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Direitos humanos e previdência social: uma relação intrínseca

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23/01/2018 às 13:13
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3. A CONQUISTA DOS DIREITOS POLÍTICOS           

Após os sucessos revolucionários, ocorre, segundo Hobsbawn (2001), a consolidação da sociedade burguesa, seguidas do desenvolvimento industrial europeu e americano, o que deflagra o processo de urbanização e o surgimento de uma classe de trabalhadores industriais (proletários), que logo toma consciência da hegemonia burguesa e da injustiça da desigualdade social promovida pelo modo de produção capitalista, frustrando o ideário igualitário de 1789.

O desenvolvimento capitalista se alicerçava no liberalismo, doutrina na qual ocorre a valorização dos indivíduos, principalmente no âmbito econômico (de propriedade, produção e comércio), defendendo a livre concorrência e mínima intervenção estatal. Deste modo, a igualdade apenas em termos formais agrava a burguesia, na exata razão em que não levantava óbice aos seus negócios. Trindade (2002, p. 117;131) assevera que :

O discurso dos direitos humanos, de plataforma generosa e universal, como a burguesia o apresentara quando necessitava mobilizar o entusiasmo e a energia do povo, muito rapidamente se convertera em ideologia legitimadora de uma nova dominação social. À medida que passara de revolucionária à conservadora, a burguesia impusera, desde o triunfo em 1789, sua versão de classe dos direitos humanos. Essa versão embutia a contradição óbvia entre liberdade burguesa e igualdade, conferindo aos direitos humanos a função social de preservação do novo domínio. (...) O que a burguesia fizera conhecer como direitos humanos mal transbordava do estatuto jurídico dos seus interesses de classe e do seu domínio da sociedade: direito de propriedade, livre iniciativa empresarial, liberdade de explorar a força de trabalho alheia, liberdade de comércio, garantias censitárias e hegemonia estatal. Os direitos humanos reduziam-se a uma ideologia, no sentido de discurso legitimador da nova dominação de classe           

Ante tal quadro, a organização dos trabalhadores, por meio de sindicatos ou associações operárias era um meio plausível de lutar por direitos e pela erradicação da desigualdade verificada tanto social quanto economicamente. O socialismo, nessa medida, ofereceu embasamento ideológico e fundamento às praticas combativas empreendidas (HOBSBAWN, 2001). Direitos foram conquistados mediante lutas e embates entre trabalhadores e classe dirigente, tendo atrás de si toda uma história de truculenta repressão estatal, intolerância patronal, defesa de privilégios por parte das classes dominantes, prisões, enforcamentos e extradições de sindicalistas, degredos e mortes. Por fim, a força do movimento trabalhista levou os dirigentes a decidirem pela regulamentação da organização dos trabalhadores como forma de contenção e de dissolver o movimento trabalhista de inspiração socialista pois:

Se, no final do século XIX, os trabalhadores do sexo masculino já conquistavam direitos políticos em vários países, à medida que o século XX avançou, os êxitos da pressão operária e camponesa também forçaram o próprio conceito oitocentista de direitos humanos (direitos civis e políticos) a se expandir, com a progressiva incorporação jurídica dos direitos econômicos e sociais, nunca contemplados pelas revoluções burguesas (TRINDADE, 2002, p.149).


4. A CONQUISTA DOS DIREITOS SOCIAIS

A cidadania, até o início do século XX, era composta apenas por direitos civis e políticos, que detinham pouca influência direta sobre a desigualdade social oriunda do sistema de classes.  Para uma economia de mercado competitiva, os direitos civis eram essenciais, porquanto apregoavam igualdade de oportunidades e liberdades econômicas aos indivíduos.

Já os direitos políticos, com o movimento operário devidamente domesticado, teriam seu enfoque guinado para a participação política eleitoral. É nesse período, conforme Alves (2003) e para bloquear novos combates entre classe sociais, que é processada a anexação dos direitos sociais ao status de cidadania até então vigente, perfilhando o igual valor social dos indivíduos e intentando também minimizar (sem abolir) as diferenças de classe, legitimando as diferenças de classe, sejam em termos de Justiça Social, o que, de outro lado, na esfera política exprimirá a perda de prestígio do liberalismo para a constituição de um Estado intervencionista de caráter social. Após os impactos do primeiro grande conflito mundial (1914-1918) ocorre a efetivação dos direitos sociais em diversas cartas constitucionais, conferindo importância e prestígio para esta nova carga de direitos.


5. A CONSTITUIÇÃO MEXICANA – 1917

Anteriormente ao estalar da Primeira Grande Guerra Mundial (1914-1918) e da revolução socialista na Rússia em 1917, o princípio do século XX vivenciou uma revolução de grande impacto sociopolítico e cultural, na qual os oprimidos abalaram as antigas estruturas do poder: a revolução mexicana, em 1910.

