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Dos sistemas processuais penais.

Tipos ou formas de processos penais

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8. RESQUÍCIOS INQUISITIVOS NO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL

De acordo com Vanessa Curti PerenhaGuasques:

"O Código de Processo Penal deve ser interpretado à luz da Constituição, pois esta prevê todo um sistema de garantia individual que permite concluir pela adoção do modelo acusatório de processo. Já o Código de 1941, inspirado na legislação processual penal italiana produzida na década de 30, do século passado, de cunho político-ideológico fascista, propunha medidas em que se visualizava o tratamento de presunção de culpa do investigado/acusado e, na ponderação entre a tutela da segurança jurídica e a tutela da liberdade individual, prevalece a preocupação quase sempre da primeira, sempre legitimada pela "busca da verdade real". [31]

8.1 DO INQUÉRITO POLICIAL (ARTS. 4° a 23)

O inquérito policial é um procedimento administrativo que antecede o processo penal e tem por objetivo a coleta de provas para subsidiar a acusação. Tem características do sistema inquisitivo: é sigiloso e sem contraditório. O juiz deve se abster de participar dessa fase sob pena de estar psicologicamente vinculado aos argumentos que servirão de base para a acusação.

Porém, o CPP, já em seu art. 5° enuncia que "nos crimes de ação penal pública o inquérito policial será iniciado: II – mediante requisição da autoridade judiciária..." Mesmo antes do processo, o magistrado já se arvora em acusador e, vendo a possibilidade de cometimento de crime, requer (ou seja, exige) a instauração de inquérito policial. É improvável que o juiz rejeite a denúncia por falta de justa causa ou mesmo que absolva o réu quando ele mesmo dá início à persecução penal. Obviamente, desaparece sua imparcialidade e retorna-se, mutatis mutandis, ao sistema inquisitivo, em que o juiz age ex officio, independente de demanda da acusação [32].

Além disso, o art. 10, § 1° do CPP determina que, ao final do inquérito, a autoridade policial realize "minucioso relatório do que tiver sido apurado e enviará os autos ao juiz competente". Ora, se o inquérito policial tem por objetivo subsidiar a denúncia ou a queixa, não é o juiz que deve recebê-lo, mas o promotor ou o querelante. Além disso,

"O contato do julgador com a atividade persecutória torna promíscua sua relação com os fatos. Compromete a neutralidade do juiz. E, sem um juiz neutro, toda a atividade jurisdicional resta comprometida... Assim, qualquer contato prévio do juiz com as diligências tomadas no inquérito policial, por comprometer seu envolvimento psicológico com os fatos, além de eticamente reprovável, é inconstitucional". [33]

O juiz não só recebe o inquérito, como também autoriza diligências posteriores a cargo da autoridade policial (art. 10, § 3°). Novamente ressaltamos o óbvio: sendo o inquérito peça necessária para acusação, é o órgão ministerial que deve saber se serão necessárias novas diligências. Novamente, se tem o juiz agindo como acusador! Além de atentatórias ao sistema acusatório as disposições do art. 10 são, na maioria dos casos, de absoluta inocuidade, pois os juízes costumam simplesmente remeter os autos do inquérito ao Ministério Público [34].

De conseqüências mais funestas ainda é o art. 12 do CPP que determina a juntada do inquérito policial aos autos quando este servir de base à denúncia ou à queixa. A esse respeito tem-se

"A objeção de Ada Pellegrini Grinover, segundo a qual, na prática, constata-se uma influência decisiva dos elementos colhidos na primeira fase da persecução penal na forma do livre convencimento do juiz. Tais informações, que deveriam repercutir tão-somente ‘para efeito de provimentos cautelares constritivos ou quanto ao juízo de admissibilidade da acusação’, acabam influindo no ‘próprio juízo de mérito’" [35].

Sem dúvida, assiste razão à autora, pois, na praxe forense, os juízes (togados ou leigos) dão valor quase absoluto às provas coligidas no inquérito policial. Na imensa maioria das vezes, as provas coletadas nesse procedimento são meramente ratificadas durante o processo. Instala-se a confortável "ilusão" de que os policias, como agentes públicos, agem imparcialmente [36]. "Esquece-se" que o inquérito é um instrumento a serviço da acusação! Some-se a isso o fato de as provas serem colhidas sem o amparo do contraditório, e veremos que a isonomia é grandemente prejudicada. A solução preconizada pela doutrina mais moderna é simplesmente retirar o inquérito policial dos autos do processo, possibilitando que exerça sua verdadeira função: fornecer o "suporte probatório mínimo" (justa causa) para que a acusação possa promover a ação penal [37]. Apenas isso. Ressalte-se: o inquérito é o instrumento da acusação, devendo ser utilizado pelo juiz apenas excepcionalmente, como na decretação de prisão provisória [38].

Outro dispositivo de caráter inquisitivo é o art. 28 do código: de acordo com ele, o juiz exerce a função anômala de fiscal da obrigatoriedade da ação penal pública. Assim, o promotor requer ao magistrado o arquivamento do inquérito policial e, se este discordar, remeterá os autos ao Procurador-Geral, que decidirá, em caráter definitivo, sobre a pertinência do arquivamento. Mais uma vez, o juiz se substitui ao acusador ao considerar errôneo o arquivamento. Se o Procurador-Geral decidir por oferecer a denúncia, o juiz da causa já estará automaticamente vinculado à acusação, o que destrói a sua imparcialidade.

