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A necessidade de pensar num projeto de renda mínima

27/06/2020 às 15:30
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O Brasil possui a Lei 10.835/2004, que instituiu a “renda básica de cidadania”, jamais implantada. Seria o direito de todos os brasileiros, não importando sua condição socioeconômica, receberem, anualmente, um benefício suficiente para atender a despesas mínimas com alimentação, educação e saúde.

Toda pessoa humana traz consigo a dignidade, independente de sua situação social, pelo simples fato de existir. Kant já dizia que “o homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como um fim em si mesmo”. E é justamente pelo fato de o homem existir e coexistir em sociedade que a dignidade pode aumentar ou diminuir, devendo-se acrescer um limite social à garantia desta, isto é, haverá dignidade ilimitada desde que não se viole outra ou a de outrem. Aqui vale lembrar que nem à própria dignidade é permitida a violação, cabendo ao Estado o dever de preservar quaisquer situações que coloquem em risco a dignidade humana.

Continuando com o pensamento kantiniano:

“Os seres cuja existência depende, não em verdade da nossa vontade, mas da natureza, têm contudo, se são seres irracionais, apenas um valor relativo como meios e por isso se chama coisas, ao passo que os seres racionais se chamam pessoas, porque a sua natureza os distingue já como fins em si mesmos, quer dizer como algo que não pode ser empregado como simples meio e que, por conseguinte, limita nessa medida todo arbítrio.”

A pessoa considerada idosa e portadora de deficiência física, no ordenamento constitucional tem proteção fixada logo de início, pois assim prescreve o artigo 1º, incisos II e III, veja-se:

“Art. 1º-A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

(…)

III – a dignidade da pessoa humana;”

Logo, o deficiente físico e/ou idoso possui status de cidadão e, por consequência, deve ser contemplado por todos os instrumentos asseguradores da dignidade humana aos brasileiros, sem distinção.

Ademais, a C.R.F.B de 1988, em seu artigo 3º, inciso IV, estabelece, além de uma sociedade justa, a erradicação da pobreza e da redução das desigualdades sociais, que é um dos objetivos fundamentais do Estado, qual seja, o de promover o bem estar de todos, sem preconceito ou discriminação.

Eis aí, o princípio da dignidade da pessoa humana.

Trata-se de princípio impositivo norteador exposto pela Constituição-cidadã de 1988.

Ingo Wolfgang Sarlet (Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011), ressalta que:

“A Constituição de 1988 foi a primeira na história do constitucionalismo pátrio a prever um título próprio destinado aos princípios fundamentais, situado – em homenagem ao especial significado e função destes – na parte inaugural do texto, logo após o preâmbulo e antes dos direitos fundamentais. Mediante tal expediente, o Constituinte deixou transparecer de forma clara e inequívoca a sua intenção de outorgar aos princípios fundamentais a qualidade de normas embasadoras e informativas de toda a ordem constitucional, inclusive dos direitos fundamentais, que também integram aquilo que se pode denominar de núcleo essencial da Constituição material. Igualmente sem precedentes em nossa evolução constitucional foi o reconhecimento, no âmbito do direito positivo, do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III, da CF), que não foi objeto de previsão no direito anterior. Mesmo fora do âmbito dos princípios fundamentais, o valor da dignidade da pessoa humana foi objeto de previsão por parte do Constituinte, seja quando estabeleceu que a ordem econômica tem por fim assegurar a todos uma existência digna (art. 170, caput), seja quando, no âmbito da ordem social, fundou o planejamento familiar nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável (art. 226, § 6º), além de assegurar à criança e ao adolescente o direito à dignidade (art. 277, caput). Assim, ao menos neste final de século, o princípio da dignidade da pessoa humana mereceu a devida atenção na esfera do nosso direito constitucional.”

O Estado tem a função essencial de proteger a dignidade da pessoa humana e, sucessivamente, de promovê-la. Assim, o indivíduo ao encontrar-se em situação nociva de sua dignidade, merecerá de proteção, ou seja, o Estado deverá atuar como promotor da dignidade humana.

Essas ilações são feitas diante de um quadro em que a Constituição de 1988 elegeu um modelo democrático-social norteador que se divorcia das regras de mercado e procura atender a dignidade do cidadão.

Fala-se no que se assenta como bem-estar social.

Fala-se que há um limite a essa imposição: a dotação de recursos essenciais sem os quais nada poderia ser feito. O Estado estaria limitado a recursos.

Essa visão contrasta com o que a Constituição que determina: Se há indignidade é preciso que o Estado socorra. É dever do Estado.

A própria Constituição Federal de 1988 prevê um regime econômico baseado na justiça social a todos, assegurando, deste modo, igualdade de oportunidades econômicas para todos, em relação ao acesso aos recursos básicos.

