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A preservação do patrimônio cultural como realização da função social da propriedade

11/12/2016 às 09:13
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Analisa-se as perspectivas em que a preservação do patrimônio cultural emerge como mecanismo de efetivação do princípio da função social da propriedade.

Resumo: Com a introdução do princípio da função social da propriedade no ordenamento jurídico brasileiro, o exercício do direito de propriedade, aqui considerando-se principalmente a propriedade urbana, despiu-se de seu caráter absoluto e individualista e passou sofrer inúmeras limitações de ordem social. Em meio a essas limitações, o presente trabalho objetiva, através de uma pesquisa doutrinária e legislativa, analisar as perspectivas em que a preservação do patrimônio cultural emerge como mecanismo de efetivação do referido princípio.

Palavras-chave: Patrimônio Cultural. Função Social da Propriedade. Direito Civil Constitucional.


INTRODUÇÃO

 A partir de 1964, com a introdução no ordenamento jurídico brasileiro do princípio da função social da propriedade, inaugurou-se um movimento de alteração na compreensão do instituto da propriedade privada, que atingiu seu auge com a Constituição Federal de 1988.

 Em uma dimensão coletivista própria do Estado Social, a função social foi estabelecida como limite ao exercício do direito do proprietário de usar, gozar e dispor dos seus bens, tornando incompatível com esse novo sistema qualquer concepção absolutamente individualista da propriedade.

Nesse contexto, ao tratar dos fundamentos da propriedade imobiliária urbana, o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001) trouxe a proteção, preservação e recuperação do patrimônio cultural como mecanismo de realização dessa função social, fixando as linhas a serem seguidas pelos Planos Diretores das cidades a fim de “ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”.

Destarte, o presente trabalho procura analisar, a partir de uma investigação doutrinária e legislativa, as perspectivas em que conservação do patrimônio cultural emerge como mecanismo de efetivação da função social da propriedade.

Para tanto, procedeu-se no primeiro capítulo um breve estudo acerca da evolução histórica do direito de propriedade, examinando as alterações que o conceito de propriedade sofreu ao longo do tempo, bem como a forma como esse instituto se conforma com a ordem jurídica inaugurada pela Carta de 1988.

No segundo capítulo, buscou-se compreender a definição de função social da propriedade e a evolução desse princípio no ordenamento jurídico brasileiro.

No terceiro capítulo, analisou-se a forma como a Constituição de 1988 trata a propriedade urbana, assim como o modo em que se expressa a função social da propriedade nesses casos específicos.  

Por fim, o quarto capítulo traz uma breve pesquisa acerca da evolução do tratamento dado à proteção do patrimônio cultural no Brasil e a maneira como esse instituto realiza o princípio constitucional da função social da propriedade.

1 A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO DE PROPRIEDADE

A despeito de ter a sua origem ligada à própria origem da sociedade, o direito de propriedade na forma em que é atualmente conhecido difere em muito das concepções antigas às quais esse instituto encontrava-se alicerçado.

Com efeito, ao lançar-se o olhar sobre as sociedades antigas, árdua é a tarefa de, com os olhos do presente, indicar as delimitações exatas que a propriedade privada adquiria nesse contexto. Tal dificuldade reside em grande parte nas feições nitidamente comunitárias que marcavam o direito de propriedade nas primeiras civilizações, o que se opõe diretamente ao predomínio das feições individualistas que a propriedade adquiriu com o desenvolvimento do capitalismo.

Contudo, essa compreensão comunal da propriedade não era compartilhada por todas as sociedades antigas. Para algumas populações, como aquelas que viviam na Grécia e na Itália, desde a mais remota antiguidade, sempre houve o reconhecimento e a prática da propriedade privada. Consoante a essa afirmação, tem-se a lição de Fustel de Coulanges (1975), segundo o qual “há três coisas que, desde as mais remotas eras, se encontram fundadas e estabelecidas solidamente pelas sociedades grega e italiana: a religião doméstica, a família e o direito de propriedade”.  

