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Da ilegalidade e inconstitucionalidade da apreensão de veículo por falta de pagamento do imposto sobre a propriedade de veículos automotores (IPVA)

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14/12/2016 às 11:38
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4 DA ILEGALIDADE E INCONSTITUCIONALIDADE DA APREENSÃO DE VEÍCULO POR FALTA DE PAGAMENTO DO IPVA

É necessário entender o mecanismo utilizado pelo Fisco para, através da apreensão do veículo do Contribuinte, conseguir efetuar a cobrança do IPVA sem manejar uma execução fiscal deixando de lhe assegurar a ampla defesa.

Em realidade, o veículo do Contribuinte não é apreendido pela falta do recolhimento do imposto em si. Parece, é verdade, que estamos diante de uma situação antagônica, mas para entender tal dicotomia, é importante que a sistemática do IPVA seja bem compreendida.

Sabemos que o Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores tem natureza real[33]. Com finalidade eminentemente fiscal, o IPVA tributa uma manifestação de riqueza Contribuinte[34], com fito de ingresso de recursos aos cofres públicos Estaduais e Municipais (50% para cada).

Por “manifestação de riqueza do Contribuinte”, devemos interpretar o fato gerador do imposto, ou seja, “ser proprietário de veículo automotor”.

A incidência do IPVA sobre a propriedade do veículo automotor atrela o imposto ao bem tributado, fato este que impossibilita o licenciamento do veículo sem a devida extinção do crédito tributário pelo pagamento.[35]

Outrossim, a vinculação do IPVA ao licenciamento também se deve ao fato do imposto, quando da sua origem, ter surgido a partir da extinta Taxa Rodoviária Única (TRU), a qual era cobrada anualmente pelo Ente Tributante quando do licenciamento do veículo.

Importante reiterar, o IPVA é o tributo, ou seja, a prestação pecuniária devida pelo Contribuinte ao Ente Tributante. O licenciamento, por sua vez, é o documento expedido anualmente e que permite ao veículo sua circulação durante o exercício financeiro de sua vigência.

O CRLV (licenciamento), somente é encaminhado para a residência do Contribuinte (proprietário do veículo automotor), após o pagamento de todos os débitos relativos ao bem.

Entre os débitos relativos ao veículo, encontra-se, por óbvio, o IPVA. É aqui que o Ente Tributante, utilizando-se da apreensão do veículo, encontra meio eficiente, à revelia da execução fiscal, para conseguir efetuar a cobrança do imposto.

A exigência de quitação do IPVA para o licenciamento do veículo, afora a questão da vinculação, também encontra previsão expressa no Código de Trânsito Brasileiro (CTB), especificamente no seu artigo 131, § 2º, in verbis:

CTB:

Art. 131. O Certificado de Licenciamento Anual será expedido ao veículo licenciado, vinculado ao Certificado de Registro, no modelo e especificações estabelecidos pelo CONTRAN.

[...]

§ 2º - O veículo somente será considerado licenciado estando quitados todos os débitos relativos a tributos, encargos e multas de trânsito e ambientais, vinculados ao veículo, independentemente da responsabilidade pelas infrações cometidas.[36]

O CTB, código que regula as normas de trânsito no ordenamento pátrio, ao versar acerca do licenciamento, estipula que o veículo somente será considerado licenciado se não houver débito tributário com relação ao mesmo. Vislumbra-se, assim, a presença da figura do IPVA, o qual deverá estar devidamente quitado para que o veículo possa ser licenciado e ter a circulação permitida pelas autoridades de trânsito.

A falta de pagamento (ou atraso) do IPVA, por si só, não possui o condão de fazer com que o veículo do Contribuinte seja apreendido. As regras gerais acerca do tributo nada mencionam sobre a possibilidade de apreensão do bem do sujeito passivo.

Aqui, novamente, caímos na questão de não ser a falta de recolhimento do IPVA a condição que possibilita a apreensão do veículo automotor.

Se for verdade que o veículo, cujo pagamento do imposto encontra-se em aberto, não puder ser licenciado, também é verdade que o mesmo não possuirá permissão para circular.

