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A aplicabilidade das decisões proferidas pelo Tribunal Penal Internacional perante o ordenamento jurídico brasileiro:

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A partir de uma acareação legislativa e doutrinária, verifica-se a constitucionalidade e eficiência da aplicabilidade das decisões proferidas pelo Tribunal Penal Internacional no ordenamento jurídico brasileiro.

RESUMO: Desde a proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, muito se discutiu acerca da criação de uma Corte Internacional que garantisse a aplicação desses direitos em todo o território mundial. O Estatuto de Roma criou o Tribunal Penal Internacional e fez surgir a preocupação quanto à integração das matérias apreciadas pela Corte e os ordenamentos jurídicos de cada nação. Os objetos deste artigo são os entraves e as compatibilidades existentes entre o Estatuto do Tribunal Penal Internacional e o ordenamento jurídico brasileiro. Para tanto, faz-se necessária a análise da aplicabilidade das decisões proferidas por essa Corte perante a Constituição da República de 1988, o Direito Penal e Processual Penal pátrios. A partir desta acareação legislativa e doutrinária, objetiva-se verificar a constitucionalidade e eficiência da aplicabilidade das decisões proferidas pelo Tribunal Penal Internacional no ordenamento jurídico brasileiro.

Palavras-chave: Corte Internacional.Tribunal Penal Internacional. Ordenamento jurídico brasileiro. Aplicabilidade das decisões.

1. INTRODUÇÃO

Com as inúmeras barbáries ocorridas durante a Segunda Guerra Mundial, surgiu a necessidade da proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, a fim de reconhecer e garantir a dignidade inerente à pessoa humana.

Para tanto, era notória a necessidade da efetivação da responsabilidade penal dos indivíduos que transgredirem os direitos inerentes aos seres humanos. Dessarte, foi criado e instituído, pelo Estatuto de Roma de 1998, o Tribunal Penal Internacional (TPI), ao qual o Brasil submeteu-se à sua jurisdição por meio da Emenda Constitucional 45/2004.

A demanda a ser suprida por esta Corte consiste em limitar o uso excessivo da soberania por parte dos Estados e, principalmente, impedir que os indivíduos que praticam os crimes elencados no Estatuto se beneficiem com as demarcações de fronteiras e não efetividade dos ordenamentos penais nacionais, se esquivando das punições cabíveis às práticas ilícitas cometidas contra a humanidade.

O TPI é uma Corte permanente que possui a complementaridade como um dos princípios primordiais para o seu funcionamento, ao exercer a denominada jurisdição complementar''. Isso significa que este Tribunal é acionado quando os sistemas nacionais não efetuam o procedimento adequado e efetivo para o processamento e julgamento dos crimes previstos no Estatuto de Roma.

Contrapondo o ordenamento jurídico brasileiro, que adota o sistema civil law, o Tribunal Penal Internacional adota o caráter híbrido, utilizando-se, também, do sistema common law, fazendo surgir discussões acerca de certa incompatibilidade da jurisdição da Corte Internacional com o direito constitucional brasileiro. Estas discussões consideram a possibilidade de uma inconstitucionalidade intrínseca[1] do tratado ratificado pelo Brasil, ao que se submete à jurisdição do TPl.

O conflito acerca da eventual inconstitucionalidade da ratificação do Estatuto de Roma ainda não foi suprido, havendo, também, entendimentos no sentido de que as normas do Estatuto sejam compatíveis com as disposições presentes na Constituição Federal de 1988. O referido antagonismo, à luz da hierarquia das normas, sob a ótica do filósofo Hans Kelsen, é suprido, dentro do ordenamento jurídico interno, considerando que a Constituição Federal possui maior peso e abrangência sob as demais leis, incluindo os tratados internacionais. Outrossim, no âmbito externo se faz necessária a análise das principais controvérsias e compatibilidades desta matéria.

2. A ORIGEM DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL

A criação do Tribunal Penal Internacional, através do Estatuto de Roma, constituído durante a Conferência Diplomática de Plenipotenciários das Nações Unidas de 1998, se deu com o intuito de instituir uma Justiça Penal Internacional eficiente, capaz de repreender os crimes bárbaros praticados contra a humanidade. A preocupação com a persecução a esses crimes surgiu, principalmente, após a proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, que passou a ser apontada como o código de ética universal de direitos humanos, ocasionando uma maior atenção a esta matéria e motivando a celebração de tratados internacionais.[2]

Sob uma perspectiva histórica, observa-se a existência de duas modalidades de Tribunais Internacionais criados para julgar estes crimes, sendo a primeira denominada de Tribunais Puros, que são visíveis nos modelos adotados nos Tribunais Internacionais Militares de Nuremberg e Tóquio, nos Tribunais Internacionais ad hoc da Ex-Iugoslávia e Ruanda.