Dir-se-á que o atual Executivo que chegou ao poder pelas urnas, em 2018, com trinta anos da modelar Constituição de 1988, adota um modelo neoliberal.

Celso Antônio Bandeira de Mello disse que o neoliberalismo é um neocolonialismo. As leis de determinado Estado mudam para permitir flexibilização das leis internas para favorecer as leis internacionais do Livre Comércio. A corrupção PPPI [Parceria Público-Privada Ímproba] tornou-se preocupação mundial — por exemplo, Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção e Decreto nº 5687. O lado imoral das empresas tornou-se insuportável e comprometedora da dignidade humana.

O modelo empresarial adotado pelo neoliberalismo exige que o Estado adote essa ou aquela medida, se há recursos para tanto e respeite o vetor livre mercado.

O neoliberalismo político nasceu como reação teórica à ascensão do modelo de Estado de bem-estar social, que teve início logo após a Segunda Guerra Mundial. Entretanto, a partir dos anos de 1970, sobreveio uma profunda instabilidade do modelo econômico vigente, onde os reflexos na área social foram inevitáveis. Desemprego em massa, miséria, profundas desigualdades sócio-econômicas, enfim, a era de ouro do Estado Social anunciava seu fim, surgindo, então, o terreno propício à implantação do pensamento neoliberal. A história registra que paulatinamente ganharam desenvolvimento as ideias preconizadas pela doutrina neoliberal, tendo sido fator de grande impulso o colapso do socialismo real, marcado pela derrocada do modelo comunista da Europa Oriental.

O neoliberalismo tem como princípio a redução do Estado como instrumento político e econômico, onde o próprio mercado trataria de realizar o equilíbrio desejado. A tendência de substituir a ordem espontânea e complexa por planejamentos realizados pelo homem como forma de controle social e econômico acabaria por resultar em um empobrecimento e na servidão.

Nessa proposta, como se sabe, o Estado é mínimo.

E, como mínimo, não cabe na defesa de pessoas indefesas que vivem abaixo da linha de pobreza.

Milton Friedman deu sustentação científica para o pensamento neoliberal, em contraponto que a atuação do Estado intervencionista promoveria o bem-estar social. Sustentava, ainda, que no neoliberalismo, o bem-estar social poderia ser preservado e ampliado. Friedman define o papel do Estado, onde “um governo que mantenha a lei e a ordem; defina os direitos de propriedades; sirva de meio para a modificação dos direitos de propriedade e de outras regras do jogo econômico; julgue disputas sobre a interpretação das regras; reforce contratos; [...] forneça uma estrutura monetária” entre outros, mas que não intervenha na economia a ponto de prejudicar a livre concorrência.

Disse Milton Friedman que a sociedade que põe igualdade na frente da liberdade está fadada a não alcançar qualquer dos 2 objetivos; já a sociedade que prioriza a liberdade, provavelmente acabará atingindo alto grau de liberdade e igualdade. Foi o economista libertário, vencedor do Nobel em 1976, um dos mais árduos proponentes do “imposto de renda negativo”, a ideia de que indivíduos cuja renda fosse menor do que um determinado valor recebessem pagamentos suplementares do governo em vez de pagar impostos ao governo.

Assim viria a crise do welfare state.

Luhmannm e os teóricos do "direito reflexivo"m usam o modelo autopoiético para sustentar uma política jurídica de orientação "neoliberal". Eles interpretam a crise do welfare state como a perda da capacidade regulatória de seus instrumentos legais. Ao mesmo tempo, eles argumentam que a função legislativa invade esferas da privacidade bem como outros subsistemas autônomos e funcionalmente diferenciados. De acordo com eles, a estratégia intervencionista do welfare state sobrecarrega os instrumentos jurídicos com funções políticas e econômicas até o ponto em que ela distorce suas funções de regulação formal e geral das relações sociais. [...] Nestas elaborações teóricas, o paradigma autopoiético suporta perspectivas que em muitos aspectos são similares àquelas de desregulamentação.

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“Enquanto os países desenvolvidos enriqueceram primeiro, para depois envelhecer, nós estamos envelhecendo com pobreza. E não só com pobreza, mas com muita desigualdade”, disse Alexandre Kalache, médico epidemiologista e presidente do Centro Internacional de Longevidade – Seção Brasil.

Ainda segundo Kalache, no caso da França, foram necessários 145 anos (1845 a 1990) para que a população de idosos dobrasse, passando de 10% para 20%. No Brasil, ocorrerá aumento semelhante em apenas 19 anos, entre 2010 e 2029.

“É o tempo de uma geração. Precisaremos nos adaptar e desenvolver políticas públicas sem os recursos que a França teve ao longo do século 20”, disse Kalache, que dirigiu o programa global de envelhecimento da Organização Mundial de Saúde (OMS) entre 1995 e 2008.

