Capa da publicação Medidas despenalizadoras: crítica à Lei Juizados Especiais Cíveis e Criminais (Lei 9.099/95)
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Medidas despenalizadoras

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Lamentavelmente, parece que a celeridade, a economia e a informalidade também foram norteadoras do comportamento do legislador na construção da Lei 9.099/95. O texto legal foi feito às pressas, caracterizando-se pela infinidade de lacunas e contradições.

É natural que no Direito, para cada vírgula acrescentada, ou apenas mudada de posição, venha uma avalanche de posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais, na proporção da complexidade do tema ou da falha na técnica legislativa. Essa dinâmica do mundo jurídico não é estranha às outras ciências, tampouco prejudicial à evolução dos institutos a elas intrínsecos. Entretanto, tem sido frequente a edição de normas que escapam a esse processo salutar e acabam clamando por socorro ao bom senso. É o caso, entre vários outros, da Lei 9.099/1995 (Juizados Especiais Cíveis e Criminais).

  A Constituição da República estabeleceu que as infrações de menor potencial ofensivo seriam da competência dos Juizados Especiais Criminais, deixando para o legislador ordinário a tarefa de elaborar uma lei específica que instituísse e organizasse esses órgãos jurisdicionais.

O novo diploma legal viraria ao avesso as antigas regras do Código de Processo Penal sob o pretexto de desafogar o Poder Judiciário de inúmeros processos voltados para apuração de infrações leves, ou seja, de baixa lesividade para as vítimas e de remota ameaça à liberdade dos infratores. Para isso a Lei dos Juizados Especiais precisava estar calcada em princípios que correspondessem ao grau de nocividade das infrações de sua competência, como celeridade, economia processual, oralidade, informalidade e simplicidade. O procedimento foi montado para tramitar o mais rápido possível, suprimindo os atos desnecessários e concentrando aqueles considerados imprescindíveis, sem rigor formal para sua consecução. A solução para as causas criminais dispensaria inquérito, prisão, fiança e, até mesmo, em alguns casos, o próprio processo criminal, cuja ausência revela-se como a meta idealizada pelo legislador nessa seara.

  Lamentavelmente, parece que a celeridade, a economia e a informalidade também foram norteadores do comportamento do legislador na construção da Lei 9.099/1995. O texto legal foi feito às pressas, caracterizando-se pela infinidade de lacunas e contradições, que abririam brechas para o que, seguramente, podemos chamar de caos jurídico. Diante disso, passamos a conviver com quatro tipos de juizados especiais criminais: o da lei, o da jurisprudência, o da doutrina e o da prática, sendo este último o mais vulnerável de todos. Ficou, então, para os profissionais do direito a dura tarefa de buscar na doutrina e jurisprudência, pelo menos, um mínimo de segurança jurídica.

   Em sede de juizado especial criminal o objetivo principal é o consenso, a fim de se restabelecer a ordem jurídica e a pacificação social, sem necessidade de instauração de processo, ou, quando inevitável, ao menos impedir a aplicação de pena mediante sentença condenatória.  Não haveria razão para o Estado adotar os mesmos métodos na apuração das infrações de menor potencial ofensivo que são seguidos nos crimes de alto grau de lesividade à sociedade. Neste sentido, foram criadas as chamadas medidas despenalizadoras, que, na realidade, representam variados tipos de acordo, para que, de uma forma menos onerosa para o Estado, bem como para as partes, se chegasse a uma solução civil e criminal para o fato. Tais institutos compreendem o que há de mais complexo e controvertido em matéria de Juizados Especiais Criminais, abrangendo a composição civil, a transação penal e a suspensão condicional do processo.

A composição civil consiste em um acordo de natureza civil (reparação de danos morais e materiais) entre a vítima e o suposto autor do fato. Quando homologada pelo juiz, atinge a pretensão punitiva estatal, desde que o crime seja de ação penal privada ou pública condicionada à representação. Nestes casos a composição civil implicará em renúncia ao direito de queixa ou de representação, respectivamente (art.74, parágrafo único, da Lei 9.099/1995).

Parte da doutrina diverge quanto à nomenclatura utilizada pelo legislador para se referir aos efeitos do referido acordo em crimes de ação penal pública condicionada. Sustenta que nesses casos, melhor seria usar o termo “retratação” da representação, pois se já estamos na fase da audiência preliminar, logo a representação em algum momento foi feita, ou em sede policial, ou diretamente ao Ministério Público. Sendo assim, não haveria como o ofendido renunciar a um direito já exercido. O que poderia ocorrer é a retratação da representação, na forma estabelecida no art. 25 do Código de Processo Penal.