Desse modo, a familiaridade que o Direito Romano possui com esse instituto foi responsável para que, em séculos de evolução, adquirisse o aprofundamento necessário acerca do conceito de propriedade, de sorte que esse sistema jurídico foi capaz de oferecer as bases para a concepção do direito de propriedade na sua atual conformação.

Aos olhos romanos, a propriedade se apresentava como uma dominação, “verdadeiro ‘dominium’, poder direto, absoluto, imediato e total da pessoa sobre a coisa” (CRETELLA JUNIOR, 2006). Assim, ao colocar o patrimônio como o centro da vida jurídica, dava-se, em Roma, um tratamento eminentemente individualista e personalista à propriedade, fato que aos poucos foi sendo alterado em razão da influência do direito canônico e do direito costumeiro (CRETELLA JUNIOR, 2006).

Na Idade Média, por sua vez, a propriedade da terra foi elevada a um papel de destaque e trouxe uma quebra ao conceito unitário que prevalecia em Roma. Pois, observa-se que:

Sobre o mesmo bem há concorrência de proprietários. A dissociação revela-se através do binômio domínio eminente + domínio útil. O titular do primeiro concede o direito de utilização econômica do bem e recebe, em troca, serviços ou rendas. Quem tem o domínio útil perpetuamente, embora suporte encargos, possui, em verdade uma propriedade paralela (GOMES, 2012).

Portanto, a visão medieval da propriedade, em especial da propriedade da terra, trouxe como inovação a dualidade de sujeitos, de maneira que havia “o dono e o que explorava economicamente o imóvel, pagando ao primeiro pelo seu uso” (GONÇALVES, 2010).

Com a Revolução Francesa e o advento da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, a propriedade voltou a ostentar um caráter marcadamente individualista, passando o direito de propriedade a assumir uma feição absoluta e personalíssima, típica do Direito Romano.

Todavia, as encíclicas Rerum Novarum, do Papa Leão XIII, e Quadragésimo Ano, de Pio XI, ao sustentarem a ideia de propriedade como um direito natural, contribuíram para a acentuação do cunho social que o direito de propriedade adquiriu no decorrer do século XX. O que influenciou fortemente Auguste Comte e Léon Duguit, no desenvolvimento do princípio da função social da propriedade, responsável por trazer à tona uma dimensão coletivista da propriedade.

Segundo esse princípio, atualmente albergado na Constituição Federal (art. 5º, XXIII, e art. 170, III) e no Código Civil Brasileiro (art. 1.228, § 1º), “foi reconhecido ao Estado o poder de modelar o direito de propriedade, os modos de aquisição, exercício transmissão e perda, segundo interesses supra-individuais” (FERREIRA, 2003).

Destarte, a propriedade, em sua atual compreensão, passou a se qualificar como uma situação jurídica que abrange direitos, deveres e ônus, de forma que não mais se admite o exercício do direito de propriedade de maneira absoluta e individual, uma vez que o proprietário está sujeito a limites exteriores ligados essencialmente aos interesses da coletividade.

2 ASPECTOS DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

Em meio a um contexto de primazia dos interesses públicos em detrimento dos interesses individuais, o princípio da função social deu uma considerável contribuição para a alteração da compreensão do conceito de propriedade. Assim, a propriedade despiu-se do seu caráter absoluto, passando a ser vista como uma situação jurídica subjetiva complexa, ensejadora de direitos e obrigações relativamente à vida em comum.

 Atribui-se a Leon Duguit, em razão da influência que sua obra exerceu sobre autores latinos, o mérito de ser o precursor desta “ideia de que os direitos só se justificam pela missão social para a qual devem contribuir e, portanto, que o proprietário se deve comportar e ser considerado, quanto à gestão dos seus bens, como um funcionário” (GOMES, 2012).

Contudo, antes disso, no desenvolvimento da doutrina positivista, Auguste Comte, apoiado em uma noção incipiente de função social, defendeu que o proprietário deve exercer o seu direito de propriedade atendendo a uma indispensável função social destinada a formar e administrar os capitais, preparando os trabalhos da geração seguinte.

Desse modo, tanto Duguit quanto Comte foram responsáveis por influenciar o pensamento de Jacques Maritain, a doutrina personalista de Emmanel Mounier e a encíclica Mater et Magistra, do Papa João XXIII, grandes responsáveis pela sobrevivência e difusão dessas ideias no período pós-guerra (GOMES, 2012).  