A segunda, que vem se expandindo ao redor do mundo, é denominada de Tribunal Internacional Híbrido. Este fenômeno de hibridação das jurisdições, no âmbito do direito interno e internacional, se fundamenta sob a necessidade contemporânea de compartilhar as responsabilidades judiciais em ambas as esferas.

Nesta modalidade, destaca-se os Painéis Especiais por Crimes Graves no Timor-Leste, o Tribunal Especial de Serra Leoa, A Câmara de Crimes de Guerra do Tribunal Estatal da Bósnia- Herzegovina, as Câmaras Extraordinárias do Camboja, o Tribunal Penal Supremo do Iraque, o Tribunal Especial do Líbano e os painéis Especiais do Tribunal de Kosovo[3]. O fenômeno da hibridez dos Tribunais Internacionais contemporâneos se pauta nas suas origens históricas e na maneira como foram estabelecidos, sendo que ao analisar os modos de hibridização, é possível compreender como se estabeleceu esse sistema e como será o seu futuro com a decorrente evolução.

Os Tribunais Internacionais Puros e Híbridos fizeram parte de um momento histórico mundial de retomada da garantia dos direitos humanos, processando e julgando crimes bárbaros e criando precedentes. Em sua tese de Pós-Graduação, em que analisa a contribuição dos Tribunais Híbridos no desenvolvimento do Direito Penal Internacional, Renata Montavani de Lima afirma que as próprias decisões exaradas por esses órgãos contribuíram para a progressão de conceitos do direito internacional, tornando-os amplamente reconhecidos.[4]

A partir deste momento, surge a discussão acerca da necessidade de criação de uma corte penal internacional de caráter permanente com competência para processar e julgar os crimes contra a humanidade que violam a paz e segurança mundiais. Para tanto, a Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1995, convocou dois comitês para a análise e produção de um projeto de estatuto para a criação deste Tribunal de caráter permanente. Foi discutido por estes comitês as principais questões substanciais e administrativas acerca da implementação desta Corte. Na conferência de 17 de julho de 1998, foi aprovada a criação do Tribunal Penal Internacional, com votos favoráveis de 120 Estados, 21 abstenções e 7 votos contrários, quais sejam: China, Estados Unidos, Filipinas, Índia, Israel, Sri Lanka e Turquia[5].

Portanto, cria-se o Tribunal Penal Internacional com preceitos contemporâneos, que adota em seus julgamentos a modalidade híbrida, uma vez que se utiliza da perspectiva civil law, que se baseia na livre apreciação das provas, desde que motivadas, e do common law, em que são analisados os precedentes, observando a sistemática rules of procedure and evidence.

O Estatuto do TPI entrou em vigor no dia 1° de julho de 2002, com sede em Haia, na Holanda, sendo o Brasil um dos 72 países atualmente signatários. Em decorrência da entrada em vigor da Emenda Constitucional nº 45, em 2004, o Brasil se submeteu formalmente à jurisdição do TPI, disposta no § 4º do artigo 5° da Constituição Brasileira (in verbis O Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão).

3. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL

O Tribunal Penal Internacional, conforme dispõe o artigo 5º do Estatuto de Roma, possui competência material, de caráter independente e permanente, para julgar crimes de altíssima gravidade, tais como o genocídio, os crimes contra a humanidade, os de guerra e os de agressão, todos imprescritíveis. Esses crimes constituem o chamado núcleo duro dos direitos humanos[6], uma vez que são definidos de forma clara e precisa no Estatuto, sendo vedada sua extensão através de analogia.

