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Direito do consumidor frente à impossibilidade de devolução de medicamentos sujeitos a controle especial: afronta à Lei n. 8.078/1990?

02/08/2019 às 15:45
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Ao tentar devolver medicamentos sujeitos a controle especial, o consumidor depara-se com a impossibilidade de fazê-lo junto a uma farmácia. Como compatibilizar essa situação com a Lei 8.070/1990?

O Brasil vem se consolidando entre os maiores mercados consumidores de medicamentos do mundo: o envelhecimento populacional e o crescimento do varejo farmacêutico são importantes fatores para explicar essa ascensão. Com ela, aumentaram também a preocupação com o uso racional, o combate ao uso indiscriminado e o esforço em encarar a farmácia comercial pela faceta de prestadora de serviços de saúde.

As leis n° 8080/1990 e n° 8142/1990 (ambas lançaram as bases para a implementação do SUS), juntamente às disposições constitucionais, conduziram à promulgação de várias espécies normativas ao longo dos anos, sendo dignas de destaque a Portaria GM n° 3916/1998 (Política Nacional de Medicamentos), a Portaria 344/1998, a RDC 44/2009 (Boas Práticas em Farmácias) e a Lei n° 13021/2014 (Regulação das Atividades Farmacêuticas). Normas sanitárias, portanto, que buscam resguardar, de modo geral, a saúde da população.

Em meio às preocupações e regulamentações, medicamentos de certas classes foram sofrendo maior restrição de compra de acordo com o seu potencial de dano à coletividade. Foi o caso dos chamados medicamentos sujeitos a controle especial, popularmente chamados de “medicamentos controlados”, que são produtos farmacêuticos cujo risco associado só pode ser assumido se justificado pelos potenciais benefícios.

Assim, em momentos distintos, surgiram a Portaria 344/98 e a RDC 20/2011, que são os instrumentos normativos que disciplinam aspectos atinentes à prescrição e à comercialização desses tipos de medicamentos: o efeito mais visível é a sua aquisição exclusivamente mediante prescrições específicas – uma tentativa de barrar o uso inadvertido, haja visto que já foi relativamente comum a aquisição desses medicamentos sem prescrição, fato agravado pelo interesse na venda desses produtos por parte do varejo farmacêutico.

A Portaria traz uma série de fármacos controlados (classificadas em listas alfanuméricas) de várias naturezas: entorpecentes, psicotrópicos, anorexígenos, retinoicos, antirretrovirais, anabolizantes e precursores dessas substâncias. Já a RDC cuida dos antimicrobianos em geral, sob várias formas farmacêuticas, contidos em uma lista própria.

O controle desses medicamentos, assim como as ações sanitárias (no que tange à fiscalização e normatização de produtos e serviços de saúde), ficam a cargo do Poder Público e são exercidas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), autarquia sob regime especial vinculada ao Ministério da Saúde e criada pela Lei 9782/1999. A ANVISA tem como objetivo fundamental promover a proteção da saúde da população dispondo, para tal, de autorização para elaborar e implementar atos específicos e inerentes à sua área de atuação.

Prezando também, entre outros aspectos, pelo direito e proteção à saúde nas relações consumeristas entre fornecedores e consumidores, foi criado o Código de Defesa do Consumidor (Lei n° 8078/1990): é o instrumento, oriundo do Estado, para a defesa do consumidor, conforme preconizado no artigo 5°, XXXII da Constituição Federal. Um marco na garantia de diversos direitos à parte dita hipossuficiente nas relações de consumo, o CDC (como também é conhecida a Lei 8078/1990) é ferramenta fundamental no combate a práticas e preços abusivos, no resguardo do consumidor ante o poderio econômico e no alcance de condições para obtenção de justiça.

Mediante algumas condições, produtos adquiridos podem ser devolvidos. Em uma farmácia, o raciocínio acima é perfeitamente possível de ser aplicado quando o produto em questão é um medicamento.  Porém, quando esse medicamento é sujeito a controle especial, modifica-se o cenário. Mudança de terapia ou a morte do usuário são razões recorrentes para o consumidor solicitar a troca; porém, de maneira fundamentada, a farmácia nega-se a efetuá-la, contrariando o CDC e baseando-se nas mencionadas Portaria e RDC, normas sanitárias específicas que a proíbem a troca.

Nesse ponto de encontro dessas espécies normativas, o cliente não recebe outro produto nem é restituído monetariamente, formando-se, para ele, situação claramente incômoda que o faz questionar: “e o Código de Defesa do Consumidor, para que serve neste caso?”.  Como compatibilizar normas que prezam pelo bem-estar, mas que divergem em pontos específicos?