Uma ditadura liderada por Porfírio Díaz detinha o poder desde o ano de 1876, mantendo-se pelo uso da força e de fraudes eleitorais, amparada por um bloco social integrado por latifundiários, grandes exportadores de minérios e de produtos agrícolas, uma Igreja Católica aferradamente antiliberal e antissocialista, bem como de representantes do capital estrangeiro instalado em vários ramos da economia (COMPARATO, 1999). No ano de 1910, um setor da elite liderado por Francisco Madero lutou pela implementação de reformas liberais, sendo derrotado, mediante fraude eleitoral, o que gerou, como resposta, uma insurreição armada desse grupo em consórcio com os campesinos, organizados, continua Comparato (1999) em guerrilhas e reivindicando reforma agrária, liberdades políticas e direitos sociais.

Vencendo a ditadura militarmente, quase tomaram o poder – o que foi sutilmente impedido por seus aliados liberais. Sem embargo, a participação das classes populares na revolução mexicana influenciou na produção, em 1917, de uma constituição vanguardista: houve o reconhecimento de direitos civis e políticos a toda a população e a incorporação em nível constitucional de direitos econômicos e sociais, ocasião na qual se registrou o esboço de uma seguridade social (TRINDADE, 2002).

O regramento constitucional cristalizado na revolução assegurou, pontua Trindade (2002), o acesso à educação, laica, gratuita, democrática e fundamentada nos resultados do progresso científico. Ademais, (FRAGA, 2000), encarava a democracia não exclusivamente como um arcabouço jurídico e um regime político, mas ao mesmo tempo a reconhecia como um sistema de vida fundado na constante promoção econômica, social e cultural do povo (art. 3°).

Em similaridade com os franceses de 1789, assegurava a liberdade individual (art. 5°) e religiosa (art. 24), estabelecendo ainda “a propriedade das terras e das águas compreendidas dentro dos limites do território nacional pertence originariamente à Nação, a qual teve e tem o direito de transmitir seu domínio a particulares, constituindo a propriedade privada”. Outorgando à Nação o poder de impor “à propriedade privada as regras ditadas pelo interesse público e regular o aproveitamento dos elementos naturais suscetíveis de apropriação, com vistas à distribuição equitativa e à conservação da riqueza pública” (art. 27). (FRAGA, 2000, p.27),

Já nos artigos 34 e 35 se garantia a cidadania a todos os homens e mulheres de mais de dezoito anos, direito ao sufrágio e elegibilidade universais. Finalmente, em seu artigo 123, a constituição discorria acerca de um dos motores da luta revolucionária: os direitos sociais dos trabalhadores, afiançando em nível constitucional a fixação da jornada de trabalho em oito horas, normalização do trabalho infantil e feminino, licença maternidade e intervalos para amamentação, repouso semanal remunerado, fixação de salário mínimo, isonomia salarial, remuneração adicional em horas extras, participação dos trabalhadores nos lucros das empresas, encargo patronal pelo fornecimento de habitação, escolas, enfermarias e outros serviços a seus empregados, responsabilidade patronal pela prevenção de acidentes de trabalho, liberdade sindical e direito de greve, indenização ao empregado por dispensa sem justa causa e previsão de leis instituindo seguros sociais (TRINDADE, 2002, p.154; COMPARATO, 1999, p.173-179).

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A constituição mexicana, naquele momento, era um dos documentos sociais mais avançados do mundo, trazendo em seu bojo novo patamar civilizatório e dando grande visibilidade aos direitos humanos.


6. A CONSTITUIÇÃO RUSSA – 1918

Em 1917 ocorre aquilo que ficou conhecido como revolução russa. Logo após a deflagração da luta revolucionária, os delegados populares aglomerados na assembleia que, naquele momento, encarnou o novo poder revolucionário – o III Congresso Pan-Russo dos Sovietes de Deputados Operários, Soldados e Camponeses – em uníssono proclamaram a “Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado”, uma espécie de brado proletário à Declaração burguesa de 1789 (HOBSBAWN, 2001).

Essa Declaração não adota a perspectiva individualista, de um ser humano abstrato, conforme a Declaração de 1789. A Declaração russa aborda o ser humano histórico, concretamente existente, reconhecendo a injusta divisão social operada na sociedade capitalista, negando a ideia de igualdade jurídica meramente formal. Esta Declaração adota a postura de eliminação da exploração do homem pelo homem, pugnando pela nacionalização dos meios de produção, dos bancos e da obrigatoriedade do trabalho (HOBSBAWN, 2001).

