Capa da publicação Audiências de tráfico de drogas: quando todas as testemunhas são policiais da ocorrência
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A minha primeira experiência como advogada de defesa em um processo de tráfico ilícito de drogas.

06/11/2017 às 14:00
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"Chegou o dia da audiência [...] as testemunhas de toda a persecução penal eram policiais militares envolvidos na ocorrência. Era um processo totalmente fragilizado [...] A narrativa dos fatos é sempre a mesma..."

A minha primeira experiência como advogada de defesa em um processo de tráfico ilícito de drogas: a dificuldade da defesa em uma persecução penal baseada em apenas depoimentos de agentes de segurança envolvidos na ocorrência.

Eu me chamo Bruna B. Barbieri, fui aprovada no Exame de Ordem ainda no ano de 2013, mas estou advogada desde agosto de 2016 e, desde então, exerço a profissão de advogada criminalista. Quero compartilhar a vivência experimentada pela primeira vez em um processo-crime. Prometo que tentarei ser breve.

Primeiramente, preciso deixar registrada a dificuldade que é exercer a advocacia criminal nos dias atuais, sobretudo, por ser mulher. Mas, por que escolhi “defender bandido”? Além da afinidade vivenciada durante toda a graduação com as disciplinas de penal e de processo penal, busco defender DIREITOS, e nada mais. Não se trata de defender o crime e o criminoso, mas, sim, o direito a um julgamento justo e dentro da lei, com o objetivo de fortalecer o Estado Democrático de Direito e a Justiça.

Enfim, não é sobre isso que vim escrever. Estou aqui para relatar a minha primeira experiência como advogada de defesa em um processo de tráfico ilícito de drogas e a dificuldade que encontrei de promover a defesa de um dos meus clientes.

Era setembro de 2016. Um amigo próximo me indicou a um pretenso cliente que se encontrava preso por tráfico de drogas no Centro de Detenção Provisória. Pensei: E agora? Como devo proceder? O primeiro cliente já era um suposto traficante de drogas. Meu Deus, confesso que vi um mundo a minha frente e eu perdida. Parece que tudo que aprendi durante a faculdade e a pós-graduação se perdeu na minha cabeça. É uma responsabilidade enorme em suas mãos e qualquer deslize colocaria em cheque a liberdade de um indivíduo, mas eu aceitei e fui atender o preso, afinal, eu estudei para isso.

Aceitado o desafio, fui ao Centro de Detenção Provisória, totalmente perdida sobre como proceder para franquearem a minha entrada. E depois de permitida a entrada? Como eu deveria fazer? O que eu deveria falar? Como conversar?

Bom, chegando lá, os servidores me indagaram o que eu desejava, ao que prontamente eu disse: preciso falar com meu cliente (para preservar a identidade, chamarei de José) José, por favor. Tomaram as providências de praxe e permitiram que eu entrasse.

Dirigi-me à ala do meu cliente. Chegando lá, entrei em uma sala com um parlatório. Parecia como nos filmes e séries, eu nunca tinha presenciado um ambiente assim. Meio trêmula, peguei o interfone para me comunicar com meu cliente que se encontrava do outro lado do acrílico. Identifiquei-me e fui entrevistando-o. Parecia que eu ouvia a voz dos colegas mais experientes dizendo “não prometa liberdade, não prometa soltar”. E assim o fiz: demonstrei boa vontade de empreender todos os esforços necessários que estivessem ao meu alcance, mas que eu não tinha como prometer milagres.

Até que me saí bem. Não foi o bicho de sete cabeças. Mal sabia eu que o bicho de sete cabeças era o processo-crime que eu teria pela frente para analisar e conduzir da melhor forma possível.

Cheguei em casa e analisei a vida pregressa de José. Como se não bastasse meu primeiro processo ser de tráfico, ainda tenho um cliente com outras 3 passagens pela polícia por outros supostos atos relacionados ao tráfico de drogas. Caramba! Sabia que seria uma luta do início ao fim.

Não me amedrontei. Li diversos livros, diversos artigos, pesquisei bastante, inteirei-me bastante sobre como funciona um procedimento de tráfico de drogas. Feitas as pesquisas, redigi minha primeira petição como advogada requerendo a revogação da prisão preventiva de José, que, claro, foi indeferida por motivos genéricos e perigo abstrato do crime.

É sempre a mesma decisão: Fulano está preso dentro do prazo razoável – mesmo havendo jurisprudência no sentido de que a prisão deve perdurar de 90 a 120 dias – e é necessária a segregação cautelar para garantia da ordem pública.

