Capa da publicação A dimensão jurídica da Lei de Anistia
Capa: F. Rodrigues Pozzebom / Agência Brasil
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A dimensão jurídica da Lei de Anistia

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18/03/2024 às 19:57
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A Lei de Anistia é válida juridicamente, apesar de contestações. Negar sua autoridade é negar a democracia e desrespeitar o STF.

Resumo: não obstante o princípio basilar da segurança jurídica como elemento fundamental da axiologia jurídica, inerente ao Direito como instrumento político viabilizador da coexistência humana, começaram a surgir, no cenário político brasileiro da atualidade, algumas vozes dissonantes em relação à validade, até então incontestável, da Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979 - Lei de Anistia. Com efeito, o artigo propõe-se a analisar e discutir a Lei de Anistia, notadamente a sua dimensão jurídica (e consequências ínsitas).

Palavras-chave: Anistia. Regime militar. Crime contra a humanidade. Imprescritibilidade.


1. Introdução

Inicia-se a presente exposição de ideias afirmando que o passado não se apaga e não se esquece. Tal afirmação objetiva esclarecer o trajeto a ser percorrido na digressão que se fará sobre tão delicado tema, o qual, durante mais de três décadas, permaneceu no limbo dos debates, ostentando, no momento atual, quase que uma visão unilateral, prejudicando a verdadeira compreensão histórico-jurídica do fenômeno e inviabilizando, em última análise, a definitiva superação da altercação que, volta e meia, retorna à mídia nacional, ressuscitando as mais profundas paixões.

Não obstante o princípio basilar da segurança jurídica como elemento fundamental da axiologia jurídica, começaram a surgir, no cenário político brasileiro da atualidade, algumas vozes dissonantes em relação à validade, até então incontestável, da Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979 - Lei de Anistia. Assim, o artigo propõe-se a analisar e discutir a Lei de Anistia, notadamente a sua dimensão jurídica (e consequências ínsitas).


2. Da Discussão sobre a Constitucionalidade da Lei nº 6.683/79

A discussão jurídica a respeito da constitucionalidade da Lei de Anistia1, notadamente da previsão contida no seu art. 1º, § 1º, não é nova. O assunto volta e meia é retomado, mesmo diante da existência de uma decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal. Em 28 e 29/04/2010, o Plenário do STF debateu sobre o pedido formulado pelo Conselho Federal da OAB na ADPF nº 153/DF, o qual, em síntese, objetivava que a Corte Suprema declarasse o não recebimento, pela Constituição de 1988, da regra contida no art. 1º, § 1º, da Lei nº 6.683/79. Pretendia a OAB que a aludida norma fosse interpretada de modo a não abarcar os crimes comuns praticados pelos agentes da repressão contra opositores políticos, concluindo, assim, não terem eles sido anistiados. O STF, na ocasião, tendo como relator o ministro Eros Grau, entendeu pela improcedência (sete votos a dois) da ADPF. Tendo em vista o farto arcabouço hermenêutico produzido a partir dos debates, pode-se extrair uma série de manifestações à Lei de Anistia, resumidas abaixo.

2.1. Do Voto do Ministro Eros Grau, Relator

a) Consignou a importância de se considerar a realidade histórica quando da interpretação do texto jurídico.

b) Afirmou que a Lei de Anistia não implicou em ofensa ao princípio da isonomia.

c) Assentou que o arguente incidiu num raciocínio contraditório, sobretudo ao exigir que a Lei de Anistia, para produzir efeitos, deveria ser legitimada, após a entrada em vigor da atual Constituição Federal, pelo Poder Legislativo formado a partir de eleições livres, uma vez que, segundo tal ratio, toda a legislação anterior à Carta de 1988 seria, por força dela mesma, inconstitucional.

d) Registrou que a petição inicial "ignora o momento talvez mais importante da luta pela redemocratização do país, o da batalha da anistia" (STF, 2010).

e) Explicou que várias leis de anistia editadas no país fizeram alusão à expressão "crimes conexos a crimes políticos", o que revela a existência de uma "conexão sui generis, própria ao momento da transição para a democracia" (STF, 2010).

f) Alertou que a Lei de Anistia ostenta caráter bilateral e "somente não foi irrestrita porque não abrangia os já condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal" (STF, 2010).

