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Responsabilidade civil do Estado por danos decorrentes da atividade judiciária

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Sumário: 1. Introdução; 2. Noções de responsabilidade estatal extracontratual; 2.1. Responsabilidade objetiva e a teoria do risco administrativo; 2.2. A responsabilidade civil do Estado no âmbito do Poder Judiciário; 2.2.1. O posicionamento do Supremo Tribunal Federal; 2.2.2. O sentido do § 6º do artigo 37 da Constituição Federal de 1988; 3. Jurisdição: poder, função e atividade; 3.1. Atividade judiciária e atividade jurisdicional; 4. Danos decorrentes da atividade judiciária; 4.1. Erro judiciário; 4.1.1. Dolo ou fraude do magistrado; 4.2 Demora da prestação jurisdicional; 5. Indenização e ação regressiva; 6. Considerações finais; 7. Notas; 8. Bibliografia.


1. Introdução

Diante da crescente importância da responsabilidade civil entre os temas de estudo do Direito Civil, numerosas obras dedicaram suas páginas ao debate do assunto. Mais recentemente, aventuraram-se os doutrinadores no que seria o "último reduto da irresponsabilidade civil do Estado" (1), a atividade judiciária.

A "pretensão de monopólio por parte do Estado na produção de normas jurídicas" (2) não condiz com a tese da irresponsabilidade do Estado no âmbito do Poder Judiciário. Se se pretende produzir e, conseqüentemente, aplicar as normas jurídicas, é preciso que haja alguma forma de assegurar ao particular o ressarcimento do dano causado por atuação lesiva do Poder Público no desempenho de suas atividades judiciárias.

Criticaremos, no presente trabalho, a tese da irresponsabilidade do Estado, na medida em que evidenciaremos a teoria do risco administrativo e suas implicações na responsabilidade civil do Estado pelos danos decorrentes da atividade judiciária, bem como os tipos de dano oriundos do mau funcionamento da justiça..


2. Noções de responsabilidade estatal extracontratual

Celso Antônio Bandeira de Mello define a responsabilidade patrimonial extracontratual do Estado como sendo "a obrigação que lhe incumbe de reparar economicamente os danos lesivos à esfera juridicamente garantida de outrem e que lhe sejam imputáveis em decorrência de comportamentos unilaterais, lícitos ou ilícitos, comissivos ou omissivos, materiais ou jurídicos" (3).

"A idéia de responsabilidade do Estado é uma conseqüência lógica inevitável da noção de Estado de Direito" (4). Em se reconhecendo a sujeição de todos, pessoas físicas ou jurídicas, de Direito Público ou de Direito Privado, ao ordenamento jurídico, aceita-se o dever de responder por conduta que venha a transgredir a esfera de proteção jurídica alheia. Tratando-se de comportamento ofensivo com sujeito ativo estatal deve-se garantir "uma equânime repartição dos ônus resultantes do evento danoso, evitando que uns suportem prejuízos oriundos de atividades desempenhadas em prol da coletividade" (5).

Por conseguinte, a responsabilidade extracontratual do Estado fundamenta-se no princípio da isonomia, porque não é justo que danos decorrentes de desempenho de funções públicas prejudiquem apenas alguns indivíduos, visto que visam ao interesse da coletividade. Daí a necessidade de, tendo em vista o restabelecimento do equilíbrio social, indenizar o prejudicado às custas da Fazenda Pública.

A responsabilidade civil extracontratual do Estado está regulada na Constituição Federal de 1988 em seu artigo 37, § 6º. É importante frisar que, em se tratando de pessoa jurídica de Direito Público, as vontades e ações do Estado são manifestadas nas ações e vontades de seus agentes, quando revestidos desta qualidade. Assim, conforme preleciona Maria Helena Diniz, "a relação entre a vontade e a ação do Estado e de seus agentes é de imputação direta dos atos dos agentes ao Estado, por isso tal relação é orgânica" (6).

2.1. Responsabilidade objetiva e a teoria do risco administrativo

A responsabilidade civil do Estado por atos comissivos ou omissivos de seus agentes possui natureza objetiva, já que independe de comprovação de culpa lato sensu. Consoante os ensinamentos de Hely Lopes Meirelles, a doutrina da responsabilidade objetiva do Estado admite três teorias distintas: a teoria da culpa administrativa, a teoria do risco administrativo e a teoria do risco integral. (7) Devido ao prestígio de que goza a teoria do risco administrativo no ordenamento jurídico brasileiro desde a Carta Política de 1946, apenas esta teoria objetiva será abordada no presente trabalho.

