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O conceito de Direito

O conceito de Direito

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Entenda o conceito de Direito, sua origem e significado, as dificuldades em defini-lo e as diferentes correntes filosóficas que o explicam.

Resumo: Este trabalho trata do problema relativo ao conceito de Direito, partindo da indicação da origem e do significado da própria palavra, passando pela exposição das principais idéias do pensamento filosófico-jurídico sobre o assunto e pelo registro de algumas considerações necessárias para a sua compreensão, para, afinal, ser concluído com a indicação de uma postura que se afigura como satisfatória.

Sumário: 1. Introdução. 2. A palavra "Direito". 3. Um enfoque simplificado do pensamento filosófico-jurídico sobre o conceito de Direito. 4. A postura céptica. 5. Da necessidade de uma definição do Direito e da ciência a quem compete essa tarefa. 6. O "porquê" das dificuldades existentes para definir o Direito. 7. O modo de conceber o Direito em diversas correntes filosóficas. 7.1. Doutrinas de orientação sociologista ou realista. 7.2. Positivismo jurídico. 7.3. Teorias jusnaturalistas. 8. Como enfrentar o problema relativo à dificuldade de conceituar o Direito. 9. Conclusão.


1. INTRODUÇÃO

Outrora Kant afirmou que os juristas ainda procuram uma definição do seu conceito de Direito. Essa constatação é, atualmente, tão acertada quanto antes, como se percebe, por exemplo, nas palavras de Pérez Luño1, enfatizando que "existem poucas questões, no âmbito dos estudos jurídicos, que hajam motivado tão amplo e, aparentemente, estéril debate como aquela que faz referência à pergunta quid ius(?), que coisa é o direito(?)". Houve quem afirmasse, sobre o conceito de Direito, que se trata de um paradigma de ambigüidade.

Não obstante, se é certo que continua sendo um problema encontrar uma definição unitária do Direito, não se pode deixar de registrar que da obstinação e inquietude metódica de muitos juristas bons frutos têm sido colhidos. Se por um lado não se logrou alcançar uma definição única e universalmente válida do Direito, por outro pôde-se encontrar fórmulas para solucionar essa problemática, sem quaisquer prejuízos para o avanço do conhecimento do Direito. Além do mais, dos estudos que têm sido desenvolvidos ao longo do tempo para a compreensão desse fenômeno, paralelamente imenso número de outras questões problemáticas da Ciência Jurídica foram melhor compreendidas ou solucionadas.

Adiante, respeitadas as limitações impostas em caráter acadêmico, apontar-se-á um panorama do tema em questão.


2. A PALAVRA "DIREITO"

Não convém iniciar uma discussão sobre o conceito de Direito, sem antes fazer pelo menos uma breve incursão na história da origem do vocábulo que qualifica o objeto de estudo, ou seja, a palavra "direito", até porque isso constitui de certo modo apontar o próprio conceito, numa de suas facetas: a gramatical. Nesse tema, são primorosos os registros de Levaggi2, conquanto se deva advertir para o fato de que existem pequenas variantes dessa sua mesma tese, a que se faz referência nas linhas seguintes.

Ensina o prestigiado mestre argentino que a palavra Direito, com o sentido jurídico atual, não foi sequer conhecida por gregos e romanos. O Direito destes últimos formou-se a partir dos mores, definidos por Ulpiano como "o tácito acordo do povo, arraigado por um largo costume." Os mores constituiam-se em condutas dos antepassados, realizadas de uma só vez. Esses antepassados foram divinizados porque tinham bondade unanimemente reconhecida (boni mores), de modo que suas condutas deviam ser respeitadas. A justiça ou injustiça dos atos das pessoas passou a ser medida, para as gerações que se seguiram, segundo sua conformidade ou desconformidade com os mores. Estes, por não estarem formulados em preceitos concretos, foi necessário determiná-los em cada caso que se apresentava.

Os pontífices já discerniam, primitivamente, quando um mos não era lesivo a outro homem, ou seja, quando era jurídico (ius est). O mesmo fizeram os juízes e prudentes, desde a Lei das XII Tábuas, pois, cabia-lhes "descobrir" a solução justa que estava contida nos dados de cada situação litigiosa. Porque as declaração desses julgadores eram válidas para todos os atos semelhantes que ocorriam na cidade, o ius adquiriu valor normativo, tornando-se o ius da cidade, ou seja, o ius civile.

Ius é uma palavra que provém do índio-irânio yaus, que significa "o ótimo" ou "o máximo", com relação a uma coisa ou pessoa. A lei (lex) tem uma origem distinta. Era a norma imposta pelo povo reunido em comícios ou por um magistrado. A Lei das XII Tábuas (450 a.C.) quebrou o monopólio da criação do Direito que tinham os pontífices (Patrícios) e deu lugar à aparição da nova fonte do Direito. Essa diferença entre ius e lex subsistiu durante a fase do Império em Roma.

Conclui, assim, o referido mestre, que a palavra "direito" não procede do Direito romano. Foi ela introduzida no vocabulário jurídico pelo Direito canônico, que a tomou da cultura judia-cristã. Tanto a lei de Moisés como a lei de Cristo dirigiam a conduta pelo reto caminho (directum). Por extensão, se aplicou esse vocábulo à norma jurídica. Antes de ser aceito pela língua erudita, se usou na fala popular para nomear o Direito consuetudinário. Desse modo foi como ius e direito se converteram em sinônimos.

