O princípio da boa-fé objetiva e sua incidência no Código de Processo Civil

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O princípio da boa-fé, cada vez mais destacado em várias linhas do ordenamento jurídico, sofreu algumas alterações no que tange à sua aplicação, efetivação e eventuais sanções decorrentes de sua não observância, quando do advento do novo Código de Processo Civil.

1. INTRODUÇÃO

Para o homem mediano o ouvir da palavra lei, já lhe vem à mente algo coercitivo, imposto, criado por uma autoridade e que caberá a este obedecê-la, caso contrário, estará sujeito as sanções em decorrência de tal contrariedade. Dessa forma, a lei desde os primórdios tem sido um instrumento para traçar as regras a toda sociedade, prevendo em seu bojo as sanções como já dito, para qualquer conduta que contrarie aquela determinada regra.

Todavia, a sociedade está em constante evolução, assim, mesmo antes do próprio Estado tomar posições para determinadas questões, a própria sociedade já estabelece padrões, sem nenhuma concretude, estando estes pautados em costumes radicados em subjetivismo, consideram e avaliam as situações de um ponto de vista meramente pessoal, sabendo que ao longo do tempo tais situações irão se modificar, mas mesmo assim, não se importam com as imposições provindas de qualquer autoridade externa.

Entretanto ao focar no campo da boa-fé, mesmo que a relações negociais estejam no âmbito privado das partes, há de se preservar o uso da boa-fé, destarte, a partir do momento em as partes buscam o órgão jurisdicional, algum requisito da relação negocial foi quebrado, ou, por outro ângulo, algum sujeito foi prejudicado com aquela determinada relação.

Contudo, necessariamente no ramo do direito, todas as regras estabelecidas devem ser precisas, objetivas, definitivas, exemplo disso, observando aquilo que é lícito e ilícito.

 Assim, ainda que numa demanda, um agente se comporte plenamente dentro dos procedimentos estabelecidos pelo ordenamento jurídico, o resultado obtido desta atuação não está isento à avaliação do percurso traçado para a produção dos resultados, pois no curso do processo o agente pode simplesmente se afastar dos padrões valorativos, desviando-se da boa-fé.

Partindo do princípio de que o processo é um instrumento público, e que através dele é possível alcançar uma pacificação social, é inconcebível qualquer tipo de abuso de direito, atos que comprometam o desenvolvimento da demanda ou qualquer outro tipo de atuação que tenha por intuito a litigância de má-fé por qualquer sujeito, seja ele as partes, o defensor das partes, o juiz, os servidores, uma testemunha, o perito, oficial de justiça. Pautados nessa conduta com objetivo de obstar o fim social do processo, tais comportamentos merecem ser sancionados, respondendo os agentes por todo e qualquer prejuízo que causarem.  

No que diz respeito ao princípio da boa-fé, tal princípio não é considerado uma mera cláusula para se medir comportamento. A abrangência de tal princípio é tamanha, que o mesmo é capaz de ser invocado não só nas esferas cíveis, mas em todas as outras (constitucional, penal, defesa do consumir, trabalhista, tributária, empresarial, administrativa). Tal princípio não é estático, o mesmo percorre toda cadeia processual, possuindo um alto grau de dinamicidade, por isso em dizer que a boa-fé deve ser aplicada antes, durante e depois de uma relação quer seja ela negocial ou processual.

Quando da análise do artigo 5º do Código de Processo Civil, o mesmo retrata confiança, palavra chave do princípio da boa-fé, impondo a todos os sujeitos do processo, quer seja parte ou não, atitudes e condutas condizentes com o dever de lealdade, probidade, cooperação, dentre outros. Haja vista, tais comportamentos devem reger todo curso processual na busca da efetiva concretização da Justiça.

Em que pese o ordenamento pátrio trazer em seu bojo os deveres de lealdade, cooperação, probidade, sendo tais considerados como verdadeiros pilares que sustentam o sistema jurídico-processual, ainda assim, infelizmente há possibilidade de se deparar com a má-fé no transcorrer do processo. Mesmo com todos os instrumentos inibitórios, ou seja, imposição de multas, indenizações, que na maioria das vezes são pecuniárias, instituídos pelo próprio ordenamento jurídico para impedir tais condutas, lamentavelmente, pode-se assim dizer que o instituto não é totalmente eficaz.