Inconformada com o indeferimento do pedido, em dezembro de 2016, quando José contava com 5 meses preso provisoriamente (150 dias), fui ao Tribunal de Justiça do Espírito Santo e protocolei o pedido de Habeas Corpus requerendo a liberação de José pelo excesso de prazo. Mas era quase o início do recesso forense.

Recebi a intimação da audiência de instrução e julgamento e me senti novamente perdida. E agora? Aquelas audiências que eu assisti durante a graduação para horas complementares não valiam de nada, era eu quem iria ajudar a conduzir a audiência, eu estava patrocinando a defesa do meu cliente. E, de novo, pesquisei, pesquisei, busquei ajuda com advogados mais experientes, então me preparei e montei um roteiro.

Até que chegou o dia da audiência. A dificuldade encontrada esbarrava no fato de que as testemunhas de toda a persecução penal eram policiais militares envolvidos na ocorrência. Era um processo totalmente fragilizado e singelo.

Concluí que é latente a estigmatização imposta àqueles personagens bastante conhecidos nas audiências criminais de tráfico de drogas: réu negro, pobre, marginalizado, baixo nível de escolaridade e que não passa dos 25 anos de idade.

Os únicos elementos idôneos para corroborar eventual tráfico de drogas são as declarações dos policiais militares que participaram da ocorrência que deu origem à persecução penal. A narrativa dos fatos é sempre a mesma: “que integra a guarnição da Polícia Militar; que estava de patrulhamento com o colega de farda quando avistou o réu em atitude suspeita em um local conhecidamente como ponto de tráfico de drogas; que o réu franqueou a entrada na casa dele; que foram apreendidos drogas e dinheiro em espécie”. E, não; não houve atitude suspeita, não era lugar conhecido como ponto de tráfico de drogas, não houve permissão de entrada na casa.

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Não se pode perder de vista que, para o enquadramento por parte dos policiais militares em uma ocorrência de eventual tráfico de drogas, basta que seja adotado um critério meramente aritmético, como se o Direito fosse uma ciência exata e as pessoas fossem fantoches.

Não pensei que a prática fosse tão diferente da teoria. E que prática difícil e desvirtuada!

É cristalina e extremamente grave a discricionariedade conferida ao policial militar, o qual pode, a qualquer tempo, decidir se a pessoa abordada será usuária ou traficante. Veja que da sentença da rua poucos se livram e, uma vez sagrado o julgamento, o acusado segue tendo que provar sua inocência em um processo em que todas as testemunhas são agentes de segurança.

Saliente-se que nosso ordenamento jurídico possui inúmeras lacunas, que são preenchidas corriqueiramente pela lógica encarceradora e punitivista.

Evidentemente, quando um policial militar prende um indivíduo,  faz isso em nome da lei. A crítica recai, no entanto, quando agem no interesse de legitimar a profissão que ostentam e no afã de responder aos anseios da sociedade que clama por justiça e segurança.

É preciso cautela com a pseudo sensação de segurança pela qual toda a sociedade clama, a fim de evitar abusos e que um inocente responda por um crime que sequer cometeu.

É difícil lutar contra um sistema acusatório e punitivista. A defesa é parte frágil dessa relação Estado-Juiz x Acusação x Defesa. Vejo a defesa como aquele pobre e mal vestido que entra em uma loja com produtos relativamente caros e que é desdenhado.

Nesse ínterim, outros processos de tráfico de drogas foram surgindo, mas sempre com o mesmo desfecho; sempre com provas semelhantes, que “imputam” o narcotráfico àqueles marginalizados.

Encerro, aqui, com um pouco de impotência, como se eu fosse o pequeno “Davi” diante de um gigante “Golias”, mas com a esperança de que um dia essa realidade se transforme.

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Sobre o autor
Bruna Barbieri

Analista Jurídico do MPSP. Ex-advogada. Pós-graduada em Direito Processual pela Escola Superior do Ministério Público do Estado do Espírito Santo. Graduada em Direito. Trabalhou como servidora pública no Governo do Estado do Espírito Santo. Ex-estagiária da Delegacia de Polícia Judiciária. Ex-estagiária do Ministério Público do Estado do Espírito Santo. Ex-estagiária do Ministério Público Federal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARBIERI, Bruna. A minha primeira experiência como advogada de defesa em um processo de tráfico ilícito de drogas.: A dificuldade da defesa em uma persecução penal baseada em apenas depoimentos de agentes de segurança envolvidos na ocorrência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5241, 6 nov. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/61491. Acesso em: 18 mar. 2024.

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