g) Relacionou uma série de julgados históricos proferidos pelo STF nos quais restou consignado o caráter amplo das anistias concedidas no Brasil.

h) Pontuou julgados históricos do STF, os quais, enfatizando o caráter benéfico da anistia, atribuíram à palavra condenados, prevista no art. 1º, § 2º, da Lei nº 6.683/79, o significado de condenado por sentença penal transitada em julgado.

i) Elencou uma série de atos de anistia editados entre 1891 a 1985, relativos a diversos acontecimentos ocorridos ao longo da história brasileira, lembrando que tais episódios (e respectiva lei anistiadora) devem ser interpretados tomando-se a realidade político-social daqueles tempos.

j) Asseverou que a Lei de Anistia abarca uma decisão política do momento da transição conciliada de 1979, sendo, portanto,"uma lei-medida" (STF, 2010).

l) Frisou que a Lei de Anistia, por revelar natureza essencialmente política, não pode sofrer revisão por parte do Judiciário.

m) Registrou que a edição da EC nº 26/852 reafirmou a anistia concedida em 1979, uma vez que a mesma também convocou a assembleia nacional constituinte, cuja missão foi dotar o país de uma nova ordem constitucional.

2.2. Do Voto da Ministra Cármen Lúcia

a) Registrou a impertinência da alegação segundo a qual a Lei nº 6.683/79 teria sido formulada por um Congresso Nacional ilegítimo, uma vez que, se tal assertiva fosse verdadeira, teríamos que questionar a própria legitimidade da Constituição de 1988.

b) Recordou que a sociedade brasileira participou da elaboração da Lei de Anistia, destacando a participação da OAB, da CNBB e de personagens da intelectualidade brasileira.

c) Questionou se seria possível modificar a exegese conferida a um dispositivo legal, "mesmo após três décadas de sedimentação de uma linha de entendimento e interpretação", tendo a ministra respondido que sim, ressalvando que, por se tratar de matéria penal, eventual mudança jamais poderia retroagir, salvo para beneficiar o réu.

d) Asseverou que a aceitação da tese formulada na ADPF nº 153 significaria uma espécie de revisão criminal às avessas.

e) Alertou que a "não se considerar a que se destinou a Lei n. 6683/79, quando de sua edição, e desconectando-se a norma do seu § 1º do art. 1º do momento e das contingências históricas [...], sem dúvida seria de se considerar que, incorrendo conexão entre os crimes de tortura e os crimes políticos, não haveria como se considerar anistiados todos eles" (STF, 2010).

A ministra Cármen Lúcia julgou improcedente a ADPF nº 153.

2.3. Do Voto do Ministro Ricardo Lewandowski

a) Registrou que a "atecnia, proposital ou involuntária [...] do § 1º do art. 1º da Lei nº 6.683/1979, no ponto em que alude à conexão entre crimes comuns e políticos, para o efeito de estender a anistia aos agentes estatais, vem causando, por sua inegável equivocidade [...] considerável perplexidade dentre aqueles que buscaram interpretá-lo" (STF, 2010).

b) Aduziu que, "embora o legislador de 1979 tenha pretendido caracterizar, para efeito da anistia, a conexão material entre ilícitos de natureza distinta praticados por pessoas diferentes e circunstâncias diversas, com o objetivo de ensejar a absorção das condutas delituosas comuns pelos crimes políticos, não é difícil constatar que tal desiderato, ao menos do ponto de vista técnico-jurídico, não logrou ser bem sucedido" (STF, 2010).

c) Afirmou que, ainda que o país estivesse em uma "situação de beligerância interna ou [...] enfrentando uma [...] 'guerra subversiva', [...] os agentes estatais estariam obrigados a respeitar os compromissos internacionais concernentes ao direito humanitário, assumidos pelo Brasil desde o início do século passado" (STF, 2010).

d) Explicou que o STF estabelece uma diferença entre crimes políticos típicos e crimes políticos relativos.

e) Mencionou que a Corte Interamericana de Direitos Humanos assentou que o Brasil deve "investigar, ajuizar e punir as violações graves aos direitos humanos" (STF, 2010).