Em consequência de tais atos desleais, desprovidos de probidade, eticidade e de qualquer atributo de licitude, quem sofre com tais atitudes é a sociedade, pois tais sujeitos fazem uso do processo e da via jurisdicional para obter lucros ilícitos e imorais, gerando assim um descredito e desvalorização no Poder Judiciário.

Posto isto, no decorrer do presente estudo além da análise sobre a conceituação da boa-fé objetiva, suas funções, finalidades e seus deveres anexos, a visão do presente instituto sob a ótica constitucional, como princípio norteador, também será feita uma abordagem do princípio da boa-fé processual no código de processo civil pátrio, discorrendo sobre a aplicabilidade das sanções caso haja transgressão a tal princípio.

Assim, para o pleno desenvolvimento deste trabalho foram consultados livros que discorrem sobre o assunto em epígrafe, encontrados na biblioteca das Faculdades Integradas de Ourinhos. Realizadas, buscas e análises de materiais eletrônicos; CD-ROM, acervos privados, a fim de complementar o estudo.


2. DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO

A boa-fé possui suas raízes no direito romano, tendo como expressão a palavra “fides”, que direciona para ideia de lealdade, confiança, transparência, honestidade.

Para os romanos a expressão “fides” era de grande importância e valia, pois se retratava como uma promessa, compromisso ou confiança. Dessa forma, toda palavra direcionada estaria sob a égide do respeito, o que mais tarde, se incorporou a ideia de ética.

A confiança se manifestava de várias formas, tinha como um dos exemplos a “fides patroni” a qual reportava a confiança entre patrão e empregados, apontando também a classe dos cidadãos livres e os escravos.

Adiante, nasceu a “bona fides”, teve seu desenvolvimento centrado no conceito de “fides”. Partindo dessa premissa o julgador possuía uma ampla margem de atuação em suas decisões, pois ao se deparar com o caso concreto, era concedido a ele o poder de condenar ou não o demandado. Observa-se que tal decisão não se tinha por base uma estrutura legal, sendo apenas sustentada pelos atributos da boa-fé.

Explica Flávio Tartuce que “desde os primórdios do direito romano, já se cogitava outra boa-fé, aquela direcionada à conduta das partes, principalmente nas relações negociais e contratuais”. (TARTUCE, 2015, p. 579)

Para Flávio Alves Martins no tocante a boa-fé, explica[1]:

Flávio Alves Martins explica que a boa-fé no direito romano foi a ponte que permitiu a passagem do formalismo para o consensualismo, uma vez que, desaparecendo a certeza da forma, é a boa-fé entre os contratantes que dá sustentáculo à relação jurídica-obrigacional. (MARTINS, apud, ANDRÉ HENTZ, 2007, p. 01)

No direito romano a boa-fé foi causa preponderante na passagem do formalismo para o consensualismo, vez que, mesmo sendo a forma abalada ou descaracterizada, a boa-fé era a base de sustentação para aquela determinada relação obrigacional.

Para o consensualimo não existe regras específicas, o simples acordo de duas ou mais vontades já é o bastante para que aquela obrigação se torne válida, como já mencionado anteriormente, não se exige em regra uma forma especial para a formação do vínculo contratual. Apesar desse princípio não exigir uma forma especial, os contratos que mantinham a forma solene, a sua validez estava condicionada a certos requisitos exigidos pela lei.

Mais adiante, especificamente durante a Idade Média, o Direito Civil era fortemente influenciado pelo direito canônico, dessa forma a boa-fé se atrelava a ideia de pecado.

Segundo João Emílio de Assis Reis[2]:

A ideia de boa-fé estava completamente atrelada à ideia de pecado. À palavra dada e a promessa era atribuído valor moral, porque na cultura cristã a mentira é considerada pecado. Assim, a boa-fé passa a ter um significado unificado, cuja substância se encontra na ideia de “ausência de pecado”. Enfraquece-se o seu significado ético do direito obrigacional e é fortalecida a dimensão subjetivista. Esta última é fortalecida com a vinculação a ideia do pecado porque não basta mais a mera ignorância do vício é necessária a consciência íntima da ausência do pecado, de se estar agindo corretamente.

Em contrapartida, na Idade Moderna, época em que se deu o renascimento do comércio, bem como as mudanças econômicas, cientificas, sociais e religiosas, o consensualismo ganha força, nessa época o considerado marco foi o abandono das formas rígidas (formalismo), e o trunfo do chamado princípio do consensualismo, adotado como base da teoria dos contratos, apoiando-se no princípio da autonomia da vontade em detrimento da boa-fé.

