades culturais como expressão da humanidade sejam preservadas, o conteúdo da Declaração não deve ser utilizado para mostrar o domínio dos países pertencentes a ONU contra as demais nações e culturas, mas para expor a realidade do mundo que é uma realidade plural. Dessa maneira, os atos devem ser utilizados para criar uma nova e melhorada perspectiva entre os embates culturais e a condição atual de Direitos Humanos universais, pois tal concepção não leva em questão as multiplicidades da condição humana e da sua multiplicidade cultural.

Para solucionar os problemas decorrentes da real efetividade dos Direitos Humanos, visto que o universalismo não está apto, Hannah Arendt propõe que deve ser estabelecido o ideal de humanidade, que possui como finalidade o estabelecimento de uma humanidade comum, que deve englobar todos os seres humanos e se caracterizar precisamente por ser um conjunto de elementos diversos. Sobre esse aspecto elucida Brito (2006) :

Tal forma de conceber a humanidade é um caminho para superar os problemas levantados pela forma tradicional de se lidar com os direitos humanos. Esses deixam de se embasar em uma ideia abstrata e contrária à condição do ser humano, adquirindo uma abrangência que visa envolver cada homem particularmente. Esse envolvimento, por sua vez, impõe o compromisso de se fazer parte dessa comunidade abrangente. Cada homem é responsável por pertencer à humanidade, pois todas as suas  ações atingirão à totalidade de pessoas de que faz parte, e serão reflexos de si mesmo. Cada homem é,  por isso, solidário na responsabilidade comum e recíproca. A dignidade de se pertencer a comunidade traz consigo, categoricamente, responsabilidade, porque dignidade e responsabilidade são correlatas 

Diante do ideal de humanidade elucidado pela autora, a dignidade humana e os Direitos Humanos, tornam-se questões politico práticas; ou seja, são essenciais para a construção de uma comunidade em que ocorra a garantia da expressão cultural de cada individuo . No entanto, a necessidade dessa construção em uma sociedade cultural engloba a totalidade dos seres humanos, coexistindo com a permissão e a possibilidade da ação de cada um de seus componentes para a que dessa maneira ocorra a efetivação dos direitos a diversidade cultural.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos


Considerações finais

A cultura é um fenômeno fundamental para o desenvolvimento da condição humana, elementar para a formação da identidade dos indivíduos, inerente a dignidade da pessoa e essencial para o desenvolvimento das potencialidades dos homens em sociedade. Assim, a preservação e perpetuação da cultura considerada como Direito Humano são protegidas pela ONU e estão dispostas na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.

A Declaração adota uma concepção universalista, quanto à interação dos Direitos Humanos em determinada cultura, que por vezes não respeita o contexto histórico, geográfico, politico, ou socioeconômico, em inúmeros casos é imposta as culturas diversas e possui o pressuposto para justificar os processos de dominação de determinados povos em relação a outros, centrados apenas na tutela de direitos civis e políticos, revelando-se ultrapassados frente a um mundo multicultural.

A perspectiva multiculturalista está em maior consonância com a realidade de mundo intercultural em que vivemos, visto que na atualidade existe uma ampliação dos direitos considerados inerentes aos seres humanos, que passam a incorporar os direitos econômicos, sociais e culturais, segundo uma perspectiva integral, local e intercultural.

Quanto à relação Direitos Humanos e cultura, a filosofia de Hannah Arendt contribui para analise de tal tema sob um enfoque distinto, observando as concepções da condição humana e de pluralidade. Isso permite um estudo mais profundo segundo os distintos aspectos que vão além das simples concepções das normas. Observando que a pluralidade nos atribui caráter de diferença, ter a condição humana torna os seres distintos de tudo que já existiu, exista ou venha existir, sob o pressuposto que a cultura é atributo da pessoa e essencial a sua dignidade, deve ser preservada. Hannah Arend, também contribui na analise da efetividade dos documentos que legitimam a aplicação dos direitos humanos no âmbito internacional e propõe o ideal de humanidade em contradição ao universalismo adotado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Diante do estudo das relações existentes entre os Direitos Humanos e as multiplicidades culturais, faz-se necessário, atualmente, compreender a ideia que todas as culturas possuem a sua concepção de dignidade e que todas elas devem ser respeitadas, buscando um equilíbrio entre os pressupostos  elencados na Declaração de 1948, a interpretando de maneira ponderada, procurando o enriquecimento das pluralidades culturais, em que exista o respeito às diferenças culturais de cada sociedade, a redução das desigualdades e a inclusão dos diversos povos e culturas no âmbito internacional de proteção aos direitos.

Assim, as politicas de direitos humanos devem, por meio de diálogos com as diversas culturas, buscar alternativas para a transformação da normatividade jurídica internacional que tornem os direitos humanos legítimos e aplicáveis a todas as realidades sociais, protegendo a dignidade da pessoa segundo a perspectiva cultural em que está inserida. 


Referências Bibliográficas

ARENDT, H. A condição humana. Trad. Roberto Raposo. RJ: Forense Universitária, 2001.

 ________. Origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. SP: Cia das Letras, 2000.

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 2004. 

BRITO, Renata Romolo. Os Direitos Humanos na perspectiva de Hannah Arendt. Revista Ética & Filosofia Política, V 9, n 1 , junho/2006.

COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

GEERTZ, C. O impacto do conceito de cultura no conceito de homem. In: The Interpretation of Cultures. Nova York: Basic Books, 1973.

HALL, Stuart. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003.

MARCONI, Marina de Andrade, PRESOTTO, Zelia Maria Neves. Antropologia: uma introdução. 7 ed. São Paulo : Atlas, 2011.

 PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

________. Direitos humanos e o direito constitucional internacional.12 ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de direito internacional dos direitos humanos. vol. III. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 1997.

SANTOS, Boaventura de Souza. Uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Lua Nova, v 39.

BRITO, Renata Romolo. Os Direitos Humanos na perspectiva de Hannah Arendt. Revista Ética & Filosofia Política, V 9, n 1 , junho/2006.

WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico, direitos humanos e interculturalidade. Revista Sequência, n53, dezembro/ 2006.

Assuntos relacionados
Sobre a autora
Betânia Gusmão Mendes

Advogada sócia do escritório Mota & Gusmão. Graduada em Direito pelas Faculdades Santo Agostinho, Montes Claros- MG.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MENDES, Betânia Gusmão. Direitos humanos e cultura: uma análise segundo o pensamento de pluralidade de Hannah Arendt. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4694, 8 mai. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/45526. Acesso em: 28 mar. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos