Capa da publicação O caso Raposa Serra do Sol à luz das teorias de Rouland, Malinowski, Bourdieu e Beck
Artigo Destaque dos editores

Demarcação da Terra Raposa Serra do Sol sob a ótica das teorias de Rouland, Malinowski, Bourdieu e Beck

Exibindo página 2 de 2
Leia nesta página:

 3 – BECK E A SOCIEDADE DE RISCO

Beck e sua sociedade de risco trazem como questão a atuação do direito na produção de certezas numa sociedade de risco. Sua tese é de que o direito traz como risco pré-existente um outro risco, o do erro na produção da decisão somado a riscos processuais. Não só um risco em torno da decisão em si, mas das consequências e desdobramentos que ela pode gerar por ter sido produzida de forma equivocada, não adequada ao caso. Seu argumento central é que a sociedade industrial foi deslocada pela sociedade de risco, na qual a distribuição dos riscos não corresponde às diferenças sociais, econômicas e geográficas da típica primeira modernidade. O desenvolvimento da ciência e da técnica não poderiam mais dar conta da predição e controle dos riscos o que contribuiu decisivamente para criar e gerar consequências de alta gravidade para a saúde humana e para o meio ambiente, desconhecidas a longo prazo e que, quando descobertas, tendem a ser irreversíveis. Entre esses riscos, Beck inclui os riscos ecológicos, químicos, nucleares e genéticos, produzidos industrialmente, externalizados economicamente, individualizados juridicamente, legitimados cientificamente e minimizados politicamente.

Por risco, entende-se como aquilo que escapa das instituições. Um dos motivos é a falha da própria racionalidade, que afirma que ao utilizar-se determinado método, tem-se a certeza sobre todas as consequências. Sociedade de risco, então, é a

fase do desenvolvimento da sociedade moderna em que os riscos sociais, políticos, econômicos e individuais tendem cada vez mais a escapar das instituições para controle e proteção da sociedade industrial. (BECK, 1997, p. 15)

Essa sociedade possui dois estágios, duas fases. A primeira delas pode ser identificada como uma etapa

em que os efeitos e as autoameaças são sistematicamente produzidos, mas não se tornam questões públicas ou centro de conflito de políticos. Aqui o autoconceito de sociedade industrial ainda predomina, tanto multiplicando como “legitimando” as ameaças produzidas por tomadas de decisão, como “riscos residuais” (a “sociedade de risco residual”). (BECK, 1997, p.15)

Ou seja, nessa fase, o risco não é tido como regra, apenas como problema, como uma exceção que não vai se repetir. Já a segunda fase pode ser caracterizada como aquela em que os riscos, o perigo, começam a ser levados à esfera pública em forma de debates e conflitos. Nesta etapa, “as instituições da sociedade industrial tornam-se os produtores e legitimadores das ameaças que não conseguem controlar” (BECK, 1997, p.15-16).

No caso em questão, houve uma portaria que garantia a posse aos indígenas da Terra Raposa Serra do Sol. No entanto, essa garantia não foi oficializada dando margem à ocupantes ilegais, fazendeiros invasores e o governo do estado de Roraima insurgirem contra essa portaria. A partir daí surgem diversas ações na Justiça Estadual e no STF, que impediram a finalização desse processo de demarcação. O risco gerado (a não oficialização da portaria) não foi encarado pela instituição jurídica como tal, ocasionando uma situação em que os desdobramentos foram tantos que se teve que recorrer ao Supremo Tribunal Federal (STF) para solucionar o processo de demarcação. O caso mostra um exemplo da primeira fase da sociedade de risco, bem como a sua transição para a segunda, que é o julgamento do caso no STF.

No que se refere ao exemplo de segunda fase da sociedade de risco, o julgamento em si é quase tido como um espetáculo pela tamanha repercussão que ele gerou. Essa repercussão nacional atraiu um grande público, com figuras conhecidas e importantes no meio público e político e a imprensa. Toda essa “pressão” gera nos ministros que irão julgar o caso uma necessidade, quase como uma obrigação, em tomar como parâmetro o que a sociedade quer. É importante observar que isso dá margem para decisões mal pensadas, inadequadas, que geram consequências perigosas à sociedade, dando inicio ao ciclo da sociedade de risco.

Como afirma Érica Yamada e Luiz Villares, toda a esquizofrenia produzida a partir desse caso “se traduz no reconhecimento de um direito ainda cheio de incertezas, com incongruências e retrocessos [...].” A questão a que Beck faz referência é justamente essa: das instituições reconhecerem que não podem sempre produzir certezas. Elas precisam ser destruídas e serem substituídas por outras que possam ser contestadas, invalidadas. Precisam compreender que é impossível prever tudo, que, no caso do Direito, a produção da decisão está sujeita à falha humana. Para Beck, esse reconhecimento é a única forma de lidar com os riscos, para que a sociedade esteja sempre em alerta para enfrentar os efeitos que surgirem.


CONCLUSÃO  

Conclui-se que o caso Raposa Serra do Sol serve como parâmetro tanto para povos autóctones e minorias que têm problemas no reconhecimento de seus direitos numa sociedade que, em tese, é tida como democrática. Neste artigo, o caso foi relacionado às teorias de Rouland, Beck, Malinowski e Bourdieu, que facilitam a sua análise.

Rouland defende um direito plural, que consiga absorver as individualidades dos povos autóctones e das minorias, indo além ao afirmar que as lutas empregadas por eles se traduzem em termos jurídicos. Ele nos mostra a importância de inserir o direito desses povos no direito já existente, como forma de conviver e respeitar as diferentes culturas que existem, assegurando uma forma democrática de se organizar a sociedade. No caso, se fez necessário que esses direitos sejam assegurados

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Malinowski observa como o direito nas sociedades nativas se estrutura de forma diferente do direito estatal institucionalizado. Na sua pesquisa de campo, ele confronta a teoria de Durkheim que afirmava que as sociedades primitivas se organizam de forma simples ou como ele afirmava, havia entre eles uma solidariedade mecânica. Malinowski mostra que ele estava errado: percebe nas sociedades primitivas algo mais complexo que a solidariedade mecânica, algo como uma reciprocidade. Nessas sociedades, existe uma espécie de acordo entre duas comunidades vizinhas que garantem o sustento uma da outra através de trocas. Os indivíduos daquele meio tem uma cultura, uma forma de viver bastante intrínseca a eles. Se comunicando com Rouland, Malinowski também faz referência à incorporação desse direito já existente das sociedades no sistema jurídico e no Estado.

Em sua teoria, Bourdieu defende a ideia de que ao adentrarem ao campo jurídico, as partes renunciam a violência física e se submetem a violência simbólica das autoridades jurídicas competentes, que buscarão chegar a uma decisão neutra e justa, como aconteceu nesse caso, em que os indígenas, os ocupantes ilegais, o estado de Roraima e donos de terras passaram a ser representados por advogados, conhecedores das normas jurídicas na expectativa que de a peleja pudesse ser resolvida no âmbito jurídico.

Para finalizar, com Beck percebe-se como o direito trabalha com os riscos que surgem. No exemplo do caso, o risco foi não oficializar a portaria que garantia o direito dos indígenas que acabou gerando consequências tamanhas que se tornaram questão de discussão e debate no meio público e político.


REFERÊCIAS

BECK, Ulrich. A reinvenção da política: rumo a uma teoria da modernização reflexiva. In: Beck, U.; Giddens, A. e Scott, L. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1997, pp. 11-72.

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro : Bertrande Brasil, 1998, pp: 209-254.

MALINOWSKI, Bronislaw. Crime e Costume na Sociedade Selvagem, Brasília, Editora da UnB. 2004, pp. 15-31 e 47-49.

Rouland, Nobert (org.). Direito das Minorias e dos Povos autóctones. Brasília  : Editora Universidade de Brasília, 2004, pp. 09-23.

VILLARES, Luiz Fernando; YAMADA, Erica Magami. Julgamento da terra indígena Raposa Serra do Sol: Todo dia era dia de índio. Rev. direito GV, vol.6,  no.1, São Paulo Jan./June 2010. < http://direitogv.fgv.br/publicacoes/revista/artigo/julgamento-terra-indigena-raposa-serra-sol-todo-dia-era-dia-de-indio>.  Acesso em: 25 de jan. de 2015.

Assuntos relacionados
Sobre as autoras
Fernanda de Sousa Dias

Acadêmica de Direito do Bloco X do Curso Bacharelado em Direito da Universidade Federal do Piauí.

Mariana Nunes Cordeiro Santos

Acadêmico de Direito do Bloco II do Curso Bacharelado em Direito da Universidade Federal do Piauí.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DIAS, Fernanda Sousa ; SANTOS, Mariana Nunes Cordeiro. Demarcação da Terra Raposa Serra do Sol sob a ótica das teorias de Rouland, Malinowski, Bourdieu e Beck. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5587, 18 out. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/54039. Acesso em: 28 mar. 2024.

Mais informações

Artigo orientado pelo Profº Glacilda Nunes Cordeiro (Mestrado em Letras – UFPI) apresentado como requisito para a aprovação na disciplina Sociologia Jurídica ministrada pela Profª Dra. Maria Sueli Rodrigues de Sousa.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos