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Permissão de uso de bem público não se sujeita a licitação, por ser precária e se inserir no poder discricionário da administração pública.

Falta de tipicidade para o ajuizamento de ação de improbidade administrativa

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13/11/2006 às 00:00
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- IV -

            A interpretação legal controvertida, caso o Ministério Público entenda que o termo de permissão de uso de bem público precário necessita de licitação, é retirada pela falta de tipicidade das condutas do agente público responsável pelo ato e pelo particular, em face da inexistência do dolo específico.

            Em alguns casos concretos, presenciamos ilustres membros do parquet ajuizarem ações de improbidade administrativa, por entenderem que situações precárias aventadas no presente estudo, colidem com os artigos 4º e 11, da Lei nº 8.429/92.

            Ora, o assustador caráter aberto do caput dos artigos 4º e 11, da Lei nº 8.429/92, exige do intérprete a verificação da irregularidade formal de determinado ato, no sentido de que fique demonstrado, inequivocamente, o ato de devassidão do agente público, através do elemento subjetivo do tipo, o dolo, caracterizado não só pelo descumprimento de um princípio legal, como também pela vontade de lesar ao erário.

            Ao estabelecer uma violação do princípio da legalidade, pela ausência de licitação, o Ministério Público tenta qualificar uma pseudo ilegalidade, sem demonstrar o dolo, a má-fé do agente público e do particular, visto que não há nenhum ardil praticado por esses.

            Todavia, apesar do princípio da legalidade ser objeto de inserção no caput dos artigos 4º e 11, da Lei de Improbidade Administrativa, dado o caráter aberto da norma, como dito alhures, não podem ser enquadrados como ímprobos os atos omissivos ou comissivos que firam a legalidade resultado de uma inabilidade ou de uma interpretação controvertida da lei, caracterizando-se portanto em aparentes ilegalidades.

            A má-fé, caracterizada pelo dolo, comprometedora de princípios éticos ou critérios morais, com abalo às instituições, é que deve, segundo a melhor dicção da Lei nº 8.429/92 ser penalizada, abstraindo-se meros equívocos e erros, pois a lei em questão não se presta para processar e punir o administrador público inábil ou desastrado.

            Assim, a conduta do agente público/particular deverá ser dolosa para que ocorra a tipificação nos artigos 4º e 11 da Lei de Improbidade Administrativa, como já afirmado, mas sempre oportuno relembrar, consistente na vontade de lesar e de descumprir uma regra legal.

            Dessa forma, (o tipo subjetivo previsto o elemento subjetivo caracterizador do artigo 11, da Lei de Improbidade Administrativa é o dolo na conduta do(s) agente(s), pois a referida lei não contempla a hipótese de responsabilidade objetiva: "Recurso Especial. Ação Civil Pública. Improbidade Administrativa. Princípios da Moralidade e Legalidade. Conduta Dolosa. Tipicidade no art. 11 da Lei nº. 8.429/92. 1. O tipo previsto no art. 11 da Lei n. 8.429/92 é informado pela conduta e pelo elemento subjetivo consubstanciado no dolo do agente. 2. É insuficiente a mera demonstração do vínculo causal objetivo entre a conduta do agente e o resultado lesivo, quando a lei não contempla hipótese da responsabilidade objetiva. 3. Recurso especial provido." [14] "Administrativo - Ação Civil Pública - Ato de Improbidade: Tipificação (art. 11 da Lei 8.429/92). 1. O tipo do artigo 11 da Lei 8.429/92, para configurar-se como ato de improbidade, exige conduta comissiva ou omissiva dolosa. 2. Atipicidade de conduta por ausência de dolo. 3. Recurso especial provido." [15] "Administrativo. Improbidade. Lei 8.429/92, art. 11. Desnecessidade de ocorrência de Prejuízo ao Erário. Exigência de Conduta Dolosa. 1. A classificação dos atos de improbidade administrativa em atos que importam enriquecimento ilícito (art. 9º), atos que causam prejuízo ao erário (art. 10) e atos que atentam contra os princípios da Administração Pública (art. 11) evidencia não ser o dano aos cofres públicos elemento essencial das condutas ímprobas descritas nos incisos dos arts. 9º e 11 da Lei 9.429/92. Reforçam a assertiva as normas constantes dos arts. 7º, caput, 12, I e III, e 21, I, da citada Lei. 2. Tanto a doutrina quanto a jurisprudência do STJ associam a improbidade administrativa à noção de desonestidade, de má-fé do agente público. Somente em hipóteses excepcionais, por força de inequívoca disposição legal, é que se admite a configuração de improbidade por ato culposo (Lei 8.429/92, art. 10). O enquadramento nas previsões dos arts. 9º e 11 da Lei de Improbidade, portanto, não pode prescindir do reconhecimento de conduta dolosa. 3. Recurso especial provido." [16]

            Na prática, o Ministério Público entende que todo ato tido como ilegal é ímprobo, mesmo que no presente caso haja uma interpretação legal controvertida, onde julgados e posicionamentos doutrinários respaldam o ato administrativo impugnado através da ação de improbidade administrativa.