O que soa como direito óbvio do consumidor (a devolução), no caso do medicamento sujeito a controle especial, deve ser compatibilizado com outros direitos preexistentes como o direito à vida, à segurança, à saúde etc. Princípios esses registrados no próprio CDC, na CF e na legislação sanitária específica.

A troca de medicamentos “controlados”, por seu turno, só é possível quando estes apresentarem desvio de qualidade advindos do processo de fabricação (alterações organolépticas, quantidade inferior à descrita na embalagem, avarias, entre outros), como descrito nos artigos 20 da RDC n° 20/2011 e 44 da Portaria n° 344/1998.

A bula dos medicamentos tem de trazer todas as reações adversas detectadas nos testes pré-comercialização com humanos, mas reações relativas à substância principal do produto (princípio ativo).  Porém, exposto a fatores como luz excessiva, calor e umidade, o princípio ativo pode gerar outras substâncias indesejadas, menos eficazes ou mesmo tóxicas - cujos efeitos nocivos podem não ser previstos.

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A questão central é a conservação do medicamento “controlado”: as farmácias devem garantir as condições ideais para tal, conforme exigido pela RDC n° 44/2009 da ANVISA, garantia esta que se exaure quando o medicamento sai desses estabelecimentos. O risco em aceitar o medicamento devolvido, portanto, está na possibilidade de ele ser colocado novamente à venda: não se sabe a quais intempéries o medicamento possa ter sido exposto antes da devolução, o que pode acarretar reações adversas relativamente perigosas para quaisquer pessoas que venham a adquirir o medicamento devolvido.

Percebe-se, portanto, a geração um risco em potencial para toda uma coletividade por conta do atendimento do interesse individual. O próprio CDC afirma, no artigo 6°, inciso I, que “a proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos” é um dos direitos básicos do consumidor, o que reforça ainda mais o impedimento ao ato de a farmácia aceitar a devolução e reintegrar o medicamento “controlado” ao estoque.

Desta forma, será possível privilegiar uma Portaria e uma RDC frente à Lei 8078/1990, contrariando os termos de força normativa, em nome de questões de saúde pública e da proteção da coletividade. O confronto do direito de troca conferido ao consumidor e do princípio da supremacia do interesse público sobre o particular tornará perceptível que o direito de um indivíduo pode ser relativizado para que não ponha em risco a integridade física de uma população.

Dito isto, qual o destino do medicamento que não pôde ser devolvido? Segundo o artigo 90 da Portaria 344/98, deverá ser direcionado à Vigilância Sanitária local pelo consumidor. Porém, quais as garantias que esse medicamento não será indevidamente descartado, doado ou comercializado ilegalmente? Assim, quem garante que a recusa na devolução (fundamentada legalmente) não gerará justamente o efeito não-desejado, dando continuidade ao risco sanitário ou potencializando-o?

Tendo em vista esse problema adicional, seria interessante pensar em outras formas de lidar com esses medicamentos que não podem ser devolvidos à farmácia? Por exemplo, a instituição de algum tipo de compensação ao consumidor para que ele entregue o medicamento sujeito a controle especial numa unidade da Vigilância Sanitária, atendendo a requisitos como presença da nota fiscal e da via da receita médica. Assim, o Estado, que é o maior interessado em proteger a coletividade, exerceria essa proteção em todas as etapas do processo, sem deixar esta última etapa desguarnecida.


REFERÊNCIAS

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BRASIL. Lei n° 8078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078.htm. Acesso em 02 abr 2018.

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BRASIL. RDC n° 44, de 17 de agosto de 2009. Dispõe sobre Boas Práticas Farmacêuticas para o controle sanitário de funcionamento, da dispensação e da comercialização de produtos e da prestação de serviços farmacêuticos em farmácias e drogarias e dá outras providências. Disponível em https://www20.anvisa.gov.br/segurancadopaciente/index.php/legislacao/item/rdc-44-2009.  Acesso em 02 abr 2018.

BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE. Manual de Direito Sanitário com enfoque na vigilância da saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2006.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 30 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017.

MOREIRA, Thereza M. M. et. al. Manual de Saúde Pública. 1. ed. Salvador: Sanar, 2016.

SANTOS, Lenir et. al. Direito da Saúde no Brasil. 1. ed. Campinas: Saberes, 2010.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAIA, Adriano José Almeida. Direito do consumidor frente à impossibilidade de devolução de medicamentos sujeitos a controle especial: afronta à Lei n. 8.078/1990?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5875, 2 ago. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/66887. Acesso em: 29 mar. 2024.

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