No Brasil, por sua vez, a função social da propriedade foi introduzida ao ordenamento jurídico em 1964, com a Emenda nº 10 à Constituição de 1946, declarando que a propriedade tem uma função social, não podendo ser exercida contra o interesse coletivo.

Tal compreensão também foi inserida no Estatuto da Terra (Lei nº 4.504, de 30.11.1964), que em seu art. 2º preceitua que “é assegurada a todos a oportunidade de acesso à propriedade da terra condicionada pela função social, na forma prevista na lei”. 

Posteriormente, em dezembro de 1976, foi editada a Lei nº 6.404, conhecida como Lei das Sociedades Anônimas, a qual se refere em duas oportunidades à função social:

no art. 116, prescreve que o acionista controlador deve usar seu poder de controle com o fim, dentre outros, de fazer a sociedade cumprir a sua função social, e no art. 154, preceitua que o administrador deve exercer as suas atribuições, satisfeita a exigência da função social da empresa, sem definir o que seja(GOMES, 2012).

Todavia, foi com a Constituição de 1988, que a função social da propriedade adquiriu maior amplitude e efetividade, podendo o Poder Público dispor de mecanismos para fazer valer o referido princípio, resguardando os interesses coletivos frente aos eventuais abusos no exercício individual da propriedade.

3 A PROPRIEDADE URBANA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

Ao regulamentar o direito de propriedade, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu a função social como limite primordial ao seu exercício (art. 5º, XXIII, CRFB). Assim, ao proprietário (seja urbano ou rural) cabe sujeitar-se ao princípio da função social da propriedade como freio ao uso e disposição de seus bens.

Nesse sentido, relativamente à propriedade urbana, a Constituição Federal estabelece nos arts. 182 e 183 os parâmetros gerais acerca da política de desenvolvimento urbano a ser executada pelo Poder Público Municipal, com o objetivo de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes (COSTA, 2008).

Com base nos §§ 2º e 4º do art. 182,  a propriedade urbana estará cumprindo a sua função social quando atender às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, sendo facultado ao Poder Público Municipal exigir do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova o seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de: parcelamento ou edificação compulsórios; imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo; desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública.

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Nesse contexto, o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/01) surgiu a partir da necessidade de regulamentação das disposições presentes nos arts. 182 e 183, da Constituição Federal, fixando as diretrizes gerais às quais as normas referentes aos Planos Diretores das cidades devem estar submetidas para regular “o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental” (art. 1º, parágrafo único, Estatuto da Cidade). De tal modo que o referido Estatuto estabelece especificamente os comandos normativos que devem reger a propriedade urbana e a realização de sua função social, especialmente no que se refere aos seguintes aspectos:

a) garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações;

b) planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da população e das atividades econômicas, de modo a evitar distorções do crescimento e suas influências negativas sobre o ambiente;

c) controle de ordenação e controle de uso do solo, de forma a evitar a utilização inadequada dos imóveis, o parcelamento, a edificação e o uso excessivos ou inadequados em relação à infraestrutura urbana, o dimensionamento dos empreendimentos em vista das condições de transporte, a retenção especulativa de imóveis, entre outras;

e) fixação de padrões de produção, de consumo e de expansão urbana compatíveis com os limites de sustentabilidade ambiental, social e econômica do município e do território sob sua influência;

d) proteção, preservação e recuperação do ambiente natural e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico (CHALHUB, 2003).

A fim de garantir o cumprimento dessas diretrizes, o Estatuto foi, ainda, responsável pela criação de novas figuras com o objetivo de tornar efetiva a função social, dentre elas pode-se citar a concessão de direito real de uso, a concessão de uso especial para fins de moradia, o parcelamento, a edificação ou utilização compulsórios, a usucapião especial do imóvel urbano, o direito de superfície, o direito de preempção, a outorga onerosa do direito de construir e a regularização fundiária (CHALHUB, 2003).

