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A recuperação judicial e a autonomia do crédito tributário:

análise da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça

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01/04/2016 às 10:42
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Este breve estudo aborda a questão da autonomia da cobrança do crédito tributário no procedimento falimentar da recuperação judicial e como o STJ tem se manifestado a respeito.

Introdução

A Lei 11.101/2005 passou a regulamentar, no país, os procedimentos de recuperação extrajudicial e judicial de sociedades empresárias e empresários, bem como a falência, substituindo-se ao antigo Decreto-lei 7661/45. Foram alterados inúmeros conceitos e institutos jurídicos, extinta a concordata e a continuação dos negócios pelo falido, bem como foram introduzidas a sistemática de recuperação judicial e extrajudicial de empresas.

Conforme se verá a seguir, a conciliação do interesse público, representado pela arrecadação tributária, com a necessidade de desburocratização e de atribuição de celeridade ao procedimento de superação da situação de crise econômico-financeira nas empresas, ainda não encontrou um equilíbrio definitivo, estando em pleno debate na comunidade jurídica.

1.    O instituto da recuperação judicial e seu aspecto procedimental

A recuperação judicial é um instituto de direito empresarial cujo objetivo é viabilizar a superação de situações de crises econômico-financeiras do empresário ou da sociedade empresária, de forma que seja possível a manutenção da fonte produtiva, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo a preservação da empresa, sua função social e o fomento à atividade econômica, nos termos do art. 47 da Lei 11.101/2005.

Para tanto, o devedor realiza o pedido de recuperação judicial ao juízo competente, apresentando sua situação patrimonial, as razões de sua crise econômico-financeira e outros documentos (art. 51, Lei 11.101/2005). Estando adequada a documentação, o juiz deferirá o processamento da recuperação judicial, nomeando um administrador judicial e suspendendo todas as ações ou execuções contra o devedor. Inicia-se ainda, neste momento, o prazo de sessenta dias para que o devedor apresente o plano de recuperação, no qual deverá ser apresentado o laudo econômico-financeiro e de avaliação dos bens e ativos do devedor, além de discriminados os meios para a recuperação da empresa, demonstrando a viabilidade econômica de sua recuperação (art. 53, Lei 11.101/2005).

Ato contínuo, o juiz determinará a publicação de edital contendo aviso aos credores do devedor sobre o recebimento do plano de recuperação e abrirá prazo para eventuais manifestações e objeções (art. 53, parágrafo único, Lei 11.101/2005). Aprovado o plano pelos credores ou decorrido o prazo sem objeções, o devedor deverá apresentar certidões negativas de débitos tributários (art. 57, Lei 11.101/2005) e, cumpridas as exigências da lei, o juiz concederá a recuperação judicial do devedor, obrigando o devedor e todos os seus credores à observância do plano de recuperação. 

O devedor, então, permanecerá em recuperação judicial até que se cumpram todas as obrigações previstas no plano que se vencerem até dois anos depois da concessão da recuperação judicial (art. 61, Lei 11.101/2005). Uma vez cumpridas as obrigações, o juiz decretará por sentença o encerramento da recuperação judicial e determinará as providências cabíveis, entre elas a apresentação de relatório sobre a execução do plano e o pagamento do administrador judicial e das custas judiciais (art. 63, Lei 11.101/2005).


2.    O crédito tributário e a autonomia de sua cobrança

Em que pese o art. 49 da Lei 11.101/2005 determine que estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos em face do devedor, existentes no momento do pedido de processamento da recuperação, ainda que não vencidos, a própria lei falimentar excepciona determinadas categorias de credores, como os credores fiduciários, por exemplo.

Especialmente no que interessa a este trabalho, o art. 187 do Código Tributário Nacional – CTN dispõe que a cobrança judicial do crédito tributário não se sujeita a concurso de credores ou habilitação em falência, recuperação judicial, concordata, inventário ou arrolamento.

