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Do contrato de fornecimento de energia elétrica para consumidores do grupo B

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27/01/2017 às 12:13
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Efetua uma análise do contrato de fornecimento de energia elétrica à luz da Resolução 414 da ANEEL, doutrina e jurisprudência recentes.

Resumo: O presente artigo objetiva analisar aspectos legais, contratuais e jurisprudenciais do contrato de prestação de serviço público de energia elétrica para consumidores do Grupo B, à luz do que dispõe a Resolução nº 414/2010 da ANEEL, a Lei dos Serviços Públicos (Lei 8987/95) e o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8078/90). Preliminarmente, efetua-se o exame do contrato de prestação de serviço público de energia elétrica, considerando o que prevê a Resolução Normativa supramencionada, passando-se a verificar quais os princípios do direito do consumidor e dos serviços públicos aplicáveis na situação posta. Visto isso, passa-se a analisar criticamente a posição atual do Superior Tribunal de Justiça, que impede o corte de fornecimento de energia elétrica por débito pretérito ou por fraude de medição. Na sequência, aponta-se dados comerciais obtidos junto à Área Comercial da Companhia Estadual de Distribuição de Energia Elétrica objetivando demonstrar as perdas não técnicas experimentadas pela concessionária  em razão da impossibilidade de efetuar a suspensão do fornecimento em determinadas situações, seja em razão de decisão judicial, seja com fundamento em dispositivo legal.  O escopo principal é analisar sinteticamente o contrato de prestação de serviço público de energia elétrica para consumidores do Grupo B e demonstrar que o impedimento ao corte de energia elétrica desconsidera a situação econômico- financeira das concessionárias de energia elétrica que prestam serviço público de fornecimento sem receber a correspondente contraprestação.

Palavras-chave: Relação de Consumo. Dignidade da pessoa humana. Serviços Essenciais. Energia Elétrica. Suspensão do Fornecimento.


1 INTRODUÇÃO

Pretende-se analisar aspectos contratuais, legais e jurisprudenciais do contrato de prestação de fornecimento de energia elétrica para consumidores titulares de unidades consumidoras do Grupo B. O artigo 2º da Resolução Normativa 414 da ANEEL, define o Grupo B para fins de fornecimento de energia elétrica. Segundo este dispositivo:

 Grupo B abrange o grupamento composto de unidades consumidoras com fornecimento em tensão inferior a 2,3 kV, caracterizado pela tarifa monômia e subdividido nos seguintes subgrupos: residencial, rural, demais classes e iluminação pública. [1]

Relativamente a tais unidades consumidoras, estabelece a Resolução um modelo contratual constante do Anexo IV, o qual é nitidamente de adesão, vez que o conteúdo contratual é previamente estabelecido pela concessionária com fundamento no regramento existente, sendo que não é dado ao consumidor a faculdade de discutir ou modificar substancialmente o seu teor.

Na cláusula segunda e terceira do Anexo referido são previstos os direitos e deveres do consumidor, em consonância com às disposições do Estatuto Consumerista e a Lei dos Serviços Públicos, dentre os quais destaco a obrigação da concessionária de informar, por escrito, ao consumidor, com antecedência mínima de 15 (quinze) dias sobre a possibilidade de suspensão do fornecimento por falta de pagamento. Na cláusula quarta, constam as hipóteses de suspensão de fornecimento, quais sejam:

- Deficiência técnica ou de segurança em instalações da unidade consumidora – esta situação ocorre quando a unidade consumidora não obedece aos padrões estabelecidos na Resolução 414, em especial no que tange à instalação do medidor e ligação com a rede, colocando em risco o próprio cliente, terceiros ou o sistema elétrico. Nesta hipótese, o usuário deve ser comunicado da situação com 3 (três) dias de antecedência. No entanto, quando representar risco iminente de danos a pessoas ou ao funcionamento do sistema elétrico, a suspensão deve ser imediata, bem como nos casos de ligação clandestina ou de fornecimento de energia elétrica a terceiros.

- Fornecimento de energia elétrica a terceiros – é vedado ao cliente regular fornecer energia a terceiros. Caso isto aconteça, fica a concessionária autorizada a efetuar a suspensão do fornecimento.