Nessa mesma linha, o § 1º, do art. 1.228, do Código Civil Brasileiro, prescreve que o exercício do direito de propriedade deve estar em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais, de modo que sejam preservados a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.

Dessa forma, embora no caput do mesmo artigo se estabeleça que “o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem injustamente a possua ou detenha”, a propriedade não pode ser compreendida sob uma óptica absoluta, soberana e intangível, pois atualmente esse instituto adquiriu uma dimensão eminentemente coletivista, em que o interesse público limita a atuação particular.

À luz dessa compreensão, é justamente tal dimensão coletivista que fundamenta o modo de intervenção na propriedade privada previsto no §1º, do art. 1.228, CC, segundo o qual “ o proprietário pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriação, por necessidade ou utilidade pública ou interesse social, bem como no de requisição, em caso de perigo público iminente”.

Ademais, a função social da propriedade é, também, fundamento para a “desapropriação judicial” prevista no § 4º do mesmo artigo, que determina:

O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante.    

Nesses termos, observa-se que todo esse regime de limitações que balizam a propriedade privada são reflexos da moderna compreensão acerca da supremacia do interesse público, de maneira que:

 os princípios gerais do direito como os da igualdade das propriedades e repressão ao abuso de direito foram sendo aplicados tão amplamente que o domínio passou a encontrar neles restrições cada vez mais fortes, acarretando o seu enfraquecimento interno e a consolidação da política de intervenção estatal (DINIZ, 2012).       

Contudo, é fundamental destacar que essa intervenção do estado na propriedade não é ilimitada, devendo estar albergada pelos princípios constitucionais pertinentes, assim como pelo Estatuto da Cidade e pelo Código Civil, uma vez que, conforme doutrina de Perlingieri (1999), jamais será admissível a criação de novos condicionamentos por outros mecanismos que não a lei, “ora porque lesivos da reserva de lei que caracteriza a propriedade, ora porque não-merecedores de tutela na medida em que são limitativos ou impeditivos da função social ou da acessibilidade a todos, da propriedade”.

4 A PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL E O ASPECTO FUNCIONAL DA PROPRIEDADE

No século XX, foram introduzidas no Brasil as primeiras questões relativas à criação de um patrimônio nacional. Antes disso, a despeito de ser algo que já era amplamente discutido em um espaço internacional, não havia uma noção sólida do que conformaria o patrimônio cultural brasileiro, sendo quase inexistentes ações relativas à definição e gestão desse patrimônio, bem como à forma de atuação dos diversos autores envolvidos nesse processo.

Foi apenas no governo de Getúlio Vargas que o patrimônio cultural brasileiro se tornou objeto de proteção na via legislativa.

Em 1933, o Decreto nº 22.929 deu à cidade de Ouro Preto o status de monumento nacional.

Com a Constituição de 1937, houve a determinação de que “os monumentos históricos, artísticos e naturais, assim como as paisagens ou os locais particularmente dotados pela natureza, gozam de proteção e dos cuidados especiais da Nação, dos Estados e dos Municípios”, sendo os atentados contra eles praticados equiparados aos cometidos contra o patrimônio nacional (art. 134).

Em seguida, o Decreto-Lei nº 25/37, foi responsável por organizar a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional.

A Constituição de 1946, no mesmo sentido, previa que “as obras, monumentos e documentos de valor histórico e artístico, bem como os monumentos naturais, as paisagens e os locais dotados de particular beleza ficam sob a proteção do Poder Público” (art. 175).

A Constituição ditatorial de 1967 e a Emenda Constitucional de 17 de outubro de 1969 também mantiveram a proteção ao patrimônio cultural, estabelecendo que “ficam sob a proteção especial do Poder Público os documentos, as obras e os locais de valor histórico ou artístico, os monumentos e as paisagens naturais notáveis, bem como as jazidas arqueológicas”.

Contudo, foi a Constituição Federal de 1988 que deu amplitude e demarcou o conceito de patrimônio cultural, passando a salvaguardar os bens de natureza material e imaterial, individualmente ou em conjunto, que se referem à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos que compõem a Nação brasileira.