Todavia, é importante frisar que houve, na doutrina pátria, uma evolução da responsabilidade civilística, prescrita no artigo 15 do Código Civil e fundada na culpa do funcionário e nos princípios da responsabilidade por fato de terceiro, até a moderna teoria do risco administrativo.

Em virtude de virtude de sua "infra-estrutura material e pessoal para a movimentação da máquina judiciária e de órgãos que devam atuar na apuração da verdade processual" (8), a responsabilidade objetiva é a única capaz de coexistir com a posição do Poder Público ante os seus governados.

A administração pública, no exercício de suas atividades, cria situações de risco para os administrados. Posto que tal atividade é exercida em prol da coletividade, os encargos decorrentes devem ser suportados pela própria coletividade representada na pessoa do Estado. A teoria do risco administrativo surge, nesse sentido, como expressão concreta do princípio da igualdade no Estado Democrático de Direito.

Esclarece Caio Mário da Silva Pereira que "se o funcionamento do serviço público, bom ou mau não importa, causou um dano, este deve ser reparado. Desta sorte, distribuem-se por toda a coletividade as conseqüências danosas do funcionamento do serviço público. É a forma única democrática de repartir o ônus e encargos sociais" (9).

Cumpre ressaltar, contudo, que apesar da prescindibilidade da comprovação de culpa, é preciso que se verifique nexo de causalidade entre a ação ou omissão administrativa e o dano sofrido pelo administrado.

2.2. A responsabilidade civil do Estado no âmbito do Poder Judiciário

É ainda conflituoso o posicionamento da doutrina e da jurisprudência no que diz respeito à responsabilidade civil do Estado no âmbito do Poder Judiciário. Opiniões variam da total irresponsabilidade até a responsabilidade segundo a teoria do risco administrativo.

2.2.1. O posicionamento do Supremo Tribunal Federal

O Supremo Tribunal Federal tem favorecido a irreparabilidade dos danos causados pelos atos do Poder Judiciário, salvo aqueles previstos em lei. Resultaria o posicionamento da Suprema Corte do fato de se "tratar de um Poder soberano, que goza de imunidades que não se enquadram no regime de responsabilidade por efeitos de seus atos quando no exercício de suas funções" (10).

Não obstante o respeito pelos julgados do Supremo Tribunal Federal, Cotrim Neto critica o posicionamento da Suprema Corte, principalmente "porque não podemos compreender a razão de ser de qualificar o juiz como órgão da soberania e o Judiciário como ´Poder soberano´ e não situar, no mesmo plano, o legislador e o funcionário público pois, afinal, todos são agentes do Poder Público" (11).

2.2.2. O sentido do § 6º do artigo 37 da Constituição Federal de 1988

O artigo 107 da Constituição Federal de 1967, que regulava a responsabilidade do Estado, foi causa de controvérsias no meio jurídico, visto que, por situar-se no capítulo do Poder Executivo, na seção relativa aos funcionários públicos, não aplicar-se-ia ao Poder Judiciário. Se não bastasse, argumentava-se que o magistrado não se enquadrava na figura do funcionário público, porque era órgão do Estado, quando muito um funcionário sui generis.

Entretanto, à luz da Constituição Federal de 1988, os argumentos supramencionados foram inteiramente prejudicados e perderam força. De início, o preceito que regula a responsabilidade estatal localiza-se em capítulo que versa sobre a Administração Pública em geral e diz respeito, conforme exposto no caput do artigo 37, à "administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios" [grifos nossos].

Além disso, o § 6º da norma constitucional em tela não trata de funcionário público, mas de agente público. Conforma lição de Celso Antônio Bandeira de Mello, " quem quer que desempenhe funções estatais, enquanto as exercita, é um agente público" (12). Termina por concluir, Sérgio Cavalieri Filho, que esta categoria abarca "não somente os membros do Poder Judiciário, como agentes políticos, como, também, os serventuários e auxiliares da Justiça em geral, vez que desempenham funções estatais" (13).


3. Jurisdição: poder, função e atividade

Dentre os pressupostos sociais necessários à modernização do direito (14) elencados por João Maurício Adeodato, merece maior destaque na presente exposição "a pretensão de monopólio por parte do Estado na produção de normas jurídicas".

Por intermédio da função legislativa, o Estado estabelece o ordenamento jurídico, composto por juízos prescritivos que regem condutas intersubjetivas. Outra faceta do monopólio estatal na produção de normas jurídicas é a jurisdição. Busca, neste segundo momento, a concretização daquelas normas jurídicas em caso de conflitos de interesses entre pessoas, denominado lide ou litígio. Dado o exposto, em virtude da pretensão de monopólio na produção decorre a necessidade de monopólio na aplicação das normas jurídicas. Daí a jurisdição.