O corpo de princípios da mencionada Declaração foi agregado à primeira Constituição da República Socialista Federativa Soviética da Rússia, em julho de 1918, que conferiu uma série de direitos político-sociais, para além da igualdade meramente formal. A essência constitucional pretendida era garantir a liberdade e igualdade reais aos trabalhadores urbanos e rurais. Para tanto, fincou a separação entre Estado e Igreja, a liberdade de expressão (art. 14), de reunião (art. 15) e de associação dos trabalhadores (art.16). Afiança o acesso à educação (art. 17) e coloca o trabalho um dever de todos (art. 18). Em seu artigo 22 normatiza a igualdade de direitos dos cidadãos, afastando a opressão das minorias nacionais ou mesmo a restrição de sua igualdade jurídica.


7. CONSTITUIÇÃO DE WEIMAR – 1919

Ao final da 1ª Guerra Mundial, a Alemanha encontra-se abatida, tanto pelos encargos e indenizações de guerra quanto pelos impactos que dilaceraram sua população e economia. É nesse contexto que uma rebelião se tornou uma guerra civil, terminando na abdicação do Kaiser Guilherme II, e, ato contínuo, na proclamação da república e na configuração de um governo, a título provisório, de essência socialista, liderado pelo Partido Social-democrata (FERREIRA FILHO, 2000).

O movimento social-democracia alemão não visava à revolução social e sim uma solução para as contradições sociais da nação, que encontrou eco em sua constituição, de estilo social, votada em julho de 1919, a Constituição de Weimar definiu a igualdade jurídica dos indivíduos, os direitos civis e as liberdades individuais, seguindo a tradição liberal.

Esta nova carta constitucional, indica Ferreira Filho (2000), garante amparo a expensas do Estado, à maternidade, à saúde e ao desenvolvimento social das famílias (art.119); a assistência à juventude (art.12); os direitos de reunião (art.123); de associação (art.124) e de acesso ao serviço público (art.128).  Foi ainda avalizada em seu texto a liberdade religiosa, artística, científica e de ensino e, com escolaridade obrigatória, pública e gratuita (art.145). Na esfera econômica, coloca que a organização da economia deve assegurar a todos uma existência digna, ficando a liberdade econômica individual dentro desses limites, nos termos do art.151. A propriedade privada, conforme o art. 154 foi assegurada desde que esta cumpra a sua função social; houve previsão de um direito do trabalho uniforme (art.157) e de um sistema geral de previdência social e de proteção à saúde (art.161) - dando continuidade às contribuições de Bismarck e certifica a liberdade de associação (art.159). Havia ainda, nos termos do art. 165, a conclamação para empregados e patrões colaborarem na regulamentação das condições de salário e trabalho e no desenvolvimento das forças produtivas (art.165) (TRINDADE, 2002, p.161; COMPARATO, 1999, p.187-190).

Avalia Trindade (2002) que a Constituição de Weimar foi mais acanhada do que as constituições mexicana e russa, devido ao equilíbrio na luta de classes alemã. A série de mudanças em que o mundo ingressava, registradas e reconhecidas por essas constituições, que trazem a ideia de um Estado Social, indicavam, ainda que vagamente, que a humanidade iniciava verdadeira era nova, livre das guerras, da exploração do homem pelo homem, superando o fanatismo e os preconceitos (FERREIRA FILHO, 2000); todavia, estas esperanças foram brutalmente frustradas e os direitos humanos sofreram um período de violações massivas e sistemáticas com a formação dos Estados nazifascistas na Itália e na Alemanha, com a absoluta negação dos direitos individuais, civis e políticos, travando o alargamento dos direitos humanos, além de encaminhar o mundo novamente para uma guerra, a Segunda Guerra Mundial. Haveria de se passar alguns anos e o novo conflito bélico atingir o seu término para que os direitos humanos recobrassem o seu proeminente lugar e ingressassem, assim, na agenda internacional.

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Sobre o autor
Bernard Pereira Almeida

Graduado em Direito, especializou-se em Direito Processual e Material do Trabalho, bem como em Direito Previdenciário. Também é especialista em Docência do Ensino Superior. Mestre em Direito, Doutor em Educação e Pós-Doutorando em Direito. É membro do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário - IBDP e da Associação Brasileira de Advogados - ABA. No campo profissional, é advogado militante, sócio-proprietário do escritório De Paula & Almeida Advogados, atuando na seara Trabalhista e Previdenciária, em todo o Estado do Espírito Santo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Concomitantemente, labora como professor universitário. Autor de diversos artigos jurídicos e conta com dois livros publicados.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Bernard Pereira. Direitos humanos e previdência social: uma relação intrínseca. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5319, 23 jan. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/55481. Acesso em: 19 abr. 2024.

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