Assim, a nova ordem constitucional inseriu a proteção ao patrimônio cultural dentre as limitações ao exercício do direito de propriedade, tutelando os valores coletivos dignos de proteção e efetivando o princípio constitucional da função social da propriedade.

De fato, a proteção ao patrimônio histórico emerge como um reconhecimento do direito coletivo ao passado, estando diretamente ligada à criação de um outro horizonte historiográfico, pressupondo que a tarefa principal a ser contemplada em uma política de preservação e produção de patrimônio coletivo repousa no reconhecimento do direito ao passado enquanto dimensão básica da cidadania (PAOLI, 1992).

Desse modo, ao manter viva a memória coletiva através da preservação do patrimônio cultural, histórico e artístico, dá-se à propriedade uma dimensão que extrapola o viés estritamente individual e adquire uma funcionalidade de âmbito social.

Nessa perspectiva, no que tange à propriedade urbana, o Estatuto da Cidade (lei nº 10.257/01), estabelece a proteção, preservação e recuperação do ambiente natural e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico como mecanismo do qual dispõe a política urbana a fim de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana.

Destarte, o direito da coletividade ao passado, como expressão da cidadania, limita o particular no exercício do direito à propriedade, aqui particularmente considerada a propriedade urbana. De maneira que, ao zelar pela preservação do patrimônio cultural, o proprietário estará agindo em benefício da sociedade na realização da função social de sua propriedade.

Por fim, é relevante destacar que, à luz da Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural da UNESCO, reforça-se o caráter coletivo adquirido pela propriedade em tais casos com o reconhecimento de que o patrimônio cultural e natural constitui patrimônio universal, com a proteção do qual a comunidade internacional tem o dever de cooperar, sem prejuízo dos direitos reais previstos pela legislação nacional sobre esse patrimônio (artigo 6).

Portanto, a partir de uma visão global, a conservação do patrimônio cultural não se configuraria na realização da função social da propriedade apenas em relação a uma comunidade ou a um Estado em particular, mas sim com relação a toda a comunidade internacional, em razão desse caráter universal que adquire.

CONCLUSÃO

Após toda a evolução histórica que culminou na construção do conceito de propriedade, assim como das formas de exercício desse direito, chegou-se ao atual momento em que o caráter absolutamente individual desse instituto cedeu espaço à prevalência dos interesses coletivos tutelados pelo Estado.

Nesse contexto, a Constituição Federal de 1988 deu ao princípio da função social da propriedade (introduzido no ordenamento jurídico em 1964) maior amplitude e efetividade, estendendo a sua área de aplicabilidade e fortalecendo os mecanismos estatais de controle nos casos de descumprimento ao referido princípio.  

Desse modo, após o estudo realizado no presente trabalho, verifica-se que a preservação do patrimônio cultural emerge como reflexo do direito coletivo à memória. O que, numa dimensão coletivista da propriedade, atua como limitação no exercício do direito de propriedade, de forma que o proprietário estará realizando a função social de sua propriedade, em uma atuação que extrapola o viés estritamente individual, alcançando uma funcionalidade de âmbito social. 


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CHALHUB, Melhim Namem. Função social da propriedade. Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v.6, n. 24, 2003.

COSTA, Nelson Nery. Direito civil constitucional brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2008.

COULANGES, Numa Denis Fustel de. A cidade antiga: estudos sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; tradução de Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo: HEMUS, 1975.

CRETELA JÚNIOR, José. Direito romano moderno: introdução ao direito civil brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2006.

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, volume 4: direito das coisas. 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

FERREIRA, Dâmares. O aspecto funcional da propriedade urbana na constituição federal de 1988. Revista Interesse Público, Belo Horizonte, ano 5, n. 21, set/out, 2003.

GOMES, Orlando. Direitos reais. 21 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 5: direito das coisas. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

PAOLI, Maria Célia. Memória, história e cidadania: o direito ao passado. In. O direito à memória: patrimônio histórico e cidadania. São Paulo: DPH, 1992, p. 25-28.

PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil ­ Introdução do direito civil constitucional. Trad. Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEÃO, Italo Alves Sousa. A preservação do patrimônio cultural como realização da função social da propriedade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4911, 11 dez. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/54351. Acesso em: 28 mar. 2024.

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