 Por outro lado, se a composição civil for realizada em relação a uma infração em que a lei preveja ação penal pública incondicionada, estará solucionada apenas a questão civil, fazendo inclusive coisa julgada material, mas deixará pendente o conflito de natureza criminal. Isso porque, quando o autor do fato, mediante um acordo, pretender evitar que contra ele seja instaurado um processo, deverá fazê-lo com quem detiver poder decisório em relação à sua existência. Daí o porquê da previsão apenas para os crimes de ação penal privada e pública condicionada à representação. Nos crimes de ação penal pública incondicionada, a manifestação de vontade da vítima é irrelevante neste aspecto, não gerando qualquer efeito quanto ao exercício do direito de ação. Todavia, como acontece em cada detalhe da lei em comento, há quem conteste a análise apresentada, por entender que, em situações como esta, faltará justa causa para ação penal.

A transação penal é outra espécie de acordo previsto a ser aplicado aos crimes de menor potencial ofensivo. Pelo que dispõe a Lei 9.099/1995, a transação se concretiza  entre o suposto autor do fato e o Ministério Público, e, do mesmo modo que a composição civil, o momento de sua realização é sempre anterior ao processo, justamente para que não seja necessária a sua instauração. Uma vez homologada pelo juiz, também acarretará a extinção da punibilidade, desde que o beneficiado cumpra o que fora acordado, segundo a orientação da Suprema Corte.

 Por longos anos foi alvo de debate nos tribunais superiores a possibilidade do Ministério Público oferecer a denúncia, mesmo após a homologação dos termos da transação, em caso de descumprimento injustificado por parte do beneficiado. O Superior Tribunal de Justiça havia adotado o entendimento desfavorável à hipótese. Entretanto, a Suprema Corte, em sentido contrário, no final de 2014, acabou pacificando a matéria, editando a Súmula Vinculante n.º 35: “A homologação da transação penal prevista no artigo 76 da Lei 9.099/1995 não faz coisa julgada material e, descumpridas suas cláusulas, retoma-se a situação anterior, possibilitando-se ao Ministério Público a continuidade da persecução penal mediante oferecimento de denúncia ou requisição de inquérito policial.”.

A decisão do juiz que declarar extinta a punibilidade não terá o condão de gerar maus antecedentes, tampouco reincidência. A vida pregressa do autor somente poderia ser maculada na hipótese de condenação definitiva. Como a transação penal impede a instauração de processo, não há o que falar em sentença condenatória, muito menos em caráter definitivo.

Os termos da transação penal diferem da composição, pois implicará no imediato cumprimento de pena restritiva de direitos ou multa em troca da abstenção do Ministério Público quanto ao oferecimento da denúncia. Em outras palavras, a transação penal é um acordo em que o promotor de justiça, mesmo quando presentes as condições para o regular exercício do direito de ação, não oferecerá denúncia em face do autor do fato, desde que este também renuncie ao direito de se defender, aceitando, por conseguinte, o cumprimento de pena não privativa de liberdade. Tendo em vista sua natureza, a doutrina majoritária vem entendendo que o instituto da transação penal mitigou o princípio da obrigatoriedade, que, de acordo com as normas do Código de Processo Penal, tornaria impositivo o oferecimento da denúncia. Todavia, o que ainda gera muita controvérsia é o posicionamento de alguns autores no sentido de que o legislador teria, de forma contundente, violado os princípios da ampla defesa e do devido processo legal, ao permitir a aplicação de sanção penal sem o trânsito em julgado de uma sentença condenatória. No momento, o que se deve ter em mente é que a tese não foi acolhida pelos tribunais superiores.

Semelhante ao que ocorre no que diz respeito à fiança, o legislador não diz quando caberá transação, mas sim quando será vedada (art. 76, § 2º, da Lei 9.099/1995). Assim, se o autor do fato não se enquadrar em nenhuma das hipóteses previstas no dispositivo supracitado, poderá ser beneficiado pelo instituto da transação penal, pois aquilo que a lei não proíbe, permite (discricionariedade regrada). Nesse sentido, em que pese entendimento oposto, é direito do autor do fato fazer a transação penal para não se ver processado. Se porventura o Ministério Público negar a proposta sem respaldo legal, ou simplesmente se omitir face a ela, deve-se, por analogia, aplicar o art. 28 do Código de Processo Penal, que trata da hipótese de divergência quanto às razões de arquivamento do inquérito policial. E se esse é o caminho adotado quando há controvérsia entre o Ministério Público e o juiz em relação à proposta de suspensão condicional do processo, o mesmo se dará quando envolver transação penal (Súmula 696 do STF).

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A remessa ao Procurador Geral de Justiça é, sem sombra de dúvida, o caminho mais acertado, por estar em consonância com o art. 3º do Código de Processo Penal. O que jamais poderá ocorrer é a hipótese do juiz, nas situações em que a proposta não for apresentada pelo Ministério Público, se colocar a frente no embate, como se parte fosse, apresentando a proposta da transação penal. Se assim pudesse agir, estaríamos diante de flagrante violação ao sistema acusatório consagrado pela atual Constituição da República. Neste sentido vêm sendo proferidas as decisões dos tribunais superiores, apesar da resistência de um grupamento minoritário na doutrina.