Destarte, a positivação da boa-fé ocorreu somente em 1804 com o advento do Código de Napoleão. Todavia, mesmo sendo ela positivada não alcançou os objetivos esperados, muito menos se desenvolveu da forma na qual se pretendia, vez que na França a renomada Escola da Exegese dominou o pensamento jurídico durante o século XIX propagando que o intérprete era mero escravo da lei.

Todavia, a boa-fé começou a ter aplicabilidade nos tribunais franceses somente na segunda metade do século passado, quando passou a ser exigida tanto do devedor no cumprimento de suas obrigações contratuais como do credor no exercício de seus direitos.

A plenitude da boa-fé também teve seu marco com a entrada em vigor do Código Civil Alemão em 1900 (Bürgerliches Gesetzbuch – BGB), quando então passou a influenciar as demais codificações modernas. Um de seus maiores adventos foi a distinção entre a boa-fé subjetiva (guter glauben) e a boa-fé objetiva (treu und glauben).

Em síntese, pode-se dizer que a boa-fé subjetiva, conhecida também como boa-fé (interior), está atrelada ao estado psicológico do agente, uma crença que traz um espírito de justiça, credibilidade quanto ao que se está praticando. Em contrapartida a boa-fé objetiva, denominada (exterior), impõe limitações, normas e condutas a serem respeitadas pelos agentes quando de suas relações, as quais devem estar dotadas de segurança, equilíbrio e além de satisfazer os interesses das partes, alcance também os interesses sociais.

De acordo com Flávio Tartuce, “com essa evolução, alguns Códigos da era moderna fazem menção a essa nova faceta da boa-fé, caso do Código Civil Português de 1966, do Código Civil Italiano de 1942 e do BGB alemão, dentro outros”. (TARTUCE, 2015, p. 580)

Assim, refere-se que tais normas serviram de base em seus ordenamentos jurídicos. Logo, respectivas normas foram como marco teórico para o Código Civil Brasileiro de 2002.

No Brasil, a boa-fé ganha espaço com o Código Comercial de 1850, em seu artigo 131[3], inciso 1, quando trazia em seu bojo:

Artigo 131 – Sendo necessário interpretar as cláusulas do contrato, a interpretação, além das regras sobreditas, será regulada sobre as seguintes bases:

1 - a inteligência simples e adequada, que for mais conforme à boa fé, e ao verdadeiro espírito e natureza do contrato, deverá sempre prevalecer à rigorosa e restrita significação das palavras;

Contudo tal dispositivo não foi abarcado pela doutrina muito menos pela jurisprudência, de modo que sua efetividade não se propagou.

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 Teresa Negreiros explica a não propagação da boa-fé[4]:

Teresa Negreiros explica que isso ocorreu em razão de a boa-fé ter sido restringida a mera função de interpretação/integração do contrato, sem que fosse reconhecido o seu papel de criadora de deveres. Assim, a boa-fé foi colocada em contraposição ao sentido literal das cláusulas contratuais -- o que é criticado pela autora --, na medida em que deveria incidir não apenas na relação entre o declarado e o suposto, "mas igualmente sobre o núcleo mesmo da vontade intencionada, podendo inclusive redundar em sua desconsideração”. (NEGREIROS, apud, ANDRÉ HENTZ, 2007, p. 03)

Nota-se que nos termos do texto citado acima, o qual se reporta ao artigo 131 do Código Comercial, não foi acobertado pela doutrina nem pela jurisprudência, em função do desvio, no que tange a aplicação da real finalidade do instituto da boa-fé, ou seja, não ser este apenas usado como fonte interpretação mais também como fonte criadora de deveres entre as partes.

Nesse norte, o reaparecimento da boa-fé no ordenamento jurídico se deu de forma restrita no Código Civil de 1916.

Artigo 1.143. Se duas ou mais pessoas tiverem direito ao retrato sobre a mesma coisa, e só uma o exercer, poderá o comprador fazer intimar as outras, para nele acordarem. (Redação dada pelo Decreto do Poder Legislativo nº 3.725, de 15.1.1919)

Artigo 1.531. Aquele que demandar por dívida já paga, no todo ou em parte, sem ressalvar as quantias recebidas, ou pedir mais do que for devido, ficará obrigado a pagar ao devedor, no primeiro caso, o dobro do que houver cobrado e, no segundo, o equivalente do que dele exigir, salvo se, por lhe estar prescrito o direito, decair da ação. (Redação dada pelo Decreto do Poder Legislativo nº 3.725, de 15.1.1919)