            Esse posicionamento do Ministério Público é despido de fundamento jurídico, data venia, pois a Lei nº 8.429/92 não é direcionada ao agente público desastrado ou inábil, tanto que o STJ pacificou o entendimento de que a má-fé é a premissa do ato ímprobo, caracterizada pelo elemento subjetivo do tipo, o dolo. Sem este liame não há prática do ato de improbidade administrativa: "(...) É cediço que a má-fé é premissa do ato ilegal e ímprobo. Consectariamente, a ilegalidade só adquire o status de improbidade quando a conduta antijurídica fere os princípios constitucionais da Administração Pública coadjuvados pela má-fé do administrador. A improbidade administrativa, mais que um ato ilegal, deve traduzir, necessariamente, a falta de boa-fé, a desonestidade, o que não restou comprovado nos autos pelas informações disponíveis no acórdão recorrido, calcadas, inclusive, nas conclusões da Comissão de Inquérito (...)" [17] "Administrativo. Recurso Especial. Improbidade Administrativa. Art. 11, I, da Lei 8.429/92. Ausência de Dano ao Erário Público. Improcedência da Ação. 1. "O objetivo da Lei de Improbidade é punir o administrador público desonesto, não o inábil. Ou, em outras palavras, para que se enquadre o agente público na Lei de Improbidade é necessário que haja o dolo, a culpa e o prejuízo ao ente público, caracterizado pela ação ou omissão do administrador público." (Mauro Roberto Gomes de Mattos, em "O Limite da Improbidade Administrativa, ed. América Jurídica, 2ª ed., pp. 7 e 8). 2. "A finalidade da lei de improbidade administrativa é punir o administrador desonesto" (Alexandre de Moraes, in "Constituição do Brasil Interpretada e legislação constitucional", Atlas, 2002, p. 2.611). 3. "De fato, a lei alcança o administrador desonesto, não o inábil, despreparado, incompetente e desastrado" (RESp. 213.994-0/MG, 1ª Turma, Rel. Min. Garcia Vieira, DOU de 27.09.1999). 4. "A Lei nº 8.429/92 da Ação de Improbidade Administrativa, que explicitou o cânone do art. 37, § 4º, da Constituição Federal, teve como escopo impor sanções aos agentes públicos incursos em atos de improbidade nos casos em que: a) importem em enriquecimento ilícito (art. 9); b) em que causem prejuízo ao erário público (art. 10); c) que atentem contra os princípios da Administração Pública (art. 11), aqui também compreendida a lesão à moralidade pública" (Resp. nº 480.387/SP, Rel. Min. Luis Fux, 1ª T., DJU de 24.05.2004, p. 162). 5. O recorrente sancionou lei aprovada pela Câmara Municipal que denominou prédio público com nome de pessoas vivas. 6. Inexistência de qualquer acusação de que o recorrente tenha enriquecido ilicitamente em decorrência do ato administrativo que lhe é apontado como praticado. 7. Ausência de comprovação de lesão ao patrimônio público. 8. Não configuração do tipo definido no art. 11, I, da Lei nº 8.429 de 1992. 9. Pena de suspensão de direitos políticos por quatro anos, sem nenhuma fundamentação. 10. Ilegalidade que, se existir, não configura ato de improbidade administrativa. 11. Recurso especial provido." [18]

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            Parte o Ministério Público, como dito alhures, da premissa de que todo o ato público tido como ilegal, em tese, pode ser tipificado na Lei de Improbidade Administrativa. Dissocia-se portanto, o Ministério Público do escopo da própria Lei nº 8.429/92, que é o de punir o agente público desonesto e devasso, jamais o inábil ou o desastrado, ou até mesmo aquele que age em conformidade com posicionamentos controvertidos.

            Não há, portanto, tipicidade das condutas do agente público e do particular na Lei de Improbidade Administrativa, pelo fato de terem celebrado Termo de Permissão de uso de bem público a título precário, pois este ato não é devasso e nem imoral, sendo defendido por parte significativa da doutrina e da jurisprudência.