- Impedimento do acesso de empregados e representantes da concessionária para leitura, substituição de medidor ou inspeções necessárias – verifica-se principalmente quando o medidor se encontra instalado em desacordo com os critérios estabelecidos pela distribuidora, que, em regra, exige que este seja instalado de forma que possibilite à concessionária efetuar a leitura, medições e vistorias.

- Razões de ordem técnica – muitas vezes por causa de eventos naturais, fica a concessionária obrigada a suspender o fornecimento a fim de regularizar situações de queda de fios, postes ou problemas em transformadores, por exemplo.

- Falta de pagamento da fatura de energia elétrica –   o corte só poderá ser feito em horário comercial, 15 dias após a notificação, sendo que faturas em aberto, com mais de 90 dias, não poderão mais gerar corte, desde que as posteriores estejam quitadas (artigo 172, §2º da Resolução nº 414/2010).

No decurso do estudo em tela, ficará demonstrado que muito embora estejam caracterizadas algumas das hipóteses de suspensão de fornecimento acima elencadas, poderá a concessionária ficar impedida de efetuar a suspensão do fornecimento em razão de decisão judicial ou porque se assim o fizesse impediria a prestação de outros serviços públicos essenciais e/ou causaria danos à coletividade.


2 Prestação de serviço público de energia elétrica e relação de consumo

É majoritário na doutrina o entendimento de que a prestação de serviço público de energia elétrica constitui relação de consumo. Isto porque o cliente da concessionária de energia elétrica se utiliza do fornecimento de energia elétrica como destinatário final, nos termos do que estatui o artigo 2º do Código de Defesa do Consumidor. E ao concessionário de energia elétrica aplica-se a definição de fornecedor, eis que se amolda à definição legal constante do artigo 3º da Lei 8078/90.

Conforme leciona Marcelo Costa Fadel (2009, p. 61-63), Consumidor de energia elétrica é o usuário que adquire ou utiliza este produto como destinatário final fático e econômico, apresentando vulnerabilidade técnica, cientifica ou fática, frente ao fornecedor.[2]

2.1. Princípios de proteção ao consumidor

Elenca-se os princípios mais incidentes considerando a relação de prestação de serviço público de fornecimento de energia elétrica.

2.1.1. Dignidade da pessoa Humana

A dignidade da pessoa humana é um dos princípios mais propalados atualmente na doutrina e jurisprudência.  Numa definição simplória, dignidade da pessoa humana nada mais é do que o respeito aos direitos de um ser humano, previstos legal e constitucionalmente. É um princípio extremamente aberto, primário, subjetivo e universal. Na Constituição Federal, a dignidade da pessoa humana não é trazida como um princípio, mas como fundamento da República Federativa do Brasil, dada a importância que lhe foi concedida pelo legislador constitucional.

O direito de acesso à energia elétrica é tido como um direito fundamental social materialmente constitucional[3], eis que a energia elétrica é considerada indispensável para uma vida digna. Esse direito é materializado por meio de “serviços públicos” sejam estes prestados diretamente pelo Estado ou por terceiros mediante permissão ou concessão de serviço público. No entanto, mencionado entendimento é apenas doutrinário e jurisprudencial, vez que não há legislação específica que aponte a energia elétrica como um serviço público essencial. Analogicamente, argui-se a Lei 7.783, de 28 de junho de 1989, a chamada Lei de Greve. O artigo 10 e incisos desta Lei elenca um rol de serviços ou atividades consideradas essenciais, e dentre elas está o abastecimento de energia elétrica, conforme se segue: “Art. 10. São considerados serviços ou atividades essenciais: I Tratamento e abastecimento de água; Produção e distribuição de energia elétrica, gás e combustíveis; II Assistência médica e hospitalar; [...]”[4]

Cumpre registrar que a Portaria nº 03/99 da Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça (publicada em 19/03/99), reconheceu como serviço essencial o fornecimento de água, energia elétrica e telefonia.[5]

É certo que existe a possibilidade de interrupção do serviço. A ideia de essencialidade encontra limites, visto que outros critérios hão de ser observados, como o princípio da continuidade. Mas, a essencialidade deve ser preservada, por se tratar da preservação de um bem necessário e dela decorrerá o respeito a outros princípios constitucionais, como a dignidade da pessoa humana, por exemplo.

Neste sentido, entendendo que a suspensão do fornecimento de energia elétrica infringe o princípio da dignidade da pessoa humana, direciona-se a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, conforme pode se observar em trecho da ementa do Recurso Especial nº 721119, onde constou: 

“a despeito da jurisprudência majoritária desta Corte, tem ressalvado o entendimento de que o corte do fornecimento de serviços essenciais - água e energia elétrica – como forma de compelir o usuário ao pagamento de tarifa ou multa, extrapola os limites da legalidade e afronta a cláusula pétrea de respeito à dignidade humana, porquanto o cidadão se utiliza dos serviços públicos, posto essenciais para a sua vida. O interesse da coletividade abrangeria não apenas o interesse público em sentido amplo (necessidades coletivas), como também o de uma pessoa que não possui módica quantia para pagar sua conta: em primeiro lugar, há que se distinguir entre o inadimplemento de uma pessoa jurídica portentosa e o de uma pessoa física que está vivendo no limite da sobrevivência biológica.”[6]

No mesmo diapasão, menciona-se:

"ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. ENERGIA ELÉTRICA. AUSÊNCIA DE PAGAMENTO DE TARIFA. CORTE. IMPOSSIBILIDADE. 1. É condenável o ato praticado pelo usuário que desvia energia elétrica, sujeitando-se até a responder penalmente. 2. Essa violação, contudo, não resulta em reconhecer como legítimo ato administrativo praticado pela empresa concessionária fornecedora de energia e consistente na interrupção do fornecimento da mesma. 3. A energia é, na atualidade, um bem essencial à população, constituindo-se serviço público indispensável subordinado ao princípio da continuidade de sua prestação, pelo que se torna impossível a sua interrupção. 4. Os arts. 22 e 42, do Código de Defesa do Consumidor, aplicam-se às empresas concessionárias de serviço público. 5. O corte de energia, como forma de compelir o usuário ao pagamento de tarifa ou multa, extrapola os limites da legalidade. 6. Não há de se prestigiar atuação da Justiça privada no Brasil, especialmente, quando exercida por credor econômica e financeiramente mais forte, em largas proporções, do que o devedor. Afronta, se assim fosse admitido, aos princípios constitucionais da inocência presumida e da ampla defesa. 7. O direito do cidadão de se utilizar dos serviços públicos essenciais para a sua vida em sociedade deve ser interpretado com vistas a beneficiar a quem deles se utiliza. 8. Recurso improvido”. [7]

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2.1.2. Eficiência

A eficiência foi inclusa expressamente como princípio da administração pública pelo legislador constituinte derivado por meio da Emenda Constitucional nº 19/98, que alterou o artigo 37 da Constituição Federal para constar: A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.[8]

O Código de Defesa do Consumidor (1990) traz a eficiência como um direito básico do consumidor no artigo 6º, inciso X. Relativamente à eficiência no serviço público, menciona o artigo 22 e seu parágrafo único:

Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.

Parágrafo único. Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste código.[9]

Importante também consignar que o mencionado princípio é expresso na Lei de Concessões e Permissões de Serviço Público nos artigos 6º, § 1º, e 7º, inciso I.

2.1.3. Proibição de práticas abusivas

As práticas abusivas encontram-se elencadas nos artigos 39 a 41 do Estatuto Consumerista. É prática abusiva qualquer conduta do fornecedor que acarrete prejuízo moral ou econômico ao consumidor, fundado na vulnerabilidade e hipossuficiência deste.    

Parte da jurisprudência entende que a suspensão do fornecimento de energia elétrica constitui prática abusiva, porque vai de encontro ao disposto no artigo 22 do Código de Defesa do Consumidor que prevê a continuidade de serviços essenciais.

