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Da validade da doação feita a netos

22/07/2005 às 00:00
Leia nesta página:

1 – INTRODUÇÃO – DO CONTRATO DE DOAÇÃO.

             Iniciando o estudo em tela, cabe a citação do artigo 538 do Código Civil brasileiro, que traz o conceito de doação:

            "Considera-se doação o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra".

            Esmiuçando o contrato de doação, temos os ensinamentos do professor Arnaldo Rizzardo [01] sobre o tema:

            "Cuida-se de um contrato a título gratuito por excelência. Constitui um dos modos de aquisição da propriedade. Classifica-se como contrato unilateral, posto criar obrigações para uma só das partes, que é o doador".

            Além da adequação aos conceitos legais, o contrato de doação deve revestir-se das formalidades essenciais à sua validade, notadamente:

            a) artigo 548 do Código Civil (reserva para subsistência) – o doador, apesar de dispor de seu patrimônio, deve conservar meios para a sua própria subsistência.

            b) artigo 549 do Código Civil (doação da parte disponível) – o doador, tendo herdeiros necessários, não pode dispor da parte que constitui a legítima, ou seja, não pode dispor de mais de 50% (cinqüenta por cento) de seu patrimônio.

            Maiores comentários acerca da vedação do artigo 549 serão tecidos ao longo do presente estudo.


2 – DO ADIANTAMENTO DA LEGÍTIMA NO TOCANTE À DOAÇÃO EFETIVADA POR ASCENDENTES A DESCENDENTES.

            Conforme os ditames do artigo 544 do Código Civil brasileiro, a doação feita por ascendentes a descendentes tem o efeito de adiantamento de herança.

            Citamos, pois, os ditames do artigo 544 do Código Civil:

            "Art. 544. A doação de ascendentes a descendentes, ou de um cônjuge a outro, importa adiantamento do que lhes cabe por herança".

            Elucidando o tema e seus procedimentos, temos os ensinamentos da professora Maria Helena Diniz [02]:

            "O pai poderá fazer doação a seus filhos, que importará em adiantamento de legítima, devendo ser por isso conferida no inventário do doador, por meio de colação".

            Nesses termos, o descendente que recebe bens de seu ascendente direto, a título gratuito, deverá colacioná-los no inventário do doador, para que tal patrimônio recebido seja descontado da parte cabível no monte hereditário.

            Ressalta-se, por oportuno, que a determinação legal para efeitos de adiantamento de herança limita-se à linha direta de descendência, sendo aplicada exclusivamente entre pais e filhos.

            Elucidando o tema, temos as palavras de Silvio de Salvo Venosa [03]:

            "Toda doação feita em vida pelo autor da herança a um de seus filhos presume-se como um adiantamento de herança. Nossa lei impõe aos descendentes sucessíveis o dever de colacionar. Estão livres dessa obrigação os demais herdeiros necessários, ao contrário de outras legislações. Os netos devem colacionar, quando representarem seus pais, na herança do avô, o mesmo que seus pais teriam de conferir. Contudo, não está o neto obrigado a colacionar o que recebeu de seu avô, sendo herdeiro seu pai, e não havendo representação".

            (grifo nosso)

            Na mesma esteira do professor acima, temos o entendimento do já citado mestre Arnaldo Rizzardo [04]:

            "Presume-se adiantamento de legítima a doação levada a efeito de pai a filho".

            Assim sendo, a doação efetivada por avós a netos não importa efetivamente em adiantamento de herança.

            A hipótese de adiantamento só ocorre nos casos em que a doação é celebrada em favor de algum dos filhos do doador, em detrimento dos demais, oportunidade em que o patrimônio objeto da doação é descontado do quinhão hereditário devido ao donatário (colação).

            Maiores informações sobre o procedimento de colação serão repassadas no decorrer do presente estudo.


3 – DA DESNECESSIDADE DE CIÊNCIA DOS HERDEIROS NÃO BENEFICIADOS NO TOCANTE À DOAÇÃO EFETIVADA.

            Diferentemente do que ocorre em outros institutos jurídicos, a validade do contrato de doação entre ascendentes e descendentes (pais/filhos - avós/netos) não depende da anuência dos herdeiros não beneficiados pela transferência de propriedade.

            Tal necessidade de anuência ocorre apenas nos contratos de compra e venda e troca, conforme ditames dos artigos 496 e 533 do Código Civil brasileiro.