Segundo Flávio Tartuce, uma das mais festejadas mudanças introduzidas pelo Código Civil de 2002, refere-se à revisão expressa do princípio da boa-fé contratual, que não constava da codificação de 1916. Como se sabe, a boa-fé, anteriormente, somente era relacionada com a intenção do sujeito de direito, estudada quando da análise dos institutos possessórios, por exemplo. (TARTUCE, 2015, p. 579)

Veja que, em 1916 a boa-fé ainda não se encontrava codificada, pois era observada apenas na esfera subjetiva atrelando-se apenas a intenção dos sujeitos. No Brasil, somente em 1990 com o advento do Código de Defesa do Consumidor, é que a boa-fé objetiva foi adotada. Desde então passou a ser norte para interpretação de cláusulas contratuais, bem como, para regulamentar as obrigações a serem pactuadas, exigindo das partes que entre si comportassem com eticidade e lealdade.

Na visão de Claudia Lima[5]:

Cláudia Lima Marques explica que a adoção da boa-fé objetiva pelo Código de Defesa do Consumidor contribuiu sobremaneira na exegese das relações contratuais no Brasil como linha teleológica de interpretação (art. 4º, III), e como cláusula geral (art. 51, IV), positivando em todo o seu corpo de normas a existência de uma série de deveres anexos às relações contratuais, como o dever de informação dos fornecedores e prestadores de serviços (art. 31) e a vinculação à publicidade divulgada (artigos 30 e 35), dentre outros”. (MARQUES, apud, ANDRÉ HENTZ, 2007, p. 04)

Em continuação, as palavras de Teresa Negreiros[6]:

Teresa Negreiros entende que a grande contribuição da inserção da boa-fé objetiva no ordenamento jurídico por meio do art. 51, IV, do Código de Defesa do Consumidor, que prevê a nulidade de cláusulas contratuais incompatíveis com a boa-fé, foi a aproximação com a Constituição Federal. Isso porque, para que esse dispositivo seja aplicado, "há que se buscar na normativa constitucional critérios de interpretação e densificação desta noção que funcionalizem à proteção da pessoa, de sua dignidade – onde e para onde, em última e definitiva instância, se radicam e convergem os princípios constitucionais".

Fica evidente, portanto, que a proteção contratual conferida ao consumidor – parte mais fraca na relação de consumo – é, na verdade, a consagração do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, o que significa, em última análise, a aproximação entre Ética e Direito”. (NEGREIROS, apud, ANDRÉ HENTZ, 2007, p. 04)

Nota-se que a codificação da boa-fé, no campo consumerista, trouxe um avanço significativo ao ordenamento jurídico. De certo modo, a inserção da boa-fé respaldada em normas constitucionais, trouxe além do atendimento as necessidades dos consumidores, a proteção de seus interesses econômicos, bem como, o respeito a sua dignidade, qualidade de vida, saúde e segurança, dentre outros atributos.

Contudo, mesmo com os avanços no Código de Defesa do Consumidor, é no Código Civil de 2002 que a boa-fé alcança seu ápice no ordenamento jurídico brasileiro. Desde então, passa a ser aplicada como fonte de deveres autônomos sobre todos os contratos, sejam eles de quaisquer espécies. Assim, há uma expansão do instituto, não mais restringindo apenas às relações consumeristas, deixando de ser visto apenas no âmbito subjetivo, passando então sua aplicabilidade com maior incidência no âmbito objetivo.

Destarte, codificada no Código Civil de 2002, a boa-fé encontra-se disciplinada em 03 (três) artigos, conforme define Hentz[7]:

A boa-fé objetiva encontra-se disciplinada em três dispositivos do Código Civil de 2002 e em cada um deles tem um papel diferente a desempenhar no ordenamento jurídico. O art. 422 estabelece que "os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé". Trata-se da função integrativa. O art. 113 determina que "os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. Eis a função interpretativa. Por fim, a função limitativa está prevista no art. 187, que diz que "também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes"(grifo nosso) (ANDRÉ HENTZ, 2007, p. 05)

Por fim, com a expansão do instituto da boa-fé este ganha força, sendo que sua importância ultrapassa as esferas particulares incidindo na esfera processual. Assim com o advento da Lei nº 13.105/2015, intitulado como o Código de Processo Civil, abordaremos o estudo em capítulo reservado no que tange ao instituto da boa-fé como princípio processual.

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