Ainda, é considerada prática abusiva a cobrança de dívidas mediante qualquer constrangimento físico ou moral. Assim, será atentatório ao consumidor a cobrança de dívida de energia elétrica sob a ameaça de corte no fornecimento, quando se tratar de débito pretérito. Tal tese encontra-se consolidada no Superior Tribunal de Justiça. Com fundamento neste entendimento, são inúmeras as decisões que entendem pela inviabilidade da adoção do corte de energia como meio para efetuar a cobrança do débito, vez que existem meios administrativos e judiciais para a concessionária efetivar a cobrança. Neste sentido, ilustra-se:

“PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL. (...). CORTE NO FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA. CABIMENTO NO CASO DO ART. 6º, § 3º, II, DA LEI Nº 8.987/95. IMPOSSIBILIDADE DE SUSPENSÃO DO ABASTECIMENTO NA HIPÓTESE DE EXIGÊNCIA DE DÉBITO PRETÉRITO. CARACTERIZAÇÃO DE CONSTRANGIMENTO E AMEAÇA AO CONSUMIDOR. CDC, ART. 42. DISSÍDIO PRETORIANO NÃO-COMPROVADO. 1. Agravo regimental contra decisão que desproveu agravo de instrumento. 2. O acórdão a quo entendeu pela proibição do corte no fornecimento de energia elétrica por débitos antigos, em face da essencialidade do serviço, uma vez que é bem indispensável à vida, além do que dispõe a concessionária e fornecedora dos meios judiciais cabíveis para buscar o ressarcimento daqueles. 3. Argumentos da decisão a quo que se apresentam claros e nítidos. (...). 4. Com relação ao fornecimento de energia elétrica, o art. 6º, § 3º, II, da Lei nº 8.987/95 dispõe que “não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de emergência ou após prévio aviso, quando for por inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade”. Portanto, havendo o fornecimento de energia elétrica pela concessionária, a obrigação do consumidor será a de cumprir com sua parte, isto é, o pagamento pelo referido fornecimento, sendo possível, verificando-se caso a caso, uma vez não realizada a contraprestação, o corte. 5. Hipótese dos autos que se caracteriza pela exigência de débito pretérito, não devendo, com isso, ser suspenso o fornecimento, visto que o corte de energia elétrica pressupõe o inadimplemento de conta regular, relativa ao mês do consumo, sendo inviável, pois, a suspensão do abastecimento em razão de débitos antigos, em relação aos quais existe demanda judicial ainda pendente de julgamento, devendo a companhia utilizar-se dos meios ordinários de cobrança, não se admitindo qualquer espécie de constrangimento ou ameaça ao consumidor, nos termos do art. 42 do CDC. 6. (...). 7. Agravo regimental não provido” [10]

2.1.4. Vulnerabilidade e hipossuficiência

A vulnerabilidade do consumidor é reconhecida expressamente pelo artigo 4º, I do Código de Defesa do Consumidor e significa que o consumidor é a parte fraca, frágil da relação jurídica de consumo. Essa fraqueza, fragilidade, é real, concreta, e decorre de dois aspectos: “um de ordem técnica e outro de cunho econômico”[11].

A hipossuficiência decorre da ausência, por parte do consumidor, de informações a respeito do produto e serviços que adquire. Poderá não existir quando o consumidor detiver conhecimento técnico ou científico que lhe permita ter ciência do que está contratando.

2.2. Serviço Público de fornecimento de energia elétrica

Segundo Marcelo Alexandrino & Vicente Paulo[12], serviço público pode ser definido como:

 É a atividade administrativa concreta traduzida em prestações que diretamente representem, em si mesmas, utilidades ou comodidades materiais para a população em geral, executada sob regime jurídico de direito público pela administração pública ou, se for o caso, por particulares delegatários (concessionários e permissionários, ou ainda, em restritas hipóteses, detentores de autorização de serviço público).                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                            

Conforme já mencionado, o Estatuto Consumerista, refere aos serviços públicos no artigo 22, destacando suas principais características, quais sejam: adequação, eficiência, segurança e continuidade. A continuidade aplica-se aos serviços tidos como essenciais, tal como a energia elétrica.