Trata-se da denominada autonomia do executivo fiscal, verificada em procedimentos judiciais de cobrança coletiva de créditos nos quais os créditos têm seus vencimentos antecipados e são organizados em classes legais, de forma que somente haverá o pagamento da segunda classe após o pagamento integral da primeira.[1] Nesses casos, o juízo em que tramita o processo é caracterizado por sua universalidade, justamente porque os credores não podem mais ajuizar ações executórias individuais em face do devedor, tendo de se sujeitar ao concurso ou à habilitação de seus créditos no processo de cobrança coletivo.[2]

Nesse sentido, a autonomia da cobrança fiscal consiste em um privilégio do crédito tributário, colocando-o em posição de vantagem em relação aos outros créditos, já que a Fazenda Pública pode ajuizar suas execuções fiscais no juízo competente, sem se submeter ao juízo universal falimentar. Não é por outro motivo que o art. 6º, § 7, da Lei 11.101/2005 prevê que as execuções de natureza fiscal não são suspensas pelo deferimento da recuperação judicial. Igual previsão encontra-se no art. 29 da Lei 6830/1980, também conhecida como Lei de Execuções Fiscais.

Além de prever a autonomia do executivo fiscal em relação ao procedimento de recuperação judicial, o legislador, por meio do art. 57 da Lei 11.101/2005 e com a introdução do art. 191-A no CTN, feita pela Lei Complementar 118/2005, estabeleceu verdadeira garantia ao crédito tributário ao condicionar, conforme dito, a concessão da recuperação judicial à regularização dos débitos fiscais e apresentação de certidões negativas. Ao exigir a apresentação de prova do pagamento de tributos para a prática de determinados atos jurídicos e para a obtenção de certos benefícios legais, acaba-se por criar eficazes meios de cobrança indireta do crédito tributário.[3]

Além disso, o legislador, embora tenha criado um meio de promover o soerguimento das empresas em dificuldade, mediante aprovação de um plano que envolva apenas os credores privados, não o fez em detrimento do pagamento dos créditos de natureza fiscal. Dito de outra forma, as sociedades empresárias e os empresários não podem transacionar e pagar seus credores privados em detrimento da Fazenda Pública, especialmente porque essa não participa da negociação e aprovação do plano de recuperação judicial.

No entanto, reconhecendo que o cumprimento do plano por empresa que passa por dificuldades econômico-financeiras poderia ser substancialmente comprometido pela existência de execuções fiscais em curso e pelo pagamento total de seu passivo tributário, o art. 191-A do CTN determina também a observância do art. 151 – que trata da suspensão da exigibilidade do crédito tributário[4] – e dos arts. 205 e 206 – que tratam das certidões negativas e positivas com efeitos de negativa[5]. Logo, ao exigir a regularidade fiscal para o gozo legal da recuperação judicial, o CTN possibilita ao devedor obter as certidões negativas por meio da suspensão da exigibilidade do crédito tributário.[6]

Dessa forma, a mencionada Lei Complementar 118/2005, alterando o art. 155-A do CTN, trouxe a possibilidade de edição de lei específica relativa ao parcelamento de créditos tributários do devedor em recuperação judicial. Nesse mesmo sentido, o art. 68 da Lei 11.101/2005 prescreve que as Fazendas Públicas e o Instituto Nacional do Seguro Social – INSS poderão deferir, nos termos da legislação específica, parcelamento de seus créditos em recuperações judiciais, na forma dos parâmetros estabelecidos pelo CTN.


3. A questão do parcelamento especial do devedor em recuperação judicial

O parcelamento consiste em uma medida de política fiscal, por meio da qual a Fazenda Pública busca recuperar créditos tributários, criando “condições práticas para que os contribuintes que se colocaram numa situação de inadimplência tenham a possibilidade de voltar para a regularidade, usufruindo os benefícios daí decorrentes”.[7]

É uma das hipóteses de suspensão da exigibilidade do crédito tributário, na forma do art. 151 do CTN, obstando a administração tributária de promover ou prosseguir nos atos executivos tendentes à cobrança coercitiva do que lhe é devido.[8] Cumpre ressaltar que o crédito tributário regularmente constituído tem a sua exigibilidade suspensa, nos casos previstos no Código Tributário, fora dos quais não pode ser dispensada a sua efetivação ou as respectivas garantias, sob pena, inclusive de responsabilidade funcional, na forma da lei, conforme determina o art. 141 do CTN.