            Basta o tema ser controvertido, despertando posicionamentos favoráveis e contrários a uma determinada tese jurídica, que é retirado o dolo, visto que o agente público ao praticar o ato administrativo o fez respaldado por respeitáveis posicionamentos.

            Essa dúvida já é suficiente para lhe dar um salvo conduto de não ter praticado um dos três tipos que vêm elencados na Lei nº 8.429/92.


- V -

            Ex positis, concluímos que a permissão de uso de bem público à título precário não se sujeita ao certame licitatório e, via de conseqüência, se insere no Poder discricionário da Administração Pública.

            Tanto a doutrina como dominante como a jurisprudência ratificam tal assertiva, o que por si só, retira o manejo de ação de improbidade administrativa para casos como os aqui relatados, por falta de justa causa, haja vista que não há a prática de ato de improbidade administrativa.

            A improbidade administrativa deverá ser tipificada para os atos que importem em uma grave e flagrante devassidão/imoralidade do agente público/particular, jamais confundida, em hipótese alguma, com as situações jurídicas que envolvam a permissão de uso de bem público a título precário, pelo particular.

            Há abuso do direito de acionar, caso seja ajuizada ação de improbidade administrativa para as situações jurídicas sub oculis.


Notas

            01

MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. O Limite da Improbidade Administrativa - O direito dos Administrados dentro da Lei nº 8.429/92. 3. ed. revista, atualizada e ampliada. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2006. p. 2.

            02

OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador. São Paulo: RT, 2004. p. 206.

            03

SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 725.

            04

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 493.

            05

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2002. p. 218.

            06

MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 8. ed. São Paulo: RT, 2004. p. 290-291.

            07

Cf. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 7. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, p. 850 e seguintes; MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 2. ed. São Paulo: RT, 1996. p. 279.

            08

STJ. Rel. José Delgado, RMS 16280/RJ, 1ª T., DJ 19 abr. 2004, p. 154.

            09

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Permissão de Serviço Público e Permissão de Uso. Quando cabe a Licitação. In "Temas Polêmicos sobre Licitações e Contratos". 3. ed. São Paulo: Malheiros, p. 40-41.

            10

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Op. cit. ant., p. 41.

            11

RIGOLIN, Ivan Barbosa. "Concessão, permissão, autorização, cessão e doação: quais as diferenças? In Fórum de Contratação e Gestão Pública. Belo Horizonte: Fórum, p. 4589, novembro/2004.

            12

RIGOLIN, Ivan Barbosa. Op. cit. ant., p. 4596.

            13

RIGOLIN, Ivan Barbosa. Op. cit. ant., p. 4597.

            14

STJ. Rel. Min. João Otávio de Noronha, REsp. 626034/RS, 2ª T., DJ de 5 jun. 2006, p. 246

            15

STJ. Rel. Min. Eliana Calmon, Resp. 534575/PR, 2ª T., DJ de 29 mar. 2004, p. 205.

            16

STJ. Rel. Min. Teori Albino Zavascki, Resp. 604151/RS, 1ª T., DJ de 8 jun. 2006, p. 121.

            17

STJ. Rel. Min. Luiz Fux, RESP 480387/SP, 1ª T., DJ de 24 mai. 2004, p. 163.

            18

STJ, Rel. Min. José Delgado, Resp. 758639/PB, 1ªT., DJ de 15 mai. 2004, p. 171.
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Sobre o autor
Mauro Roberto Gomes de Mattos

Advogado no Rio de Janeiro. Vice- Presidente do Instituto Ibero Americano de Direito Público – IADP. Membro da Sociedade Latino- Americana de Direito do Trabalho e Seguridade Social. Membro do IFA – Internacional Fiscal Association. Conselheiro efetivo da Sociedade Latino-Americana de Direito do Trabalho e Seguridade Social. Autor dos livros "O contrato administrativo" (2ª ed., Ed. América Jurídica), "O limite da improbidade administrativa: o direito dos administrados dentro da Lei nº 8.429/92" (5ª ed., Ed. América Jurídica) e "Tratado de Direito Administrativo Disciplinar" (2ª ed.), dentre outros.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MATTOS, Mauro Roberto Gomes. Permissão de uso de bem público não se sujeita a licitação, por ser precária e se inserir no poder discricionário da administração pública.: Falta de tipicidade para o ajuizamento de ação de improbidade administrativa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1230, 13 nov. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9157. Acesso em: 29 mar. 2024.

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