2.3. Princípios norteadores dos serviços públicos

Apontamos como princípios norteadores dos serviços públicos a continuidade, a generalidade, a eficiência e a  modicidade tarifária.

As concessionárias de energia elétrica aderem também às normas da Lei dos Serviços Públicos. Segundo o art. 140 da Resolução 414/2010 da ANEEL:

Art. 140. A distribuidora é responsável, além das obrigações que precedem o início do fornecimento, pela prestação de serviço adequado a todos os seus consumidores, assim como pelas informações necessárias à defesa de interesses individuais, coletivos ou difusos.

§ 1o Serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas.

§ 2o A atualidade compreende a modernidade das técnicas, do equipamento e das instalações e a sua conservação, assim como a melhoria e expansão o do serviço.[13]

2.4. Natureza essencial e contínua do fornecimento de energia elétrica e jurisprudência majoritária do Superior Tribunal de Justiça

Conforme já explanado, a jurisprudência, em especial do Superior Tribunal de Justiça, sustenta o aspecto essencial do serviço de energia elétrica, o qual não poderia sofrer solução de continuidade. O fundamento legal argüido é, geralmente, o artigo 22 do Código de Defesa do Consumidor e o artigo 10 da Lei de Greve. No âmbito infra legal, podemos mencionar o teor do artigo 172, § 2º da Resolução 414 da ANEEL, que estabelece:

 § 2o É vedada a suspensão do fornecimento após o decurso do prazo de 90 (noventa) dias, contado da data da fatura vencida e não paga, salvo comprovado impedimento da sua execução por determinação judicial ou outro motivo justificável, ficando suspensa a contagem pelo período do impedimento.[14]

E como princípio norteador invoca-se, com frequência, o princípio da dignidade da pessoa humana, já debatido.

No entanto, a Lei Federal nº 8987/95 dispõe diversamente, eis que traz em seu artigo 6º, § 3º, a possibilidade de interrupção do serviço público em situações de emergência, por razões de ordem técnica ou de segurança nas instalações e pela inadimplência do consumidor.  Ainda, em situações entendidas como força maior ou caso fortuito também é admissível a interrupção do serviço, mas nesse caso, a prestadora será responsável por eventuais danos causados. No mesmo sentido dispõe a Resolução nº 414/2010, que estabelece as condições gerais de fornecimento de energia elétrica, conforme já explanado na introdução. Contudo, o artigo 7º da Lei de Concessões adverte acerca da aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor, no tocante aos direitos dos usuários. Consigna o dispositivo: “Art. 7º Sem prejuízo do disposto na Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990, são direitos e obrigações dos usuários: 1- receber serviço adequado.” [15]

Verifica-se que, no concernente aos serviços essenciais, a norma específica, asseguradora do direito à continuidade do serviço público ao usuário, é a do artigo 22, do Código de Defesa do Consumidor, não existindo razão a determinar suposta prevalência do artigo 6º, inciso II, § 3º da Lei de Concessões. Daí, deflui a posição prevalente do Superior Tribunal de Justiça, a qual veda a suspensão do fornecimento no que tange a débito pretérito ou decorrente de fraude de consumo. Neste sentido, menciona-se:

ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. ENERGIA ELÉTRICA. SERVIÇO PÚBLICO ESSENCIAL. CORTE DE FORNECIMENTO. CONSUMIDOR INADIMPLENTE. IMPOSSIBILIDADE. - Esta Corte vem reconhecendo ao consumidor o direito da utilização dos serviços públicos essenciais ao seu cotidiano, como o fornecimento de energia elétrica, em razão do princípio da continuidade (CDC, art. 22). - O corte de energia, utilizado pela Companhia para obrigar o usuário ao pagamento de tarifa em atraso, extrapola os limites da legalidade, existindo outros meios para buscar o adimplemento do débito. - Precedentes. - Agravo regimental improvido. [16]