Cabe, neste momento, conforme ensinamentos de Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, "dizer que a jurisdição é ao mesmo tempo poder, função e atividade. Como poder, é manifestação do poder estatal, conceituado como capacidade de decidir imperativamente e impor decisões. Como função, expressa o encargo que têm os órgãos estatais de promover a pacificação de conflitos interindividuais, mediante a realização do direito justo e através do processo. E como atividade ela é o complexo de atos do juiz no processo, exercendo o poder e cumprindo a função que lhe compete. O poder, a função e a atividade somente transparecem legitimamente através do processo devidamente estruturado (devido processo legal)" (15).

3.1. Atividade judiciária e atividade jurisdicional

Judiciárias são todas as atividades exercidas pelo Poder Judiciário independentemente de sua natureza. Já a atividade jurisdicional, consoante elucida José Guilherme de Souza, "abrange os chamados atos jurisdicionais, também denominados atos orgânicos, que podem ser atos de jurisdição contenciosa e atos de jurisdição voluntária" (16). Nesse sentido, conclui-se que a atividade judiciária é o gênero do qual a atividade jurisdicional constitui espécie.

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A atividade judiciária desenvolvida pelo magistrado abrange, por conseguinte, não só a atividade jurisdicional, mas também a não jurisdicional, como os atos administrativos materiais, por exemplo. Serão enfocados nesta dissertação tanto a atividade jurisdicional quanto a judiciária, desde que operacionalizadas pelo juiz, na qualidade de órgão do Estado-juiz.


4. Danos decorrentes da atividade judiciária

Para que haja dano decorrente da atividade judiciária é imperativo um nexo de causalidade entre o próprio dano e a conduta do membro do Poder Judiciário, enquanto agente público. É certo que uma vez estabelecido esse nexo, a atividade judiciária danosa resulta na responsabilidade civil do Estado.

Resta enumerar as principais formas de atividade judiciária danosa.

4.1. Erro judiciário

A atividade tipicamente judiciária é passível dos denominados erros judiciais in iudicando e in procedendo. O magistrado, ser humano que é, está sujeito a equívocos de julgamento e de raciocínio, de direito e de fato.

Visando a prevenir ou retificar eventuais erros, o ordenamento jurídico brasileiro prevê os recursos judiciais. Todavia, esgotados estes, o respeito à coisa julgada inibe a responsabilidade do Estado, posto que, nese estágio, dentro dos limites naturais, o máximo foi feito na busca por uma sentença justa e correta. "Ora, sendo impossível exercer a jurisdição sem eventuais erros, responsabilizar o Estado por eles, quando involuntários, inviabiliza a própria justiça, acabando por tornar irrealizável a função jurisdicional" (17).

Ainda no que concerne a teoria da irretratablidade da coisa julgada, esta não pode servir de argumento genérico, visto que somente se aplica às sentenças e não às decisões interlocutórias nem ao erro provocado por má-fé do magistrado.

4.1.1. Dolo ou fraude do magistrado

O entendimento doutrinário predominante responsabiliza o Estado apenas por atos judiciais manchados pelo erro ou injustiça oriundos de dolo ou fraude do juiz, ou, ainda, nos casos expressamente previstos em lei (18).

Afirma Juan Montero Aroca que "el juez no es una persona a la que pueda dispensarse del deber de responder por su actuación" (19). Nesse sentido, o capítulo II da Lei Orgânica da Magistratura prescreve penalidades ao juiz que no exercício de suas funções, proceder com dolo ou fraude.

Tendo em vista a teoria do risco administrativo, consagrada em nosso ordenamento desde a Carta Política de 1946, o magistrado não é pessoalmente responsável. E, consoante a lição de José Cretella Jr., sequer o pode ser. Para o autor, "responsável é o Estado. Juiz é órgão do Estado. Estado e juiz formam um todo indissociável. Se o magistrado causa dano ao particular, o Estado o indeniza, exercendo depois o direito de regresso contra o causador do dano" (20). Tanto a indenização quanto a ação regressiva serão analisadas infra.

4.2. Demora da prestação jurisdicional

Para o professor Flávio de Queiroz Cavalcanti, "a norma existe e deve ser cumprida. Se não foi, das duas, uma: a) ou houve falta do preposto público na realização de seu mister; b) ou não houve o adequado aparelhamento da máquina estatal destinada à realização da justiça" (21). Compartilhando da mesma opinião, José Augusto Delgado afirma que "a demora na prestação jurisdicional cai no conceito de serviço público imperfeito" (22).

