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Lassale x Hesse e as reformas à Constituição Brasileira

10/08/1997 às 00:00
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Ao analisarmos as propostas de reforma à Constituição de iniciativa do Governo Federal, na tentativa de modificar o texto da Carta Magna brasileira para ajustá-lo a uma imprecisa e mal definida realidade social, assim como, ao processo de globalização econômica que, sob o signo de uma política neo-liberal e anti-estatal no qual garanta o primado do mercado e a liberdade de empreendimento, atenta contra todo um sistema de garantias, limites e controles, não só sobre o Estado, mas também sobre o mercado, vemo-nos obrigados a fazer uma regressão ao ano de 1862, quando Ferdinand Lassale, proferiu célebre conferência que acabou se tornando texto clássico da doutrina constitucional, intitulado A essência da constituição.

Para Lassale, a Constituição escrita, para ser boa e duradoura, deve refletir, necessariamente, os fatores reais de poder existentes na sociedade, pois, um eventual conflito entre o texto escrito e a Constituição real, ou seja, a soma dos fatores reais de poder que regem uma nação, fará com que, mais cedo ou mais tarde, a Constituição folha de papel seja rasgada e arrastada pelas verdadeiras forças vigentes no país, num determinado momento de sua história. Noutras palavras, a Constituição formal seria revogada pela Constituição real.

Anos mais tarde, outro alemão, Konrad Hesse, contrapondo-se ao posicionamento de Lassale, lança as bases da teoria que se intitulou Força normativa da constituição. Segundo Hesse, a Constituição não é e não deve ser um subproduto mecanicamente derivado das relações de poder dominantes, ou seja, sua força normativa não deriva unicamente de uma adaptação à realidade, mas, antes, de uma vontade de constituição.

Sem desprezar a importância das forças sócio-políticas para a criação e sustentação da Constituição jurídica (folha de papel para Lassale), Hesse sugere a existência de um condicionamento recíproco entre a Lei Fundamental e a realidade político-social subjacente.

De fato a Constituição jurídica não pode ser reduzida a uma fotografia da realidade. Além de obedecer e traduzir a constante mutação social, é necessário que esta seja um dever ser, isto é, aponte na direção de um horizonte onde prevaleça maior justiça social.

A Constituição há de ser considerada como fonte criadora do Estado de Direito, pois, antes dela o poder é mero fato que se juridiciza com a Constituição para se transformar em Poder de direito. Visto deste prisma a Constituição, na medida que interage com os demais fatos sociais, converte-se, também, num fator real de poder.

A Constituição de um país, como termômetro e alicerce de toda a ordem jurídica vigente, deve alcançar um mínimo de estabilidade e segurança jurídicas. Reformas constitucionais precipitadas e às vésperas de eleições podem resultar em verdadeiro atentado à supremacia constitucional. O que mais preocupa, no caso brasileiro, é a pretensão de querer abolir o que a própria Carta Política afirma intocável: os direitos e garantias individuais.

É admissível que mudanças nas relações sociais importem em mutação na interpretação da Constituição. Neste sentido é cada vez mais relevante o papel da jurisprudência como fator de readaptação dos textos constitucionais sem a necessidade de se alterar a sua configuração literal, os quais, por essa via, podem receber orientações sempre renovadas, em consonância com as transformações ocorridas na sociedade.

Vejamos o exemplo da Constituição dos Estados Unidos da América que, após as emendas denominadas Bill of Rights, em 1791, vem preservando seu texto fundamental, após mais de duzentos anos, através de permanente evolução jurisprudencial.

Entendemos que os maiores problemas com relação à Constituição vigente no Brasil, dizem respeito, exatamente, à falta de sua aplicação, à ausência de regulamentação de inúmeros de seus disposivos e ao desrespeito aos seus princípios basilares, quando não da própria literalidade do texto fundamental.

Tal como afirmado por Hesse, a Constituição somente se converterá em força ativa quando se fizer presente, na consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional, não só a vontade de poder, mas também a vontade de constituição.

Reforma constitucional não é mudança de Constituição. Sob pena de usarem o procedimento de reforma para romper com o sistema legal estabelecido, procedendo-se à criação de novo regime político e um ordenamento constitucional diferente, devemos lutar contra o que mais se assemelha a uma fraude à Constituição.

Para não termos que dar razão à Lassale e nem tampouco ficarmos condenados à uma Constituição que perdeu o bonde da história, devemos lutar pela manutenção da Carta Magna de 1988, que longe de ser a lei fundamental ideal, é a que está a nos garantir a manutenção de um Estado soberano e uma nação cidadã.

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Sobre o autor
Marcelo Silva Moreira

assessor jurídico do Tribunal de Justiça do Maranhão, professor universitário, pós-graduando em Direito Civil e Processual Civil pela FGV

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOREIRA, Marcelo Silva. Lassale x Hesse e as reformas à Constituição Brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 2, n. 17, 10 ago. 1997. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/92. Acesso em: 29 mar. 2024.

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