 (...) 3. A energia é, na atualidade, um bem essencial à população, constituindo-se serviço público indispensável subordinado ao princípio da continuidade de sua prestação, pelo que se torna impossível a sua interrupção. 4. Os arts. 22 e 42, do Código de Defesa do Consumidor, aplicam-se 'as empresas concessionárias de serviço público. 5. O corte de energia, como forma de compelir o usuário ao pagamento de tarifa ou multa, extrapola os limites da legalidade. 6. Não há de se prestigiar atuação da Justiça privada no Brasil, especialmente, quando exercida por credor econômica e financeiramente mais forte, em largas proporções, do que o devedor. Afronta, se assim fosse admitido, aos princípios constitucionais da inocência presumida e da ampla defesa. 7. O direito do cidadão de se utilizar dos serviços públicos essenciais para a sua vida em sociedade deve ser interpretado com vistas a beneficiar a quem deles se utiliza.[17]

PROCESSUAL CIVIL. ART. 535 DO CPC. OMISSÃO CONFIGURADA. SERVIÇO DE FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA.  INADIMPLEMENTO DO CONSUMIDOR.SUSPENSÃO. NECESSIDADE DE AVISO PRÉVIO. IMPOSSIBILIDADE DE SUSPENSÃO QUANTO AOS DÉBITOS ANTIGOS. COBRANÇA PELAS VIAS ORDINÁRIAS. (PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. CONTRADIÇÃO. INEXISTÊNCIA. ADMINISTRATIVO. ENERGIA ELÉTRICA. USUÁRIO INADIMPLENTE. AUSÊNCIA DE NOTIFICAÇÃO PRÉVIA. SUSPENSÃO DO FORNECIMENTO DO SERVIÇO. IMPOSSIBILIDADE.)

1. Em verdade, a Primeira Seção e a Corte Especial do STJ entendem legal a suspensão do serviço de fornecimento de energia elétrica pelo inadimplemento do consumidor, após aviso prévio, exceto quanto aos débitos antigos, passíveis de cobrança pelas vias ordinárias de cobrança.

2. Admitir o inadimplemento por um período indeterminado e sem a possibilidade de suspensão do serviço é consentir com o enriquecimento sem causa de uma das partes, fomentando a inadimplência generalizada, o que compromete o equilíbrio financeiro da relação e a própria continuidade do serviço, com reflexos inclusive no princípio da modicidade.

3. Embargos de declaração acolhidos, com efeitos modificativos, para, sanando a omissão apontada, dar parcial provimento ao recurso especial.[18]

CONSUMIDOR. ENERGIA ELÉTRICA. FRAUDE NO MEDIDOR. APURAÇÃO UNILATERAL. O fornecimento de energia elétrica não pode ser interrompido se a alegada fraude no medidor tiver sido apurada unilateralmente pela concessionária do serviço público. Agravo regimental não provido.[19]

Parte da doutrina corrobora o entendimento do Superior Tribunal de Justiça. Leciona Nunes (2005, p. 312):

Quando a concessionária se utiliza da suspensão do fornecimento do serviço público a fim de compelir os consumidores inadimplentes   ao pagamento de seus débitos incorre em grave violação aos  princípios jurídicos norteadores das relações patrimoniais. Segundo nos parece, e observando o disposto no art. 42 do Código de Defesa do Consumidor, o qual preceitua que na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça, conclui-se que a interrupção do fornecimento do serviço constitui-se em flagrante violação ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. A cobrança de eventuais débitos deve seguir os ditames fixados pelo nosso ordenamento jurídico, atendendo-se, também, ao princípio da obrigatoriedade da continuidade da prestação do serviço público.[20]

Todavia, o mencionado entendimento, apesar de corrente na Corte Superior, desconsidera o impacto econômico financeiro em face das concessionárias de energia, isto porque gera insegurança jurídica e aumenta os riscos da atividade, vez que a concessionária está obrigada a prestar o serviço, mas não detém certeza quanto ao pagamento do mesmo. Tal fato, pode prejudicar a realização de investimentos a longo prazo, os quais exigem profunda especialização, planejamento e investimentos. E, aparentemente, viola-se a ordem econômica, constitucional e infraconstitucional a que se submete o setor porquanto inexiste norma que obrigue o prestador público ou privado de energia elétrica a permanecer prestando o serviço apesar da inadimplência do usuário, o que representa uma interferência indevida na economia do setor. Ainda, a tese que prevalece premia o cliente fraudador e mal pagador, pois será mais vantajoso para qualquer cliente ser desonesto e fraudar o consumo, pois sabe que em razão do eventual furto de energia não sofrerá corte, pois a cobrança por fraude de consumo não é considerada como um débito atual e ensejador de suspensão do fornecimento. Do mesmo modo, ao cliente poderá se tornar mais conveniente não pagar sua fatura, mesmo detendo condições financeiras para tanto, pois sabe que se não realizado o corte em 90 dias o mesmo não poderá mais ocorrer, exceto se houver fatura atual impaga.