Pois bem. Segundo o art. 155-A do CTN, o parcelamento será concedido na forma e nas condições estabelecidas em lei específica do ente federativo com competência para instituição do tributo. Exige-se ainda, quanto ao parcelamento dos créditos tributários do devedor em recuperação judicial, a edição de outra lei específica. Assim, deverá haver, em cada ente federado, a edição de uma lei específica sobre a possibilidade de parcelamento de créditos tributários[9], denominada de lei específica geral, além de uma lei que tratará especificamente do parcelamento dos débitos dos devedores em situação de recuperação judicial.

Essa possibilidade de parcelamento tributário, no âmbito do procedimento de recuperação judicial, somente foi trazida pela Lei 13.043/2014, que ao inserir o art. 10-A na Lei 10.522/2002, regulamentou uma série de condições para que o empresário ou a sociedade empresária que tiverem pleiteado ou tiverem deferido o processamento de recuperação judicial possam parcelar seus débitos junto à Fazenda Nacional.[10]

Não obstante, antes mesmo dessa previsão normativa, a Fazenda Nacional já entendia que, na ausência do parcelamento específico destinado ao devedor em recuperação judicial, dever-se-ia aplicar as regras previstas na lei geral de parcelamento do ente federativo, não podendo, tão somente, neste caso, ser o prazo de parcelamento inferior ao concedido pela lei federal específica, conforme determina o § 4 º do art. 155-A do CTN.


4. A jurisprudência do STJ nas questões fiscais e no procedimento de recuperação judicial

Conforme foi dito, a cobrança de créditos tributários não se suspende pelo deferimento de processamento da recuperação judicial, exigindo-se prova da regularidade fiscal para concessão da recuperação judicial.

A fim de viabilizar a superação da situação de crise do devedor, tanto a Lei 11.101/2005 quanto o CTN autorizam a Fazenda Pública a conceder parcelamento dos seus créditos, observados os parâmetros do CTN e de lei específica. No âmbito federal, essa possibilidade foi somente regulamentada pela 13.043/2014, entendendo a Fazenda Nacional que, por expressa previsão legal, já era possível a aplicação da legislação geral referente ao parcelamento de créditos tributários.

Quando confrontado com a questão, o Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial nº 1.187.404/MT, julgado em 19 de julho de 2013, por meio de sua Corte Especial[11], afastou, de forma unânime, a exigência de apresentação das certidões negativas, autorizando a concessão da recuperação judicial independentemente da apresentação da prova de regularidade fiscal. Tal posicionamento encontrou justificativa na demora do legislador em cumprir o disposto no art. 155-A, § 3º, do CTN, isto é, na inexistência de legislação específica acerca do parcelamento de créditos das Fazendas Públicas e do INSS em sede de recuperação judicial.

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Consignou-se que o descumprimento da exigência de regularidade fiscal somente poderia ser atribuído, ao menos naquele momento, à ausência de legislação específica que disciplinasse o parcelamento em sede de recuperação judicial, não podendo constituir ônus do contribuinte, enquanto omissa a legislação, a apresentação de certidões de regularidade fiscal para que lhe seja concedida a recuperação.

Afirmou-se que muito embora o art. 68 da Lei 11.101/2005 possa sugerir que é faculdade da Fazenda Pública e do INSS a concessão do parcelamento da dívida, especialmente diante do uso do verbo “poder”, a interpretação que melhor se compatibiliza com a operacionalidade da recuperação judicial é no sentido de que o parcelamento do crédito tributário constitui um direito do contribuinte em recuperação, na forma prevista nos §§ 3º e 4º do art. 155-A do CTN.

Quanto à questão da autonomia da execução fiscal, em que pese a lei determine que não há a suspensão das execuções fiscais em face da recuperação judicial nem qualquer vedação legal ao seu prosseguimento com atos constritivos do patrimônio da empresa, o Superior Tribunal de Justiça, por meio da Segunda Seção, passou a entender que os atos que resultem em constrição do patrimônio da empresa recuperanda ficam sujeitos ao juízo da recuperação, sob pena de frustrar este procedimento que objetiva devolver à sociedade comercial as condições para voltar a desempenhar suas atividades.[12]