O ministro Lewandowski julgou procedente (em parte) a ADPF "para dar interpretação conforme ao § 1º do art. 1º da Lei nº 6.683/79, de modo a que se entenda que os agentes do Estado não estão automaticamente abrangidos pela anistia contemplada no referido dispositivo legal, devendo o juiz ou tribunal, antes de admitir o desencadeamento da persecução penal contra estes, realizar uma abordagem caso a caso (case by case approach)" (STF, 2010).

2.4. Do Voto do Ministro Ayres Britto

a) Destacou a distinção feita pelo ministro Lewandowski a respeito de crimes políticos típicos e crimes políticos relativos.

b) Afirmou que a Lei de Anistia até podia, por deliberação do Congresso Nacional, anistiar torturadores, desde que o fizesse expressamente, uma vez que a concessão ampla, geral e irrestrita de tal instituto precisa "ser algo deliberado e muito claro, notadamente quando formalizada após um regime político de exceção" (STF, 2010).

O ministro Ayres Britto julgou procedente (em parte) a ADPF nº 153 para extrair da interpretação a ser conferida ao § 1º do art. 1º da Lei nº 6.683/79 os delitos (a tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos) previstos no art. 5º, XLIII, da CF.

2.5. Do Voto do Ministro Gilmar Mendes

a) Mencionou que a anistia é um ato revestido de caráter eminentemente político e sua amplitude deve ser igualmente definida de forma política.

b) Aduziu que a anistia de 1979 "representa o resultado de um compromisso constitucional que tornou possível a própria fundação e a construção da ordem constitucional de 1988" (STF, 2010).

c) Enfatizou "que é necessário atentar-se para a natureza pactual da Carta de 1988, e verificar-se a amplitude dos compromissos políticos firmados por ocasião da assembleia nacional constituinte" (STF, 2010).

d) Recordou que a "superação do estado de beligerância acompanha a história das sociedades ocidentais e está presente, na qualidade de objetivo, de todas as ordens constitucionais pactuadas", e que a "ideia de anistia, como parte integrante deste pacto político constitucionalizado, não pode ser tomada de forma restritiva" (STF, 2010).

e) Asseverou que "a perspectiva ideológica não justifica o cometimento de atrocidades como sequestros, torturas e homicídios cruéis", registrando, inclusive, que "muitos dos que recorreram a estes delitos não buscavam a normalidade democrática, mas a defender sistemas políticos autoritários" (STF, 2010).

f) Esclareceu que o "fortalecimento da Democracia enquanto regime se dá na sua capacidade de resolver os conflitos", e que "um dos instrumentos de fortalecimento desse ideário é exatamente a formação de uma Constituição pactuada" (STF, 2010).

g) Frisou que a anistia prevista na Lei nº 6.683/79 "é abrangente o bastante para abarcar todas as posições político-ideológicas existentes na contraposição amigo/inimigo estabelecidas no regime político precedente" (STF, 2010).

h) Assentou que a anistia, uma vez concedida, não pode ser revogada.

i) Pontuou que o STF considera que as normas que versam sobre prescrição são de direito material, motivo pelo qual, em havendo alteração normativa que venha a tornar um fato delituoso como imprescritível, a nova regra não poderá retroagir.

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l) Anotou que "a EC nº 26/85 incorporou a anistia como um dos fundamentos da nova ordem constitucional que se construía à época, fato que torna praticamente impensável qualquer modificação de seus contornos originais" (STF, 2010).

O ministro Gilmar Mendes votou pela improcedência da ADPF nº 153.

2.6. Do Voto da Ministra Ellen Gracie

a) Asseverou que a alegação de que a Lei nº 6.683/79 não foi recepcionada pela CF de 1988 conduziria ao paradoxo de retirar o mesmo benefício de todos quantos foram por ele alcançados.

b) Registrou que a tese da desqualificação do Congresso Nacional que aprovou a Lei de 1979 não resiste à constatação de que tal diploma legal foi reiterado pela EC nº 26/85.

c) Mencionou que o termo anistia significa, em sua acepção grega, esquecimento, desconsideração intencional ou perdão de ofensas passadas, denotando, portanto, "superação do passado com vistas à reconciliação de uma sociedade", por isso bilateral (STF, 2010).

e) Afirmou que nem "mesmo aqueles que desse pacto [anistia] não participaram - porque não pretendiam a finalidade de democratização do país - podem negar sua existência. Seria recusar validade à história suficientemente documentada" (STF, 2010).