            "Art. 496. É anulável a venda de ascendente a descendente, salvo se os outros descendentes e o cônjuge do alienante expressamente houverem consentido".

            "Art. 533. Aplicam-se à troca as disposições referentes à compra e venda, com as seguintes modificações:

            ...

            II – é anulável a troca de valores desiguais entre ascendentes e descendentes, sem o consentimento dos outros descendentes e do cônjuge do alienante".

            Esmiuçando o tema, temos os ensinamentos do professor Arnaldo Rizzardo [05]:

            "Na compra e venda e na permuta, é indispensável o consentimento dos herdeiros não contemplados. Tratando-se de doação, tal acordo é desnecessário".

            No mesmo sentido do professor, temos o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça:

            Processo

            RESP 17555 / MG ; RECURSO ESPECIAL 1992/0001709-6

            Relator(a)

            Ministro DIAS TRINDADE (1031)

            Órgão Julgador

            T3 - TERCEIRA TURMA

            Data do Julgamento

            09/03/1992

            Data da Publicação/Fonte

            DJ 06.04.1992 p. 4495
LEXSTJ vol. 35 p. 224
RJTAMG vol. 46 p. 451

            Ementa

            CIVIL PROCESSUAL CIVIL. DOAÇÃO DE ASCENDENTE A DESCENDENTE. ANUENCIA DOS DEMAIS DESCENDENTES.

            NÃO EXIGE A LEI, NA DOAÇÃO DE ASCENDENTE A DESCENDENTE, A ANUENCIA DOS DEMAIS DESCENDENTES.

            Verifica-se, portanto, que a validade da doação efetivada entre ascendentes e descendentes não depende da anuência dos demais herdeiros, sendo tal ciência expressa elemento essencial apenas nos contratos de compra e venda e troca.


4 – DA DOAÇÃO INOFICIOSA E SUA INAPLICABILIDADE NO PRESENTE ESTUDO:

            Além das peculiaridades do contrato de doação anteriormente elencadas, trazemos à baila as disposições legais, doutrinárias e jurisprudenciais acerca da doação inoficiosa.

            Tal assunto foi ligeiramente tratado no item 1, "b", do presente estudo, quando da citação do artigo 549 do Código Civil brasileiro.

            Para início da explanação, renova-se a importância da leitura do artigo 549 e cita-se o artigo 1.789 do Código Civil:

            "Art. 549. Nula é também a doação quanto à parte que exceder à de que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento".

            "Art. 1.789. Havendo herdeiros necessários, o testador só poderá dispor de metade da herança".

            Nos termos dos artigos supracitados, é classificada como doação inoficiosa aquela que excede a 50% (cinqüenta por cento) do patrimônio do doador que possui herdeiros necessários.

            Sobre o tema, temos as palavras de Arnaldo Rizzardo [06]:

            "Se o testador possuir herdeiros necessários – descendentes ou ascendentes -, não poderá dispor, em testamento, de mais de metade da herança, ou seja, da chamada porção ou quota disponível. Em se tratando de doação, autoriza-se a liberalidade numa porção que vai até o limite da quota disponível, calculada entre o montante dos bens à época existentes. À essa doação que excede a meação disponível se dá o nome de inoficiosa, sendo absolutamente nula".

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            Complementando as palavras acima descritas, temos os escritos de Sílvio de Salvo Venosa [07]:

            "O art. 549 comina com nulidade a doação cuja parte exceder a que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento. Trata-se da doação inoficiosa. Questão importante é calcular a metade disponível, ou seja, o montante que pode ser doado em cada oportunidade. A regra a ser seguida é, portanto, avaliar o patrimônio do doador, quando do ato. Se o montante doado não atinge a metade do patrimônio, não haverá nulidade".

            (grifo nosso)

            Corroborando os entendimentos doutrinários, temos o posicionamento do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro:

            "DOAÇÃO INOFICIOSA. Legitima Não Vulnerada. Nulidade Inexistente. Para que se caracterize a doação inoficiosa é preciso que o bem doado ultrapasse efetivamente a parte disponível de que poderia dispor o doador no momento da liberalidade. Provada a não vulneração da legítima, a doação deve ser tida como válida. Desprovimento do recurso".

            (Tipo da Ação: APELACAO CIVEL - Número do Processo: 1998.001.04162 - Data de Registro: 17/08/1998 - Órgão Julgador: SEGUNDA CAMARA CIVEL - Des. SERGIO CAVALIERI FILHO - Julgado em 09/06/1998).