Ao circular com o veículo sem licenciamento, o Contribuinte age em desrespeito ao artigo 230, inciso V, do CTB, incorrendo em infração gravíssima, cuja penalidade, além da imposição de multa, consiste na apreensão do veículo, in vebis:

CTB:

Art. 230 – Conduzir veículo:

[...]

V – que não esteja registrado e devidamente licenciado.

Penalidade – multa e apreensão do veículo.[37]

É o Código de Trânsito que comporta a possibilidade de apreensão do veículo do Contribuinte.

Uma vez apreendido, o mesmo só poderá ser liberado após o licenciamento que, por conseguinte, só é realizado em concomitância ao pagamento do IPVA.

O Ente Tributante, portanto, utiliza-se da brecha disposta no CTB para, à margem de qualquer princípio relativo ao direito tributário, efetuar a cobrança do imposto sem a necessidade do manejo de uma execução fiscal.

Basta observar, à guisa de exemplo, que, a partir do momento em que os IPVAS começam a “vencer” (pedindo vênia pelo uso da expressão popularmente utilizada), é possível observar, nas grandes cidades, a existência das chamadas “blitz do IPVA”.

Nas referidas blitz, os agentes verificam a situação dos veículos e, estando os mesmos sem licenciamento (IPVA atrasado, por consequência), estes serão apreendidos, oportunidade na qual somente serão liberados após a quitação de todos os débitos a eles inerentes.

Não é necessária grande capacidade imaginativa para deduzir que, na realidade, o Estado está interessado no recebimento do valor do imposto devido. Ainda que o CRLV (licenciamento) tenha custo para o proprietário do veículo, a verdade é que o mesmo é praticamente irrisório.

O mesmo não se pode dizer com relação ao IPVA, visto que o quantum será determinado levando em conta o valor de mercado do veículo e, lógico, os valores podem se tornar extremamente expressivos.

O Estado do Rio Grande do Sul, por exemplo, conta atualmente com uma frota de 6.372.980 (seis milhões, trezentos e setenta e dois mil, novecentos e oitenta) veículos automotores[38], sendo evidente que a receita decorrente da arrecadação do IPVA representa uma importante fatia do orçamento estatal.

A partir do momento em que o Ente Tributante se aproveita do CTB para, justamente, apreender o veículo automotor e, com isso, exigir o recolhimento do IPVA, acaba, sem dúvida, reduzindo, e muito, o prazo de recolhimento do referido imposto aos cofres públicos e, o que é melhor, sem a necessidade de ingresso de uma ação de execução fiscal.

O Contribuinte, coagido e privado do seu bem, acaba efetuando (muitas vezes de forma imediata) o pagamento do imposto, até porque é inconveniente que o seu veículo esteja recolhido, inclusive por uma questão financeira, já que a responsabilidade pelo pagamento das diárias nos pátios dos DETRANS ficará ao encargo do proprietário do veículo.

Ocorre que utilizar a apreensão do veículo como subterfúgio para cobrança do IPVA é ilegal e inconstitucional.

A apreensão do veículo por falta de pagamento do Imposto sobre a Propriedade de Veículo Automotor, inicialmente, viola dois direitos fundamentais consagrados em nossa Constituição Federal.

O primeiro deles, insculpido no artigo 5°, inciso XV, diz respeito ao direito de ir e vir e a liberdade de locomoção. A medida em que o direito à livre locomoção se trata de uma garantia fundamental do cidadão, significa que ele pode ser oponível inclusive em face do Ente Tributante, no momento em que o veículo está sendo apreendido.

Outra garantia fundamental violada é o direito ao devido processo legal. O artigo 5º, incisos LIV e LV, determina que “ninguém será privado da sua liberdade ou dos seus bens sem o devido processo legal”. Assegura-se ao cidadão o contraditório, a ampla defesa, o duplo grau de jurisdição, etc.

Assim sendo, forçoso é concluir que o Contribuinte, na condição de inadimplente do IPVA, só teria respeitado os seus direitos constitucionais de ir e vir e a liberdade de locomoção, bem como do devido processo legal, da mais ampla defesa e de propriedade se, efetivamente, ao invés de apreender seu veículo o Fisco ajuizasse a execução fiscal, na qual todos os mecanismos supramencionados seriam trazidos para dentro do contexto do contencioso tributário.