Assim, poderá ocorrer uma disparidade: o fraudador continuará recebendo energia sem efetuar o pagamento da conta, enquanto que o cidadão honesto poderá ter suspenso o fornecimento sempre que não a pagar.  E surpreendentemente, o fraudador poderá ter o fornecimento de luz religado por força de decisão judicial, e eventualmente ser indenizado a título de danos morais. Fica evidente que neste contexto, lesiona-se o princípio da igualdade das partes e se favorece o enriquecimento sem causa daquele que é fraudador. Isto sem falar que se está diante de uma medida socialmente injusta, uma vez que o sistema tarifário prevê tarifas mais baixas para determinadas categorias de usuários (tarifa social de energia elétrica – artigo 110 da Resolução nº 414), sem, contudo, isentar integralmente qualquer usuário do pagamento da correspondente contraprestação.

A posição da Corte Superior é contraditória, uma vez que na hipótese de simples inadimplência do usuário não vigora o princípio da essencialidade do serviço, enquanto que para aquele que frauda o sistema elétrico descabe o corte sob aquele fundamento. Ou seja, dependendo da situação fática do réu, a energia será ou não serviço essencial. E o mais grave é que a  posição adotada pelo Superior Tribunal de Justiça não deixa de ser um estímulo à fraude.

É salutar destacar que há consenso na doutrina e jurisprudência acerca da impossibilidade de suspensão do fornecimento de energia quando o interesse da coletividade for substancialmente ameaçado, em razão da supremacia do interesse público sobre o particular. É o que se verifica quando estamos diante de inadimplência de Municípios, em relação aos quais se deixa de realizar o corte de energia, sob pena de inviabilizar os serviços públicos municipais, no caso de iluminação pública, cuja despesa também é ônus da Municipalidade e quando se trata de hospitais, que sem fornecimento de energia, ficariam com suas atividades prejudicadas.

Traz-se à colação:

ADMINISTRATIVO. DIREITO DO CONSUMIDOR. AUSÊNCIA DE PAGAMENTO DE TARIFA DE ENERGIA ELÉTRICA. INTERRUPÇÃO DO FORNECIMENTO. CORTE. IMPOSSIBILIDADE. ARTS. 22 E 42, DA LEI Nº 8.078/90 (CÓDIGO DE PROTEÇÃO E DEFESA DO CONSUMIDOR). 1. Recurso Especial interposto contra Acórdão que entendeu ser ilegal o corte de fornecimento de energia elétrica, em face de inadimplemento do Município recorrido. 2. Não resulta em se reconhecer como legítimo ato administrativo praticado pela empresa concessionária fornecedora de energia e consistente na interrupção do fornecimento da mesma em face de ausência de pagamento de fatura vencida. 3. A energia é, na atualidade, um bem essencial à população, constituindo-se serviço público indispensável subordinado ao princípio da continuidade de sua prestação, pelo que se torna impossível a sua interrupção. 4. O art. 22, do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, assevera que "os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos". O seu parágrafo único expõe que "nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados na forma prevista neste código". Já o art. 42, do mesmo diploma legal, não permite, na cobrança de débitos, que o devedor seja exposto ao ridículo, nem que seja submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça. Os referidos dispositivos legais aplicam-se às empresas concessionárias de serviço público. 5. Não há de se prestigiar atuação da Justiça privada no Brasil, especialmente, quando exercida por credor econômica e financeiramente mais forte, em largas proporções, do que o devedor. Afronta, se assim fosse admitido, aos princípios constitucionais da inocência presumida e da ampla defesa. 6. O direito do cidadão de se utilizar dos serviços públicos essenciais para a sua vida em sociedade deve ser interpretado com vistas a beneficiar a quem deles se utiliza. 7. Caracterização do periculum in mora e do fumus boni iuris para sustentar deferimento de ação com o fim de impedir suspensão de fornecimento de energia. 8. Recurso Especial não provido. [21]