A prestação jurisdicional imperfeita gera dano ao indivíduo, na medida em que este está sujeito a ver perecer seu direito de ação devido a morosidade ou mau funcionamento da justiça. Em se constatando dano, cabe falar em responsabilidade civil do Estado, independentemente de conduta culposa do agente público.

A respeito da demora em decidir a ação é de se rememorar o julgamento proferido pelo Supremo Tribunal Federal, em 21.6.66, do Recurso Exraordinário nº 32.518, no qual, mesmo vencido, o Ministro Aliomar Baleeiro expôs:

"Dou provimento ao recurso, porque me parece subsistir, no caso, responsabilidade do Estado em não prover adequadamente o bom funcionamento da Justiça, ocasionando, por sua omissão de recursos materiais e pessoais adequados, os esforços ao pontual cumprimento dos deveres dos juízes. Nem poderia ignorar essas dificuldades, porque, como consta das duas decisões contrárias ao recorrente, estando uma das Comarcas acéfala, o que obrigou o Juiz a atendê-la, sem prejuízo de sua própria - ambas congestionadas de serviço - a Comissão de Disciplina declarou-se em regime de exceção, ampliando os prazos".

No mesmo julgado, o Ministro Odalício Nogueira ratificou a posição do Ministro Aliomar Baleeiro com as seguintes palavras:

"O Estado não acionou, convenientemente, a engrenagem do serviço público judiciário. Não proporcionou à parte a prestação jurisdicional a que estava obrigado. Houve falta de serviço público. Não preciso atingir as alturas do risco, que é o ponto culminante da doutrina objetiva, para decretar-lhe a responsabilidade. Basta-me invocar o princípio da culpa administrativa, ocorrente na espécie e que não se confunde com a culpa civil, porque procede, precisamente, do mau funcionamento de um serviço".


5. Indenização e ação regressiva

Por fim, faz-se necessário tecer alguns comentários a respeito do ressarcimento do dano decorrente da atividade judiciária insuficiente. A teoria do risco administrativo impõe o pagamento de indenização ao prejudicado pela conduta danosa do Poder Público. Ressalte-se que uma vez evidenciado o prejuízo, a indenização independe de prova de culpa do Estado - agente público.

Após o ressarcimento do dano, poderá o Estado, em virtude da relação vinculativa entre este e o agente público, coagir o causador imediato do dano a repor à Fazenda Pública os gastos com a indenização ao particular. Neste segundo momento é necessária a comprovação de culpa do agente público. É a chamada ação regressiva. Cabe a ação regressiva, por exemplo, nos casos em que o magistrado age de má-fé e contraria o princípio do devido processo legal.


6. Considerações finais

Diante dos temas levantados no decorrer da pesquisa, percebe-se a importância de que desfruta a teoria do risco administrativo nos assuntos referentes à responsabilidade civil do Estado. É esta, sem dúvida, a que melhor atende aos anseios de um Estado Democrático de Direito, fundado sobre princípios como o da isonomia.

Mais especificamente, no que toca à responsabilidade civil do Estado por atos judiciários, cede o "último reduto da irresponsabilidade civil do Estado", ao passo que se desmitifica o Poder Judiciário e a sua soberania exclusiva. Cremos, que era inevitável tal acontecimento, pois é inadmissível pretender o monopólio da atividade judiciária sem antes assumir os eventuais riscos que porventura seriam gerados pelo manuseio da máquina judiciária.

Resta-nos, por fim, a convicção de que deve o dano decorrente da atividade judiciária do Estado, salvo a coisa regularmente julgada, ser ressarcido pelos cofres públicos independentemente de culpa lato sensu do agente público que praticou a conduta lesiva. A responsabilidade civil do Poder Público por danos decorrentes da inadequada atividade judiciária, além do óbvio aspecto punitivo, possui o escopo maior da prevenção-educação. Assimilando seus erros, o Poder Judiciário aproxima-se de sua finalidade última na prestação jurisdicional: pacificar com justiça.

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Sobre o autor
Diego Fernando Vila Nova de Moraes

acadêmico da Faculdade de Direito do Recife (UFPE)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORAES, Diego Fernando Vila Nova. Responsabilidade civil do Estado por danos decorrentes da atividade judiciária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 47, 1 nov. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/493. Acesso em: 29 mar. 2024.

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