Apesar de diuturnamente usado na praxe forense, o uso literal do dispositivo é de nítida inconstitucionalidade. O professor Paulo Rangel [39] sugere uma interpretação conforme a Constituição: o magistrado poderia exercitar tal função anômala, mas o processo, caso o Procurador-Geral resolva denunciar, deveria ser remetido a outro juiz. Data venia, aquele que receber o processo já estará "contaminado" pela posição anterior, provinda do mesmo órgão. Além disso, tal solução pode ser, por vezes, irrealizável em pequenas localidades, pois cada comarca teria que contar ao menos com dois juízes criminais. A melhor solução, a nosso ver, é transferir a responsabilidade de decidir sobre o arquivamento para o órgão superior do MP, mantendo assim incólume o magistrado (vide a redação dada pelo projeto de lei 4.209/2001 ao art. 28 do CPP).

8.2 DA PROVA (ARTS. 155 a 250)

O CPP determina que o juiz tem ampla liberdade para requisitar a produção de provas (art. 156). Porém, o sistema acusatório requer que as funções de investigar e de julgar sejam dadas a personagens diferentes no processo, pois o magistrado, ao requerer a produção da prova perderá a indispensável imparcialidade. Nesse sentido é o magistério de Geraldo Prado:

"Desconfiado da culpa do acusado, investe o juiz na direção da introdução de meios de prova que sequer foram considerados pelo órgão de acusação, ao qual, nessas circunstâncias, acaba por substituir. Mais do que isso, aqui igualmente se verificará o mesmo tipo de comprometimento psicológico objeto das reservas quanto ao poder do próprio juiz iniciar o processo, na medida em que o juiz fundamentará, normalmente, nos elementos de prova que ele mesmo incorporou ao processo, por considerar importantes para o deslinde da questão. Isso acabará afastando o juiz de sua desejável posição de seguro distanciamento das partes e de seus interesses contrapostos, posição essa apta a permitir a melhor ponderação e conclusão" [40].

Há três questões a serem respondidas no tocante ao posicionamento acima exposto. Em primeiro lugar, argumenta-se que o objetivo do processo penal é obter a "verdade real", ou seja, desvendar os fatos tal qual eles aconteceram na realidade. Esse objetivo é absolutamente inalcançável, pois o processo penal volta-se para o passado e o tempo é, por definição, irrepetível. A verdade alcançada no processo é sempre aproximativa (uma "verdade reconstruída"), nunca "absoluta", "substancial", "material" ou "real" [41]. Aliás, a "verdade real" é uma criação da Inquisição, na qual se consideravam os juízes como representantes de Deus e, portanto, infalíveis. Por isso mesmo, concordamos com Aury Lopes Jr. [42] no sentido de que é impossível se falar, hoje em dia, de verdade ou certeza em ciências humanas, mas apenas em probabilidades (grande plausibilidade de que os fatos tenham ocorrido conforme apurado no processo).

Para que o processo se aproxime cada vez mais dos fatos como eles aconteceram, deve-se preservar a figura do juiz, a fim de ele profira uma decisão verdadeiramente imparcial. Por outro lado, é indispensável que se estruture de modo eficiente: a) o órgão investigativo (a Polícia Civil), fortalecendo a polícia científica (criminalística) [43]; b) o órgão acusador (Ministério Público); c) e, principalmente, o órgão de defesa (Defensoria Pública), dando-lhe recursos materiais e humanos para cumprir a sua função [44].

A segunda questão diz respeito à possibilidade de o juiz ordenar a produção de provas que possam beneficiar a defesa. A resposta é positiva, pois o objetivo do processo é servir de instrumento para a aplicação do Direito Penal dando garantias ao acusado (instrumentalidade garantista) [45]. De acordo com os princípios da presunção de inocência e da ampla defesa, possibilita a intervenção moderada do juiz no processo "para, na implementação de poderes de assistência ao acusado, pesquisar de maneira supletiva provas da inocência, conforme a(s) tese(s) esposada(s) pela defesa" [46].

Por fim, deve-se lembrar que a segurança é direito fundamental (CF, art. 5°, caput) e condenar aqueles que são considerados criminosos tem por fim exatamente prover a segurança necessária à população, incitando a obediência às normas por meio da prevenção geral e especial. Assim, já que apenas o MP tem poderes investigatórios, o que se deve fazer quando este atua com desídia ou incúria, possibilitando a absolvição (no mais das vezes por falta de provas) de um réu que efetivamente tenha cometido o crime? Com relação ao réu, se não for interposto recurso pela acusação, nada mais poderá ser feito, pois não existe a revisão criminal ex officio e o cidadão não pode ficar a mercê da ineficiência estatal. Já em se tratando do órgão ministerial, é possível reclamação para a corregedoria do MP e, inclusive, para o recém-criado Conselho Nacional do Ministério Público (CF, art. 103-A, § 2°). O membro do parquet, acaso condenado, sofrerá as pertinentes sanções disciplinares, que vão desde a advertência até a demissão.

8.3 DO PROCESSO SUMÁRIO (arts. 531 a 540)

O arts. 26 e 531 do Código de Processo Penal permite que o processo sumário (das contravenções [47]) se inicie por portaria do juiz. Delegar o poder de iniciativa processual ao juiz faz com que ele se torne parcial, imiscuindo as funções de acusar e julgar. De acordo com a unanimidade da doutrina, tal preceito foi implicitamente revogado pelo art. 129, I da CF que dá competência exclusiva ao MP para promover a ação penal pública.

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Sobre o autor
Alexandre Magno Fernandes Moreira Aguiar

procurador do Banco Central do Brasil em Brasília (DF), especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Estácio de Sá, professor de Direito Penal e Processual Penal na Universidade Paulista (Unip) e nos cursos preparatórios Objetivo e Pró-Cursos

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AGUIAR, Alexandre Magno Fernandes Moreira. Dos sistemas processuais penais.: Tipos ou formas de processos penais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 727, 2 jul. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6948. Acesso em: 28 mar. 2024.

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