Ora, nos difíceis tempos de hoje, com uma pandemia que grassa na sociedade, levando a altos níveis de desemprego, fechamento de empresas, surgiu a ideia do benefício envolvendo o chamado “auxílio-emergencial”.

Segundo o agente operador, a Caixa Econômica Federal, o Auxílio Emergencial é um benefício financeiro destinado aos trabalhadores informaismicroempreendedores individuais (MEI), autônomos e desempregados, e tem por objetivo fornecer proteção emergencial no período de enfrentamento à crise causada pela pandemia do Coronavírus - COVID 19.

O benefício no valor de R$ 600,00 será pago por três meses, para até duas pessoas da mesma família.

Para as famílias em que a mulher seja a única responsável pelas despesas da casa, o valor pago mensalmente será de R$ 1.200,00.

Quem estava no Cadastro Único até o dia 20/03, e que atenda as regras do Programa, receberá sem precisar se cadastrar no site da CAIXA.

Quem recebe Bolsa Família poderá receber o Auxílio Emergencial, desde que seja mais vantajoso. Neste período o Bolsa Família ficará suspenso.

As pessoas que não estavam no Cadastro Único até 20/03, mas que têm direito ao auxílio poderão se cadastrar no site auxilio.caixa.gov.br ou pelo APP CAIXA|Auxílio Emergencial.

Depois de fazer o cadastro, a pessoa pode acompanhar se vai receber o auxílio emergencial, consultando no próprio site ou APP.

Bem lembrou Monica De Bolle, O Maior dos Descasos, em artigo publicado para o Estadão, em 24 de junho de 2020,  

“enquanto se abraça o descaso, enquanto alguns são embalados pela ilusão de uma volta à normalidade perdida, o governo brasileiro aproveita o ensejo para anunciar o fim do auxílio emergencial. De tudo o que se fez e não se fez no Brasil ao longo dos últimos meses, a única medida realmente adequada e relevante que se adotou foi o auxílio emergencial, apesar da sua péssima implementação pelo governo federal. Removê-lo no meio de uma epidemia que continuará a matar, a destruir famílias, a fomentar o medo e a insegurança é uma aposta em infundir medo. Não me parece despropositado entender que acabar com o auxílio emergencial, nas circunstâncias presentes, é uma forma de continuar uma política abjetamente irresponsável que a pandemia deu ao governo federal a oportunidade de implementar. Também não é exagero afirmar que, hoje, o fiscalismo excessivo – o zelo pelas contas públicas nesse momento inédito, o dogma do teto de gastos – abraçado por alguns economistas mata.”

O Brasil possui a Lei 10.835, de 2004, que instituiu a “renda básica de cidadania”, jamais implantada. Diz a lei que a renda básica se constituiria no direito de todos os brasileiros residentes no País e estrangeiros residentes há pelo menos 5 anos no Brasil, não importando sua condição socioeconômica, receberem, anualmente, um benefício monetário suficiente para atender as despesas mínimas com alimentação, educação e saúde.

Necessário será dotar recursos orçamentários objetivando dar efetividade à tão importante forma de apoio aos mais necessitados.

Cresce a necessidade de se pensar em um projeto permanente de renda básica.

O Projeto de Lei 3.023/20 cria o Programa Renda Básica Brasileira, destinado a ações de transferências pecuniárias da União. O objetivo é tornar permanente o auxílio de R$ 600 mensais criado para mitigar os efeitos da pandemia de coronavírus (Lei 13.982/20).

Segundo a agência Câmara de Notícias, conforme o texto em tramitação na Câmara dos Deputados, serão unificados quatro programas, o de Erradicação do Trabalho Infantil (Lei 8.742/93), o Seguro Defeso (Lei 10.779/03), o Bolsa Família (Lei 10.836/04) e o Bolsa Verde (Lei 12.512/11). O valor do benefício mensal será corrigido conforme a variação da inflação anual (INPC).

A Renda Básica, que iria substituir o Auxílio Emergencial, sem a transitoriedade deste, significará uma forma de resgate social visando a integrar diversas camadas da população que vivem em estado de extrema pobreza.

Como acentuou o site Poder 360, ao contrário da maioria dos debates econômicos, a renda básica tem defensores e opositores de ambos os lados do espectro político-ideológico. Libertários e proponentes do laissez-faire argumentam que a renda básica reduziria a burocracia e a falta de transparência inerentes à pluralidade de programas sociais, além de devolver ao indivíduo a decisão sobre como gastar o recurso recebido do Estado. Já os que se autoproclamam mais à esquerda do centro defendem o poder de redução da pobreza atrelado à renda básica.

Se não bastasse, poderá trazer recursos aos erários estaduais, oriundos de cobranças do ICMS, de forma a atrair o consumo, algo salutar para o ambiente social.  

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. A necessidade de pensar num projeto de renda mínima. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6205, 27 jun. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/83514. Acesso em: 28 mar. 2024.

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