O crime de genocídio foi conceituado primeiramente na Resolução 260-A (III), da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1948, sendo reconhecido o seu caráter hard law[7]. No Estatuto de Roma, é definido em seu art. 6º, como a tentativa e/ou prática de atos com a intenção de destruir (física ou culturalmente), de maneira parcial ou total, um grupo definido por sua etnia, raça, práticas religiosas ou nacionalidade. Alguns atos que constituem exemplos desta modalidade de conduta criminosa são os homicídios de membros de um grupo, as ofensas graves em desfavor da integridade física ou mental de membros um determinado grupo, atitudes que tenham como intuito impedir o nascimento de indivíduo no seio do grupo, a sujeição do grupo à exposição em uma situação de risco iminente, ou, até mesmo, a transferência forçada de membros do grupo para outro.

Os crimes contra a humanidade abrangem diversas condutas determinadas no §1º do art. 7º do Estatuto de Roma, como atos de homicídio, extermínio, escravidão, deportação ou transferência forçada, tortura, prisões ilegais, crimes sexuais, perseguição de um grupo nacional, desaparecimento forçado de pessoas, apartheid ou outros atos desumanos de caráter semelhante, quando cometidos de forma generalizada ou sistemática contra um determinado grupo.

Já os crimes de guerra, conhecidos como crimes contra as leis e costumes aplicáveis em conflitos armados[8] são definidos no artigo 8º do Estatuto. O §2º do referido dispositivo exemplifica que os crimes de guerra são as violações graves às Convenções de Genebra de 1949. De forma resumida, é possível afirmar que tais crimes são aqueles praticados como parte integrante de um plano ou de uma política exercida durante um conflito armado.

Por fim, o crime de agressão, que se encontra no rol de crimes de competência do TPI, mas não possui definição disposta no Estatuto de Roma. Nos termos do artigo 5º, §2°, do Estatuto[9], será encargo da Comissão Preparatória do TPI (PrepCom), tipificar o crime de agressão para que o Tribunal possa exercer sua competência para julgar tal crime. Essa tipificação poderá ocorrer por emenda ou revisão, conforme dispõem os artigos 121[10] e 123[11] do Estatuto.

É importante destacar que o TPI não julga os Estados, apenas os indivíduos (pessoas físicas) autores das condutas criminosas previamente tipificadas. Neste contexto, o art. 29 do Estatuto de Roma prevê que os crimes de competência deste Tribunal não prescrevem, ou seja, sobre estes não incorre nenhuma espécie de renúncia da pretensão punitiva. Nota-se que o Estatuto de Roma consagra o princípio da responsabilidade penal individual por atos atentatórios ao Direito Internacional, desta forma, estes indivíduos poderão ser penalmente responsabilizados, o que configura uma conquista de suma relevância para a humanidade.

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Por ser um Tribunal permanente, sua existência é previsível e sua competência para julgar os atos se limita às condutas criminosas que sejam praticadas posteriormente à sua existência.

É certo que, embora a competência do Tribunal seja automática, incluindo todos os Estados signatários no momento de sua adesão, não basta somente a incidência dessas prévias condições para o exercício da jurisdição. Concomitantemente a tais exigências, deve haver a constatação da incapacidade ou da vontade do Estado em que ocorreu o crime, em não iniciar ou prosseguir o inquérito ou o procedimento criminal contra o infrator[12]. Uma vez que em respeito ao princípio da complementaridade, no qual o Tribunal Penal Internacional se submete, os tribunais nacionais têm prioridade no julgamento de crimes internacionais.

Neste diapasão, evidencia-se que o Brasil não promulgou a lei de implementação do Estatuto de Roma, se limitando apenas a ratificá-lo, sendo assim o Estado Democrático Brasileiro é impossibilitado de com o TPI e de exercer a jurisdição primária sobre os crimes previstos no Estatuto. Em decorrência deste fato, a jurisdição do TPI incide sobre todos os possíveis futuros casos, sempre respeitando os requisitos de admissibilidade regrados pela jurisprudência recente do TPI. Entretanto, ainda que questionáveis os desdobramentos domésticos e internacionais decorrentes da inação do Brasil, estes são imprevisíveis.

4. AS DECISÕES DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL E O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

4.1 Entraves e compatibilidades

Desde a ratificação do Estatuto de Roma pelo Estado brasileiro, através da promulgação do Decreto presidencial n° 4.388, de 25 de setembro de 2002, muito se discutiu entre juristas e doutrinadores acerca da constitucionalidade de tal Estatuto.