A ministra Ellen Gracie votou pela improcedência da ADPF nº 153.

2.7. Do Voto do Ministro Marco Aurélio

a) Afirmou que a atribuição do Congresso Nacional, em matéria de anistia, é política e não se submete, sob o prisma da oportunidade e da conveniência, a qualquer outro poder.

b) Ressaltou que a Lei de Anistia aproxima-se de uma lei que abole o crime, já tendo exaurido seus efeitos.

c) Destacou que a anistia é "virada de página definitiva, perdão em sentido maior, desapego a paixões" (STF, 2010).

d) Registrou que a Lei de Anistia deve ser interpretada diante de seu contexto histórico.

O ministro Marco Aurélio votou pela improcedência da ADPF nº 153.

2.8. Do Voto do Ministro Celso de Mello

a) Assentou que a anistia configura uma das expressões da clemência soberana do Estado, sendo que seus efeitos, em matéria penal, incidem retroativamente.

b) Registrou que as leis de anistia, geralmente, são destinadas a crimes políticos, nada obstando que alcancem crimes comuns.

c) Recordou que distinguida doutrina penal admite a possibilidade de se conceder anistia aos delitos comuns, bem assim aos de natureza política, exceto aos vedados pelo art. 5º, XLIII, da CF. Assim, entendeu que o Congresso Nacional, em 1979, possuía atribuição para estender o benefício da anistia às infrações penais comuns, o que reveste de plena legitimidade a opção jurídico-legislativa levada a efeito pelo Parlamento da época.

d) Frisou que o art. 1º, § 1º, da Lei nº 6.683/79, ao considerar conexos, para efeito de concessão de anistia, os crimes de qualquer natureza relacionados com os crimes políticos ou praticados por motivação política, realizou indiscutível intrepretação autêntica da expressão crime conexo, abrangendo, assim, os de qualquer espécie.

e) Reconheceu que a anistia de 1979 foi concedida com propósito bilateral, com "a finalidade de favorecer aqueles que, em situação de conflitante polaridade e independentemente de sua posição no arco ideológico, protagonizaram o processo político ao longo do regime militar, viabilizando-se, desse modo, [...] a construção do necessário consenso, sem o qual não teria sido possível a colimação dos atos objetivos perseguidos pelo Estado e, sobretudo, pela sociedade civil naquele particular e delicado momento histórico da vida nacional" (STF, 2010).

f) Explicou que a Lei nº 6.683/79, por ostentar caráter bilateral, não pode ser taxada de autoanistia.

g) Referiu que a Lei de Anistia foi editada antes da adoção, por parte das Nações Unidas, da Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, de 1984, e da promulgação, pelo Brasil, da Lei nº 9.455/97, que define o crime de tortura, o que impede a supressão da Lei de 1979 por legislação superveniente, sob pena de se violar a regra que veda a retroatividade da lei penal mais severa.

h) Detectou que a pretensão puntiva, caso aceita a postulação deduzida na ADPF nº 153, já estaria fulminada pela prescrição, esta avaliada pelo prazo mais longo (20 anos), conforme previsto no Código Penal.

i) Rejeitou o argumento relativo à imprescritibilidade dos delitos outrora cometidos, ressaltando que a invocada Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes de Lesa-Humanidade foi adotada, no cenário internacional, em 1968, jamais tendo sido subscrita pelo Brasil, tornando-se uma verdadeira res inter alios acta em face do Estado brasileiro, motivo pela qual a ventilada claúsula de imprescritibilidade não se aplica, não obriga nem vincula o Brasil.

j) Advertiu que o modelo constitucional pátrio inadmite o emprego de texto internacional, do qual o país sequer é signatário, como fonte do Direito Penal, mormente diante do postulado da legalidade.

O ministro Celso de Mello votou pela improcedência da ADPF nº 153.