Porém, é conveniente assinalar que existe, ainda que de forma minoritária, decisões do Superior Tribunal de Justiça que admitem o corte do fornecimento de energia elétrica, em caso de inadimplência de Municípios. Alude-se:

ENERGIA ELÉTRICA. CORTE POR INADIMPLÊNCIA. MUNICÍPIO. POSSIBILIDADE. AGRAVO REGIMENTAL. 1. A interrupção do fornecimento de energia elétrica por inadimplemento não configura descontinuidade da prestação do serviço público. Precedentes. 2. O interesse da coletividade não pode ser protegido estimulando-se a mora, até porque esta poderá comprometer, por via reflexa, de forma mais cruel, toda a coletividade, em sobrevindo má prestação dos serviços de fornecimento de energia, por falta de investimentos, como resultado do não recebimento, pela concessionária, da contra-prestação pecuniária. 3. Legítima a pretensão da Concessionária de suspender a decisão que, apesar do inadimplemento, determinou o restabelecimento do serviço e a abstenção de atos tendentes à interrupção do fornecimento de energia. 4. Agravo Regimental não provido.[22]

ADMINISTRATIVO. FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA.  FALTA DE PAGAMENTO. CORTE ADMINISTRATIVO. POSSIBILIDADE.

1. A Corte Especial, acompanhando o entendimento das Turmas de Direito Público, pacificou a questão sobre a possibilidade de corte administrativo do fornecimento de energia elétrica, tendo em vista as características inerentes ao contrato de concessão (equilíbrio fornecimento/pagamento) e o interesse coletivo.

2. O Tribunal de origem asseverou ser: a) incontestável a relação contratual entre a concessionária do serviço de energia elétrica e a empresa recorrida, e b) confesso o inadimplemento desta última.

3. Infere-se dos autos que os débitos são atuais e que a empresa foi notificada  para pagamento, razão pela qual a hipótese se subsume aos casos em que o Superior Tribunal de Justiça permite a suspensão do fornecimento de energia.

4. Recurso Especial provido.[23]

Na doutrina, há também posições favoráveis à suspensão do fornecimento de energia elétrica em face de pessoas jurídicas de Direito Público em caso de inadimplência. Afirma Denari (2005, p. 141):

Assim sendo, partindo do suposto de que todos os serviços públicos são essenciais, resta discorrer sobre a exigência legal da sua continuidade. A nosso aviso, essa exigência do art. 22 não pode ser subentendida: 'os serviços essenciais devem ser contínuos' no sentido de que não podem deixar de ser ofertados a todos os usuários, vale dizer, prestados no interesse coletivo. Ao revés, quando estiverem em causa interesses individuais, de determinado usuário, a oferta de serviço pode sofrer solução de continuidade, se não forem observadas as normas administrativas que regem a espécie. Tratando-se, por exemplo, de serviços prestados sob o regime de remuneração tarifária ou tributária, o inadimplemento pode determinar o corte do fornecimento do produto ou serviço. A gratuidade não se presume e o Poder Público não pode ser compelido a prestar serviços públicos ininterruptos se o usuário, em contrapartida, deixa de satisfazer suas obrigações relativas ao pagamento.[24]

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Sobre a autora
Danielle Cristina Nunes Bruno

Mestranda em Direito de Empresa e Negócios na UNISINOS (Universidade do Vale dos Sinos). Especialista em Direito Processual Civil pela UNICID (Universidade da Cidade de São Paulo. Advogada na CEEE-D (Companhia Estadual de Distribuição de Energia Elétrica - RS)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRUNO, Danielle Cristina Nunes. Do contrato de fornecimento de energia elétrica para consumidores do grupo B. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 4958, 27 jan. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/55304. Acesso em: 28 mar. 2024.

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