Sob a ótica da presente abordagem técnica, discute-se a forma pela qual o tratado internacional denominado Estatuto de Roma ingressou no ordenamento jurídico brasileiro, sendo questionável a hierarquia que ostenta este diploma no arcabouço legislativo interno. Dessarte, surgiu a controvérsia entre duas teorias, dualista e monista, que tratam acerca da integração do direito internacional no ordenamento jurídico interno de cada país. Para a teoria dualista, os direitos internacional e nacional são distintos, o que impede a ocorrência de conflitos entre eles, só podendo uma norma de Direito Internacional ser aplicada internamente com a recepção no ordenamento jurídico nacional, de forma expressa ou tácita. Assim, o tratado encontra-se entre a Constituição Federal e a Lei Ordinária. Já a teoria monista defende a composição de um sistema único, no qual não se admite que uma norma tenha validade internacional sem possuir validade interna, e vice-versa.

O direito brasileiro adotou a teoria dualista, ao prever que, para que seja ratificado, o tratado internacional deverá ser apreciado pelo Congresso Nacional e, posteriormente, promulgado pelo Presidente da República.

Surge, então, a seguinte indagação, uma vez promulgado o Estatuto de Roma, com qual status ingressará no ordenamento jurídico brasileiro?

O referido tratado tem como objeto a proteção dos direitos humanos, passando a equivaler-se às emendas constitucionais, nos termos do art. 5º, §3 da CF/1988, com a alteração implantada pela Emenda Constitucional nº 45/2004. O doutrinador Valério Mazzuoli, nesse sentido, entende que com base neste dispositivo, que segue a tendência do constitucionalismo contemporâneo, sempre defendemos que os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil têm índole e nível constitucionais, além de aplicação imediata, não podendo ser revogados por lei ordinária posterior[13].

O Supremo Tribunal Federal reconhece duas possibilidades para a introdução dos tratados internacionais no ordenamento jurídico brasileiro, sendo a primeira através de hierarquia equivalente de Emenda Constitucional, e, a segunda, por hierarquia supralegal. O Estatuto de Roma foi aprovado pelo parlamento brasileiro, por meio do Decreto Legislativo nº 112/2002 e promulgado pelo Decreto Presidencial nº 4.388/2002. Posteriormente, através da EC nº 45/2004, o STF[14] conferiu ao tratado o valor de norma supralegal, tendo em vista que o tratado internacional foi incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro no período anterior à introdução da referida emenda constitucional e, portanto, não foi aprovado nem por Decreto Legislativo, tampouco por 3/5 (três quintos) em cada casa do Congresso Nacional. Se aprovado conforme a segunda modalidade, constituiria uma Emenda Constitucional nos termos do art. 5°, §3° da Constituição Federal de 1988. Destarte, devido aos eventos legais supracitados, a Suprema Corte Federal deixou assentado que o Tratado de Roma situa-se em patamar inferior à Constituição Federal Brasileira, no entanto, superior a toda legislação infraconstitucional, possuindo, portanto, status normativo supralegal.

4.1.1 Constituição Brasileira de 1988

É inquestionável a existência do conflito aparente entre algumas regras penais e procedimentais estabelecidas pelo Estatuto de Roma e a Constituição da República Brasileira de 1988. Tais controvérsias vão além da questão da internacionalização dos tratados de direitos humanos, visto que de modo expresso no art. 5º, §4°, do texto constitucional, está previsto que o Brasil deve submeter-se à jurisdição do Tribunal Penal Internacional. Não obstante a aparente clareza da redação do dispositivo supracitado, o referido ato de submissão enseja entraves de ajustamento entre o poder inerente ao TPI e o ordenamento jurídico brasileiro.

Há institutos facultados ao TPI que apresentam certas incompatibilidades com a Constituição do país, como a entrega de nacionais, a instituição de pena perpétua, a questão das imunidades em geral, o respeito à coisa julgada e a imprescritibilidade de alguns crimes.

Em contrapartida ao que dispõe os incisos LI e LII do art. 5° da CR/88[15], que assegura aos brasileiros o direito à não-extradição, o art. 89 do Estatuto de Roma prevê que o TPI poderá solicitar ao Estado-membro a entrega de um nacional ao Estado em cujo território este estiver, para que seja detido. Contudo, o texto do próprio Estatuto distingue entrega de extradição, trazendo a seguinte definição: Artigo 102. Para os fins do presente Estatuto:

a) Por "entrega", entende-se a entrega de uma pessoa por um Estado ao Tribunal nos termos do presente Estatuto.

b) Por "extradição", entende-se a entrega de uma pessoa por um Estado a outro Estado conforme previsto em um tratado, em uma convenção ou no direito interno.