O mais sério de todos os conflitos gerados pelas inúmeras falhas e omissões do legislador em relação à lei em tela, está na admissibilidade de transação penal nas ações que somente se procedem mediante queixa. É sabido que a lei não faz menção a essa espécie de ação nos dispositivos relacionados à transação penal, induzindo a concluir que esta seria um instituto de aplicação exclusiva aos crimes de ação penal pública. Sendo assim, qual seria o embasamento jurídico daqueles que defendem a proposta de transação para os crimes de ação penal privada? E aceitando a ideia de seu cabimento para crimes cuja ação seja dessa natureza, a quem caberia a apresentação da proposta, e em que termos seria feita? De acordo com o STJ, é cabível a transação penal para os crimes de ação penal privada por força do art. 3.º do Código de Processo Penal, que permite o uso da analogia nos casos de omissão legislativa. Além do mais, nenhuma razão haveria para que fosse vedada a benesse somente em razão da espécie de ação, pouco importando o seu enquadramento no conceito de menor potencial ofensivo. A legitimidade para a propositura do acordo pertence ao querelante, porque se este pode abdicar da persecução penal (renúncia e decadência), ou até mesmo desistir do processo (perdão e perempção), extinguindo a punibilidade, com muito mais razão pode transacionar.

Finalmente, dentre as medidas despenalizadoras existentes, a suspensão condicional do processo, ou sursis processual, é a única que se dá quando já iniciada a demanda. O Ministério Público, ao oferecer sua peça vestibular apresenta uma proposta de acordo para ser apresentada ao réu após o seu recebimento. Para aqueles que interpretam o art. 399 do CPP como norma que autoriza o contraditório antes mesmo da instauração do processo, a aceitação da proposta poderia anteceder o referido ato.

Os pressupostos que autorizam a suspensão condicional do processo encontram-se expostos no art. 89, da Lei 9.099/1995, ou seja, aplicável aos crimes cuja pena mínima cominada for igual ou inferior a 1 (um) ano, abrangidas ou não por esta lei, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena (art. 77 do CP). Isso significa que mesmo para aqueles processos que não estejam tramitando em sede de Juizado Especial Criminal será possível a aplicação desse instituto.

Se o réu aceitar os termos da proposta apresentada pelo Ministério Público, o processo ficará suspenso por um período de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, chamado de período de prova, durante o qual se comprometerá a cumprir as condições elencadas nos parágrafos 1º e 2º, do artigo acima mencionado. Assim, pode-se dizer que o princípio da indisponibilidade, característica própria da ação penal pública, também foi mitigado pela Lei 9.099/1995.

De todas as obrigações que recaem sobre o réu durante o período de prova, a que tem maior relevância é a de reparar os eventuais danos causados à vítima. Se não for cumprida sem motivo justo, deverá o juiz revogar o período de prova (art. 89, 3º, da Lei 9.099/95), dando prosseguimento ao feito. Se descumprida qualquer outra obrigação, poderá o juiz revogar o período de prova ou recrudescer na sua forma de cumprimento. A revogação obrigatória do período de prova também ocorrerá nos casos em que o réu vier a ser, durante esse período, processado por outro crime. Na hipótese de o réu ser processado por contravenção, a revogação será facultativa. Mas, se houver cumprimento de todas as condições durante o período de prova sem revogação, estará configurada, assim como na composição civil e na transação penal, a extinção da punibilidade. 

A decisão do juiz que declarar extinta a punibilidade não gerará maus antecedentes, muito menos reincidência, eis que estes efeitos são decorrentes de sentença condenatória irrecorrível. Embora tenha havido processo, não tramitou até o seu final em virtude do sursis.

Os conflitos que dizem respeito à suspensão condicional do processo, e que foram gerar vasta jurisprudência, em muito se assemelham aos pontos abordados quanto à transação penal. Para o STJ e STF, nas hipóteses de recusa ou omissão do Ministério Público, no tocante ao oferecimento de proposta de suspensão condicional do processo, caberá, por analogia, a solução prevista no art. 28 do Código de Processo Penal, sendo vedado ao juiz fazê-la (vide Súmula 696 do STF). E sobre a possibilidade de sua incidência nos processos que apuram crimes de ação penal privada, utilizam-se dos mesmos fundamentos apresentados para se conceber a transação penal.

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Sobre o autor
Sergio Ricardo do Amaral Gurgel

SERGIO RICARDO DO AMARAL GURGEL é sócio em COSTA, MELO, GURGEL Advogados; autor da editora Impetus; professor de Direito Penal e Direito Processual Penal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GURGEL, Sergio Ricardo Amaral. Medidas despenalizadoras. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5957, 23 out. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/65306. Acesso em: 29 mar. 2024.

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