2.9. Do Voto do Ministro Cezar Peluso

a) Pontuou que o termo conexo, conforme mencionado na Lei nº 6.683/79, não possui o sentido técnico-jurídico, mas metajurídico, razão pela qual não pode ser interpretado à luz de definições obtidas puramente junto à teoria do processo penal.

b) Registrou que a adoção de uma definição puramente processual do termo conexo conduziria a uma anistia cambaia, ou seja, somente um dos lados do conflito político seria beneficiado (STF, 2010).

c) Advertiu ser "inútil argumentar [como faz a arguente] que os agentes da repressão não teriam cometido crimes políticos, pela razão breve de que a anistia também alcança os chamados 'crimes comuns'" (STF, 2010).

d) Consignou que a norma atacada através da ADPF em nenhum momento ofende o princípio da igualdade, bastando, para tanto, analisar o vínculo, que está previsto no art. 1º, § 1º, da Lei nº 6.683/79, entre os elementos de motivação objetiva dos crimes.

e) Afastou a alegação de ter havido autoanistia, uma vez que proveio de um acordo.

f) Explicou que, admitindo-se uma das teses da arguente, toda a Lei de Anistia estaria revogada, pois o texto advém da mesma fonte de produção, ou seja, o Congresso Nacional, na sua composição de 1979, padecendo, portanto, do mesmo vício de legitimidade.

g) Ressaltou, a título de argumentação, que ainda que a arguente tivesse sucesso nas teses levantadas, ainda assim a procedência da ADPF nº 153 não levaria a nenhuma utilidade prática, tendo em vista o fenômeno da prescrição.

h) Enfatizou que, ainda que a Lei de Anistia fosse revogada por outro diploma legal, o sistema constitucional não permitiria a revogação dos efeitos já produzidos pela Lei nº 6.683/79, uma vez que a lei posterior seria considerada lex gravior, impossibilitada, portanto, de retroagir.

O ministro Peluso votou pela improcedência da ADPF nº 153.


3. Da Retomada do Debate sobre a Lei de Anistia

Nada obstante o que restou firmado na ADPF nº 153, o debate sobre a constitucionalidade da Lei de Anistia é incrivelmente retomado, - ao arrepio do próprio efeito vinculante expressamente previsto na hipótese e, igualmente, em inconteste afronta aos ditames do Estado de Direito, que preconiza a indiscutibilidade das decisões terminativas proferidas pela Suprema Corte -, sendo certo afirmar que todas as teses apresentadas no momento atual já foram amplamente discutidas, conforme será demonstrado.

3.1. Da Síntese do Caso Riocentro

Como exemplo dessa iniciativa de se retomar o debate em torno da Lei de Anistia, cumpre mencionar o Processo nº 0017766-09.2014.4.02.5101, que tramitava na 6ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro, relativo ao Caso Riocentro (1981). A partir de denúncia formulada pelo MPF, o juízo federal, analisando questão inerente à prescrição, asseverou a sua não ocorrência, fundando-se em duas premissas. Na primeira, acolheu a tese esboçada pelo MPF, e já rejeitada pelo STF quando da ADPF, afirmando que: "o atentado [...] descrito fazia parte de uma série de outros quarenta atentados a bomba semelhantes ocorridos no período de um ano e meio, direcionados à população civil, com o objetivo de retardar a reabertura política que naquele momento já se desenhava" (JUSTIÇA FEDERAL DO RIO DE JANEIRO, 2014). Uma vez fincada a primeira premissa, afirmou que a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade seria um princípio geral de Direito Internacional aceito pelos Estados, e devidamente incorporado aos costumes internacionais. Em síntese, a decisão que recebeu a denúncia enquadrou os fatos ocorridos em 1981 como crimes contra a humanidade, tendo em vista que as condutas perpetradas fariam parte, em tese, de um ataque sistemático de agentes do Estado brasileiro contra a população civil. E concluiu, por fim, que os fatos narrados, enquanto crimes contra a humanidade, seriam imprescritíveis.

No caso em foco, a 1ª Turma Especializada do TRF/2ª Região, no dia 02/07/2014, decidindo a respeito do Habeas Corpus nº 2014.02.01.0056847, impetrado em favor de alguns dos militares denunciados, determinou o trancamento da ação penal referente ao Riocentro. Quando do julgamento do Habeas, as duas questões centrais acima foram debatidas pelos integrantes da 1ª Turma Especializada.

O desembargador federal Ivan Athié, relator, consignou que a decisão de recebimento da denúncia não poderia ter se baseado em normas de Direito Internacional a fim de sustentar a existência de crimes contra a humanidade e, por conseguinte, a imprescritibilidade dos fatos praticados.