Dessa forma, com a clara distinção dos termos, nota-se que a entrega de nacionais ao TPI, não fere o direito de não-extradição, assegurado pela Constituição.

Diferentemente do que dispõe o art. 5º, inciso XLVII, alínea b, da CR/88[16], os casos que se submetem ao julgamento pelo TPI, a depender da gravidade do ato e as condições pessoais do condenado, poderá haver condenação a pena perpétua, nos termos do art. 77, alínea b, do Estatuto de Roma. Tal dispositivo legal contraria o ordenamento jurídico brasileiro, que adota a pena de caráter temporário, com base na Teoria Mista da sanção penal, que assevera a dupla função da pena, retributiva e preventiva. Assim, a pena perpétua não poderá ser aplicada internamente por se tratar de cláusula pétrea da Constituição, mas, tal pena poderá ser aplicada contra nacional em território internacional, uma vez que o STF já autorizou extradições para Estados que adotam a pena perpétua.

Quanto ao foro por prerrogativa de função, assegurado no art. 105 da CR/88 aos governadores dos estados e do Distrito Federal, nos crimes comuns, e aos membros dos Tribunais de Justiça, Tribunais Regionais Federais, Tribunais Regionais Eleitorais e do Trabalho, Tribunais e Conselhos de Contas estaduais, municipais e do DF, membros do Ministério Público da União que oficiem perante tribunais, nos crimes comuns e nos de responsabilidade, há divergência entre a norma constitucional e a internacional, uma vez que Estatuto de Roma trata da impossibilidade de tratamento diferenciado a indivíduos por exercerem função pública ou de liderança.

Neste sentido, o art. 27 do Estatuto dispõe que será aplicável de forma igual a todas as pessoas sem distinção alguma baseada na qualidade oficial. [...] As imunidades ou normas de procedimento especiais decorrentes da qualidade oficial de uma pessoa; nos termos do direito interno ou do direito internacional, não deverão obstar a que o Tribunal exerça a sua jurisdição sobre essa pessoa.. Assim, nos crimes cometidos por nacionais a serem julgados pelo TPI, aplicar-se-á o disposto no Estatuto, a fim de garantir que crimes contra a humanidade sejam devidamente processados.

Em relação a questão da coisa julgada material, disposta no inciso XXXVI do art. 5º, da CR/88[17], a norma constitucional deverá ser suprida pelo Estatuto, uma vez que a jurisdição do TPI é subsidiária à jurisdição nacional.

O §3º do art. 20 do Estatuto, assevera que O Tribunal não poderá julgar uma pessoa que já tenha sido julgada por outro tribunal, por atos também punidos pelos artigos 6o, 7o ou 8o, a menos que o processo nesse outro tribunal: a) Tenha tido por objetivo subtrair o acusado à sua responsabilidade criminal por crimes da competência do Tribunal; ou b) Não tenha sido conduzido de forma independente ou imparcial, em conformidade com as garantias de um processo eqüitativo reconhecidas pelo direito internacional, ou tenha sido conduzido de uma maneira que, no caso concreto, se revele incompatível com a intenção de submeter a pessoa à ação da justiça.

Por fim, a supracitada pretensão punitiva de imprescritibilidade, em parte, fere a Constituição Federal Brasileira, uma vez que o constituinte de forma clara define que somente dois crimes são imprescritíveis, sendo estes, o racismo e a ação de grupos armados contra a ordem constitucional e o Estado Democrático, ambos previstos no art. 5º da CR/88. Sendo assim, é possível afirmar que essa disparidade entre o entendimento do Estatuto de Roma e a Constituição Federal Brasileira, constitui um entrave na aplicabilidade da jurisdição do Tribunal Penal Internacional perante o ordenamento jurídico brasileiro.

Ademais, resta necessário pontuar que a presente análise tem por finalidade discorrer claramente sobre a temática, ainda que carente de casos fáticos para serem submetidos a um exame de equiparação e exemplificação.