            Percebe-se, pois, que só pode ser classificada como doação inoficiosa, sendo passível de nulidade, a parte que exceder a 50% (cinqüenta por cento) do patrimônio total do doador à época da doação.


5 – DA COLAÇÃO.

            Conforme mencionado no item 2 do presente, trazemos à baila o conceito do instituto jurídico "colação" e sua relevância para o estudo em tela.

            Colação é sinônimo jurídico de conferência de bens no processo de inventário. O termo deriva do latim collatio, de largo uso no instituto da collatio bonorum, que obrigava à apresentação de bens recebidos em vida por certos herdeiros, quando da transmissão hereditária dos bens do antigo titular.

            Sua acepção jurídica é extraída do artigo 2.002 do Código Civil:

            "

Art. 2002. Os descendentes que concorrerem à sucessão do ascendente comum são obrigados, para igualar as legítimas, a conferir o valor das doações que dele em vida receberam, sob pena de sonegação.

            Parágrafo único. Para cálculo da legítima, o valor dos bens conferidos será computado na parte indisponível dos bens, sem aumentar a parte disponível".

            A finalidade da colação é obter a igualdade das legítimas, em face do sistema jurídico sucessório de proteção a essa parte da herança que compete aos herdeiros necessários.

            Não obstante a determinação legal supracitada, o dever de colacionar bens admite exceções, notadamente nos termos dos artigos 2.005 e 2.010 do Código Civil.

            Primordial para o estudo em tela, faz-se necessária a citação do artigo 2.005 e de seu parágrafo único:

            "Art. 2.005. São dispensadas da colação as doações que o doador determinar saiam da parte disponível, contanto que não a excedam, computado o seu valor ao tempo da doação".

            "Parágrafo único. Presume-se imputada na parte disponível a liberalidade feita a descendente que, ao tempo do ato, não seria chamado à sucessão na qualidade de herdeiro necessário".

            (grifo nosso)

            Nos termos do parágrafo único supracitado, é imputada na parte disponível a doação feita a descendente que, ao tempo do ato, não seria chamado à sucessão na qualidade de herdeiro necessário.

            Em tal hipótese torna-se desnecessária a colação, tendo em vista que o herdeiro em 2ª linha (neto) é classificado simplesmente como sujeito passivo do contrato de doação, não sendo enquadrado nas determinações legais referentes aos herdeiros necessários.

            Constata-se, pois, que a doação feita a netos, além de não caracterizar adiantamento de herança (conforme item 2 desse estudo), não pode ser colacionada nos autos do inventário do doador, visando a prestação de contas aos demais herdeiros.


7 – CONCLUSÃO:

            Fez-se o presente estudo acerca da validade da doação feita a netos.

            Nesse sentido, após a análise de toda a legislação pertinente, consulta aos mestres mais renomados da matéria e pesquisa de entendimentos dos principais Tribunais do país, constatou-se que o contrato de doação celebrado entre ascendentes e descendentes indiretos (netos) não afronta o ordenamento jurídico em vigor.

            Repisa-se que a falta de anuência dos herdeiros excluídos da doação não abala os alicerces de validade da transferência em favor dos donatários.

            Da mesma forma, elucida-se que o objeto da doação feita a netos é presumidamente imputado na parte disponível do doador, fato que impossibilita qualquer suscitação de nulidade nesse sentido (doação inoficiosa).


BIBLIOGRAFIA:

            Código Civil Anotado. São Paulo: Saraiva, 1995. Página 738.

            RIZZARDO, Arnaldo. Contratos. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001.

            VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: direito das sucessões. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2003.


NOTAS

            01

RIZZARDO, Arnaldo. Contratos. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. Páginas 323 e 324.

            02

Código Civil Anotado. São Paulo: Saraiva, 1995. Página 738.

            03

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: direito das sucessões. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2003. Páginas 362 e 365.

            04

Ob. Cit. Página 327.

            05

Ob. Cit. Página 327.

            06

Ob. Cit. Página 340.

            07

Ob. Cit. Página 119.
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Sobre o autor
Milton Gomes Baptista Ribeiro

advogado no Rio de Janeiro

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RIBEIRO, Milton Gomes Baptista. Da validade da doação feita a netos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 748, 22 jul. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7032. Acesso em: 29 mar. 2024.

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