O desembargador federal Abel Gomes, divergindo do relator, manifestou-se pela impossibilidade de se aplicar, ao episódio em tela, a Lei de Anistia, tendo em vista que a Lei nº 6.683/79 faz expressa referência ao período compreendido entre 02/09/1961 e 15/08/1979, sendo que o Caso Riocentro, como sabido, data de 30/04/1981. Em seguida, passou a focar a questão inerente à existência de prescrição. Para tanto, analisou a possibilidade de se valer de princípios gerais de Direito Internacional e/ou de costumes jurídicos da mesma seara em sede de norma penal incriminadora. Nesse aspecto, registrou o magistrado não ser possível "lançar mão com tanta facilidade de costumes e princípios" (TRF/2ª REGIÃO, 2014). Ato contínuo, discordou da natureza de crimes contra a humanidade atribuída pelo MPF aos delitos em tese cometidos no Caso Riocentro, afirmando que "a narrativa dos fatos e os elementos que os revestem [...] afastam o delineamento necessário que transforma tais fatos em crimes contra a humanidade" (TRF/2ª REGIÃO, 2014). Concluindo sobre a definição de crime contra a humanidade, pontuou que o fato em questão não pode ser incluído na definição de crimes contra a humanidade, "porque não faziam parte de uma ação dos agentes legitimamente operando em nome de uma política de Estado do momento" (TRF/2ª REGIÃO, 2014). Prosseguindo, o desembargador federal Abel Gomes anotou que os fatos narrados pelo MPF denotam a existência de uma organização criminosa, recordando-se, então, do disposto no art. 5º, XLIV, da CF, segundo o qual, "constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático". No entanto, conforme destacou, o referido dispositivo constitucional passou a viger a partir de 05/10/1988, sendo que os fatos em tela são de 30/04/1981. Logo, a regra do art. 5º, XLIV, da CF, dotada de maior severidade, não poderia retroagir por força do art. 5º, XL, da mesma Lei Maior. Assim, entendeu que todos os delitos imputados pelo MPF foram afetados pela prescrição.

Por sua vez, o desembargador federal Paulo Espirito Santo, divergindo dos votos proferidos pelo relator e pelo desembargador federal Abel Gomes, votou, em síntese, no sentido de afastar a incidência da anistia e da prescrição ao Caso Riocentro.

Como resultado do julgamento, a 1ª Turma Especializada do TRF/2ª Região, por maioria, concedeu a ordem, reconhecendo a inexistência de crime contra a humanidade e a incidência da prescrição da pretensão punitiva.

3.2. Da Síntese do Caso Rubens Paiva

Da mesma forma, cabe mencionar o processo nº 0104222-36.2014.4.02.0000, que tramitava na 4ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro, deflagrado a partir de denúncia oferecida pelo MPF em desfavor de militares pela prática, em tese, das condutas tipificadas no art. 121, § 2º, I, III e IV, art. 211, art. 288, parágrafo único, e art. 347, parágrafo único, c/c art. 29, caput, do CP. Em resumo, assevera o parquet que, entre os dias 21 e 22/01/1971, nas dependências do Destacamento de Operações de Informações do I Exército, no Rio de Janeiro, alguns dos denunciados, em concurso com militares já falecidos e com agentes não identificados, teriam cometido o homicídio de Rubens Beyrodt Paiva. A peça ministerial narra que as condutas imputadas teriam sido cometidas no contexto de um ataque sistemático e generalizado à população civil. Por fim, afirma que os acusados, ao menos entre 1970 e 1974, teriam se associado, de forma estável e permanente, em quadrilha armada, com a finalidade de praticar crimes de lesa-humanidade, tipificados, na ótica do parquet, como sequestro, homicídio e ocultação de cadáver, segundo previsões contidas no Direito brasileiro.