4.1. 2 Legislação Penal Brasileira

Em uma breve análise histórica, verifica-se que no ano de 1940, através de decreto-lei, foi promulgado o Código Penal Brasileiro vigente e, no ano seguinte, o presidente da república à época, decretou a lei que é reconhecida como Código de Processo Penal Brasileiro. No entanto, apenas em 2002 o Estatuto de Roma foi ratificado pelo Estado brasileiro, neste sentido, a corte do Tribunal Penal Internacional, após a incorporação do Estatuto de Roma pelo ordenamento jurídico nacional, tornou-se um órgão que integra a jurisdição processual penal brasileira.

À luz do entendimento do legislador no texto do Código Penal Brasileiro, é importante discorrer sobre a temporalidade da pena que constitui um entrave entre a aplicabilidade no território nacional, das condenações regidas pelo TPI. Até o ano de 2019, o Código Penal Brasileiro estabelecia em seu art. 75, que o limite de cumprimento da pena privativa de liberdade não poderia se prolongar por mais de 30 anos, o que consistia em uma compatibilidade entre o limite máximo da pena nas condenações proferidas pelo TPI, salvo em casos de extrema gravidade, no qual é possível que o Tribunal atribua ao indivíduo a condenação à prisão perpétua.

Ocorre que com a redação trazida pela Lei 13.964 de 2019, o art. 75 do CP foi modificado, e o referido marco temporal foi estendido, passando a ser aplicado o prazo máximo de 40 anos para cumprimento efetivo das penas no Brasil.

É cediço que são proferidas sentenças condenatórias no Brasil, em que a somatória das penas ultrapassam 40 anos, assim, em razão deste fato corriqueiro é que resta estabelecido que o limite temporal citado atinge apenas o encarceramento, uma vez que para a concessão de outros benefícios, tais como livramento condicional e progressão de regime, deve ser respeitado o quantum fixado na condenação final transitada em julgado, ainda que em respeito a esta premissa o condenado tenha que se submeter ao referido limite temporal máximo, no regime fechado.

Dessa forma, nota-se que, em consonância ao texto constitucional e penal brasileiro, a pena cumprida no país não ultrapassará o limite máximo de 40 anos, independentemente de qual seja o Tribunal que proferiu a sentença condenatória.

Outra questão acerca da eficácia interna das decisões do TPI, é a possível necessidade de homologação das sentenças proferidas pela Corte para que passem a ter eficácia interna. O art. 105, inciso I, alínea i, da CR/88, assegura que compete ao Superior Tribunal de Justiça processar e julgar, originariamente, a homologação de sentenças estrangeiras e a concessão de exequatur às cartas rogatórias.

Destarte, uma vez homologada a decisão do TPI internamente pelo STJ, caberá ao Estado brasileiro processar a implementação da decisão no âmbito interno, através das chamadas leis nacionais de implementação. O processamento da decisão internacional será realizado pelo Juiz Federal de primeira instância do domicílio do acusado, nos termos do art. 109, inciso III, da CR/88, cabendo ao Ministério Público Federal intervir, quando necessário, a sua provocação.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após a análise e o confronto da redação do Estatuto de Roma, da Constituição da República do Brasil e dos Códigos Penal e Processual Penal brasileiros, é possível concluir que, apesar da existência de conflitos aparentes de normas, o ordenamento jurídico brasileiro é suscetível à jurisdição do Tribunal Penal Internacional.

Ademais, conforme bem expôs Valério Mazzuoli, os dois sistemas não se confundem, logo, as antinomias são apenas aparentes e passíveis de serem supridas com a análise do caso concreto. Assim, os entraves existentes entre o texto do Estatuto de Roma e o da Constituição da República Brasileira só seriam suprimidos se estipulado a hierarquia da executabilidade real das normas de cunho internacional e nacional.

A instituição da Corte do Tribunal Penal Internacional representa um marco histórico na proteção internacional dos direitos humanos, na manutenção da paz e na cessação da impunidade. Processar, julgar e punir os crimes bárbaros cometidos por agentes públicos, inclusive de Chefes de Estado, contra a humanidade é a importante função assumida pelo TPI, juntamente com os Estados que o ratificaram, sendo, portanto, parte indispensável na construção de uma comunidade internacional digna e plena, através da verdadeira consolidação do princípio da dignidade humana no âmbito internacional.

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Sobre as autoras
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Carolyne Isla ; BORGES, Monique Trindade. A aplicabilidade das decisões proferidas pelo Tribunal Penal Internacional perante o ordenamento jurídico brasileiro:: entraves e compatibilidades. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6717, 21 nov. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/94758. Acesso em: 28 mar. 2024.

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