 Ressalta-se que não se trata de posicionamento unânime, havendo manifestações em sentido contrário. A Primeira Seção, por exemplo, entendeu, no AgRg em Conflito de Competência 112.646/DF, expressamente pela inaplicabilidade dos precedentes da Segunda Seção, de forma que a menos que o crédito tributário seja extinto ou tenha a exigibilidade suspensa, a execução fiscal terá seu regular processamento, mantendo-se plenamente respeitadas as faculdades e liberdade de atuação do juízo por ela responsável.[13]

Quanto à questão referente a necessidade de apresentação das certidões negativas, já após a vigência da Lei 13.043/2014 – que instituiu o regime de parcelamento especial do devedor em recuperação judicial -, o Superior Tribunal de Justiça, pela primeira vez, no Recurso Especial 1.480.599/RS[14], julgado pela 2ª Turma, em 03 de fevereiro de 2015, teve a oportunidade de se manifestar sobre a questão da continuidade da execução fiscal na pendência de recuperação judicial, concluindo que se for constatado que a concessão do plano de recuperação foi feita observando a regularidade fiscal da empresa, isto é, respeitando-se os 57 e 58 da Lei 11.101/2005, a execução fiscal ficará suspensa, em razão da presunção de que os créditos fiscais encontram-se suspensos nos termos do art. 151 do CTN.

Já se o plano de recuperação for deferido sem a comprovação da regularidade fiscal, a execução fiscal terá regular prosseguimento, pela regra do art. 6º, § 7º, da Lei 11.101/05, uma vez que não é possível concluir que a regularização do estabelecimento empresarial possa ser feita exclusivamente em relação aos seus credores privados, em detrimento dos créditos de natureza fiscal.

A questão também foi analisada pela Segunda Seção, que em 13 de maio de 2015, no julgamento do AgRg no CC n.º 136.130/SP, manifestou-se, após intensos debates, no sentido de que edição da referida legislação não repercute na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça a respeito de ser competente o juízo da recuperação para decidir sobre os atos de constrição feitos sobre o patrimônio da empresa, em que pese se trate de executivo fiscal, que não se suspende com o deferimento da recuperação. Argumenta-se que há o perigo de frustrar-se o próprio procedimento recuperacional, devendo os atos de alienação serem de competência do juízo universal, de forma a não prejudicar o cumprimento do plano de reorganização da empresa.

O que se pode concluir é que não há, no Superior Tribunal de Justiça, uniformidade quanto à questão da autonomia do executivo fiscal. A Segunda Seção possui consolidado posicionamento pela competência do juízo universal falimentar para decidir sobre os atos de constrição sobre os bens da empresa em recuperação, apesar de entender que não há a suspensão das ações de execução fiscal pelo deferimento da recuperação judicial.

Quanto à exigência de regularidade fiscal para a concessão da recuperação, essa foi relativizada pelo Tribunal, em face da ausência da legislação específica. Tendo a lacuna normativa sido preenchida, a partir da previsão do parcelamento especial no art. 10-A da Lei 10.522/2002, o Tribunal, na oportunidade em que manifestou, inaugurou nova posição, que entendeu pela suspensão da execução fiscal caso seja concedida a recuperação com prova da regularidade fiscal do devedor, já que assim o crédito tributário restaria protegido. Em não havendo prova do pagamento ou suspensão da exigibilidade do crédito, a Fazenda Pública não poderia ser obstada de perseguir a obtenção de suas receitas.

Tais julgados, salvo melhor juízo, não podem prejudicar o raciocínio de que, pelo menos no âmbito federal, em razão da instituição do parcelamento especial para devedores em recuperação judicial, a lacuna legislativa sustentada pelo Superior Tribunal de Justiça para afastar a exigência da regularidade fiscal foi suprida, de modo que é possível sustentar que é necessária a apresentação das certidões negativas para a concessão da recuperação judicial, conforme determina o art. 57 da Lei 11.101/2005.

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Sobre o autor
Rafael Taveira Oliveira

Procurador da Fazenda Nacional. Formado na Universidade de Brasília (UnB), cursando a Pós-Graduação “Ordem Jurídica e Ministério Público” da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (FESMPDFT).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Rafael Taveira. A recuperação judicial e a autonomia do crédito tributário:: análise da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4657, 1 abr. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/47829. Acesso em: 28 mar. 2024.

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