O magistrado federal da 4ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro, a partir de decisão datada de 26/05/2014:

a) Firmou a competência da Justiça Federal para o caso, nos termos do art. 109. da CF.

b) Entendeu que a Lei nº 6.683/79, a EC nº 26/85 e o art. 8º do ADCT não ensejaram a extinção da punibilidade dos fatos narrados na denúncia.

c) Afirmou que a Lei nº 6.683/79 não versa sobre condutas previstas no Código Penal, sendo que o motivo político que a norteou refere-se apenas aos denominados Atos Institucionais e Complementares.

d) Pontuou que o instituto da anistia, enquanto causa de extinção da punibilidade, deve ser interpretado restritivamente.

e) Registrou que os fatos imputados na denúncia, uma vez que foram cometidos como forma de perseguição política, configuram crimes contra a humanidade, sendo, portanto, imprescritíveis.

f) Acrescentou que o Brasil, através do Decreto nº 10.719, de 1914, ratificou a Convenção Concernente às Leis e Usos da Guerra Terrestre, de 1907, através da qual o país reconheceu o caráter normativo dos princípios preconizados pelos usos estabelecidos entre as nações civilizadas, pelas leis da humanidade e pelas exigências da consciência pública.

g) Ressaltou que, embora o Brasil não tenha ratificado a Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade, de 1968, incide, na hipótese, o costume internacional, o que afasta a anistia.

h) Recordou que o art. 38, nº 1, do Estatuto da Corte Internacional de Justiça expressamente contempla o costume internacional como fonte do Direito Internacional.

i) Assentou que a ONU, através da Resolução nº 95, de 1946, acolheu os princípios de Direito Internacional reconhecidos pelo Estatuto do Tribunal Militar de Nuremberg, o qual havia procedido à definição de crimes contra a humanidade, bem como reconhecido a sua imprescritibilidade.

j) Mencionou que a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade foi expressamente tratada na Resolução nº 3.074, de 1973, da ONU.

l) Aduziu que o Decreto nº 98.386/89, promulgou a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura. Com base na dita Convenção, o magistrado consignou que a impossibilidade de haver anistia em relação à tortura deveria ser estendida ao homicídio qualificado pelo emprego da tortura (art. 121, § 2º, III, 5ª figura, do CP).

Ainda em relação ao Caso Rubens Paiva, em 10/09/2014, em sede de Habeas Corpus impetrado pelos réus junto ao TRF/2ª Região, a 2ª Turma Especializada, por unanimidade, denegou a ordem, nos termos do voto do relator, desembargador federal Messod Azulay.

Contra a referida decisão do juízo da 4ª Vara Federal Criminal valeram-se os réus da denominada Reclamação Constitucional (nº 18.686/RJ), com pedido de liminar, sustentando que as imputações referem-se a delitos abrangidos pela Lei de Anistia, cuja constitucionalidade foi devidamente assentada pelo STF, razão pela qual o prosseguimento da ação penal configuraria evidente desrespeito à autoridade da Suprema Corte. A partir de liminar deferida no bojo da Reclamação, o ministro Teori Zavascki, relator, determinou a suspensão da ação penal movida contra os militares acusados de envolvimento no desaparecimento e na morte de Rubens Paiva, tendo anotado que a decisão de recebimento da denúncia afigura-se absolutamente incompatível com aquela proferida na ADPF nº 153. Registrou, também, que a decisão tomada na ADPF ostenta eficácia erga omnes, bem como efeito vinculante para todas as instâncias do Poder Judiciário, viabilizando, por conseguinte, o aviamento da Reclamação.

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Sobre o autor
Reis Friede

Desembargador Federal, Presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (biênio 2019/21), Mestre e Doutor em Direito e Professor Adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Graduação em Engenharia pela Universidade Santa Úrsula (1991), graduação em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1985), graduação em Administração - Faculdades Integradas Cândido Mendes - Ipanema (1991), graduação em Direito pela Faculdade de Direito Cândido Mendes - Ipanema (1982), graduação em Arquitetura pela Universidade Santa Úrsula (1982), mestrado em Direito Político pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1988), mestrado em Direito pela Universidade Gama Filho (1989) e doutorado em Direito Político pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1991). Atualmente é professor permanente do Programa de Mestrado em Desenvolvimento Local - MDL do Centro Universitário Augusto Motta - UNISUAM, professor conferencista da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, professor emérito da Escola de Comando e Estado Maior do Exército. Diretor do Centro Cultural da Justiça Federal (CCJF). Desembargador Federal do Tribunal Regional Federal da 2ª Região -, atuando principalmente nos seguintes temas: estado, soberania, defesa, CT&I, processo e meio ambiente.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FRIEDE, Reis. A dimensão jurídica da Lei de Anistia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7565, 18 mar. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/79513. Acesso em: 19 abr. 2024.

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