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Além disso, imperioso anotar que a apreensão do veículo por falta de pagamento do IPVA viola ao princípio constitucional da vedação ao confisco.

A Constituição Federal de 1988, com fito de afastar o arbítrio do Estado, determinou, em seu artigo 150, inciso IV, do Ente tributante em utilizar o tributo com efeito de confisco.

Nas palavras de Sabbag: “a vedação à confiscabilidade proíbe a instituição de quaisquer tributos com caráter de absorção substancial da propriedade privada sem a proporcionada indenização”.[39]

Observe-se a ilegalidade e a inconstitucionalidade da conduta do Estado, sob todos os prismas pelos quais a questão possa ser analisada, ainda que o valor arrecadado seja essencial para os cofres públicos, o mesmo deve ser cobrado dentro dos parâmetros legais, através do processo de execução fiscal.


5 CONCLUSÃO

O Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores corresponde a ingresso de crédito tributário essencial no âmbito dos cofres públicos, razão pela qual o Ente Tributante deve fiscalizar e diligenciar no sentido de que o mesmo seja recolhido.

Em contrapartida, uma vez que a obrigação tributária não é satisfeita de modo espontâneo pelo Contribuinte, a medida cabível à administração é a inscrição do respectivo crédito em dívida ativa.

É a Certidão de Dívida Ativa que servirá como título apto a subsidiar a execução fiscal, ação judicial do Fisco em face do Contribuinte, tendo por escopo, dentro das peculiaridades descritas pela LEF (e, subsidiariamente, pelo NCPC), a cobrança do crédito tributário devido.

A vinculação do IPVA ao licenciamento do veículo (ou vice-versa), analisada em conjunto com a determinação de apreensão do veículo pelo CTB, não pode servir como subterfúgio do Fisco para deixar de lançar mão da execução fiscal e, à margem do devido processo legal, efetuar a cobrança do tributo e privar o Contribuinte do seu bem, sem que este tenha sequer o direito de apresentar defesa.

Ademais, a própria disposição acerca da possibilidade da apreensão do veículo automotor, contida no Código de Trânsito, por débito de IPVA, é ilegal e inconstitucional, uma vez que priva o proprietário do seu bem, em absoluto desrespeito ao direito de propriedade.

Apreender o veículo do Contribuinte, com o claro objetivo de recebimento do tributo, é conduta abusiva do Fisco, que desconsidera garantias constitucionalmente previstas aos cidadãos e oponíveis em caráter erga omnes (direitos constitucionais de ir e vir e a liberdade de locomoção, bem como do devido processo legal, da mais ampla defesa, de propriedade e da vedação da utilização do tributo com efeito de confisco).

O IPVA não difere dos demais tributos no que diz respeito à observância de princípios do sistema tributário e princípios processuais gerais. Não há razão, portanto, de sua cobrança ser feita à revelia da execução fiscal, meio utilizado pelo Fisco quando da inadimplência dos demais créditos tributários.

Deve ser utilizada a execução fiscal para a cobrança do IPVA, fornecendo a todos os atores da lide fiscal o respeito ao devido processo legal, no qual, com paridade de condições, será alcançada a justiça tributária.

Entendemos, por derradeiro, que a apreensão do veículo por débito de IPVA, privando o Contribuinte do seu bem sem o devido processo legal, pode ensejar dano moral, devendo este ser reparado pelo Ente Tributante e, ainda, caso presente as hipóteses justificadoras, ação de indenização por lucros cessantes, caso o Contribuinte utilize o veículo com instrumento de trabalho e, em virtude da apreensão, seja prejudicado neste sentido.

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Sobre o autor
Lucas L. Ramos

Advogado. Especialista em Direito Tributário pela Uniritter Laureate International Universities (2016). Fundador da Lucas Ramos Advocacia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RAMOS, Lucas L.. Da ilegalidade e inconstitucionalidade da apreensão de veículo por falta de pagamento do imposto sobre a propriedade de veículos automotores (IPVA). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4914, 14 dez. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/54475. Acesso em: 20 abr. 2024.

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