Ao se formarem as línguas latinas, conservou-se a voz "direito" para designar o ordenamento jurídico. Ius desapareceu, porque expressava um ato de declaração que não se realizava mais. Em troca, mantiveram a vigência seus derivados: o ato de declarar ou constituir o Direito em juízo (iudicare = julgar), quem o fazia (iudex = juiz), a faculdade de fazê-lo (iurisdictio = jurisdição).

Como sinônimo de direito se empregou, em cada época, a palavra que expressou a forma habitual de estabelecê-lo: foro, costume, lei.


3. UM ENFOQUE SIMPLIFICADO DO PENSAMENTO FILOSÓFICO-JURÍDICO SOBRE O CONCEITO DE DIREITO

Gusmão3 aponta que o pensamento filosófico-jurídico em torno do conceito de Direito manteve-se em duas correntes antagônicas: a dos que admitem um conceito universal do Direito e a dos que consideram impossível estabelecer-se tal conceito.

Entre os que acham possível existir um conceito de Direito comum a todos os Direitos não há acordo, sendo longa a disputa entre Idealistas e Positivistas. Essa disputa corresponde àquela mesma luta histórica da Filosofia, dos que afirmam que se deve contemplar a realidade fora de nós, sendo a Filosofia "conhecimento do mundo", com os que propugnam pela consideração da realidade em nós, sendo a Filosofia "o conhecimento de nós mesmos".

Dentro da corrente dos que admitem um conceito de Direito comum a todos os Direitos, os denominados Idealistas - que são também conhecidos como Neokantianos (os mais recentes) e Criticistas - , consideram que a experiência jurídica só seria possível com o auxílio do conceito a priori, pois há uma transcendência, lógica, do conceito à experiência jurídica, como condição do conhecimento jurídico. Assim, a experiência jurídica só seria possível com o auxílio desse conceito a priori. Concluem os Neokantianos, por isso, que o conceito de Direito está em nós, devendo ser deduzido pela razão, sem o concurso da experiência. Por sua vez, os Positivistas sustentam que o conceito de Direito seria obtido indutivamente, através de generalizações dos dados fornecidos pela experiência jurídica. Daí ser o conceito do Direito estabelecido a posteriori em relação à experiência. Stamler e Del Vecchio objetaram essa tese, afirmando que não se poderia reconhecer o Direito entre os demais fenômenos, se não tivéssemos em mente um critério do Direito, indispensável para selecionar o fenômeno jurídico dos demais fenômenos históricos.

Na corrente dos que negam a possibilidade de existência de um conceito de Direito comum a todos os Direitos há os Céticos e os Agnósticos. Os Céticos não admitem constantes no fenômeno jurídico, em face da multiplicidade e variabilidade dos dados fornecidos pela experiência jurídica; daí não ser viável a elaboração de um conceito de Direito com validade para todos os Direitos. Os Agnósticos, sem admitir a viabilidade do exame filosófico do Direito, só aceitam a possibilidade de se estabelecer deste um conceito empírico, convindo, assim, a um determinado sistema positivo.


4. A POSTURA CÉPTICA

Sempre existiu quem negasse a possibilidade de fundamentar o Direito, afirmando que este não tem qualquer fundamento intrínseco, mas exprime apenas a autoridade e a força. Exemplos bastante remotos podem ser citados em ARCHELAU, filósofo da Escola Jônica, discípulo de ANAXÁGORAS, afirmando que "o Direito não existe por natureza, mas apenas por virtude da lei"; entre os Sofistas, TRASÍMACO afirmou que "a Justiça é o que ao mais forte convém".

A filosofia dos cépticos provém da Escola Céptica, fundada por PIRRON. Essa Escola aconselhava a suspensão de todo o juízo em torno do conceito de Direito e se baseava nas instituições, costumes e leis discordantes entre si. Inferia ser impossível afirmar que algo fosse verdadeiramente justo ou injusto em si, sem primeiro atender a uma lei, costume ou instituição. Os cépticos utilizaram como argumento para demonstrar a impossibilidade do conhecimento in generi do Direito o argumento que foi o favorito utilizado pelos Sofistas no combate à autoridade da lei: a instabilidade e arbitrariedade do Direito positivo.

Em suma, pode-se dizer que o movimento céptico se baseou na consideração de que cada povo, em cada época, determina o que é o Direito segundo o seu modo próprio. Significa que a história não nos pode apresentar o Direito - apenas nos indica os "Direitos" correspondentes aos sistemas jurídicos positivos e aos seus diversos momentos de desenvolvimento.

Giorgio Del Vecchio4 dá conta de que o cepticismo foi retomado mais tarde pela Segunda e pela Terceira Academias, embora atenuada a radicalidade que assumira como "pirronismo". Exemplificando as posições dos cépticos, o referido autor cita a conhecida perturbação proporcionada em Roma pela dialética de CARNÉADES DE CIRENE, que era embaixador da Grécia, ao sustentar que o critério do justo não se funda na natureza; bem assim, o mesmo pensamento, formulado pelos modernos cépticos franceses dos séculos XVI e XVII, dentre os quais MONTAIGNE, que dizia: "que bondade será essa, que da banda de lá do rio é delito (?)"; e PASCAL: "três graus de latitude revogam toda uma jurisprudência".

O mesmo Del Vecchio5, invocando célebre argumento de DESCARTES (se eu duvido, enquanto duvido, penso), adverte e sentencia, por fim, que embora reapareça periodicamente, a negação céptica representa apenas fase transitória do pensamento; não pode o cepticismo aquietar o espírito humano, pois este encontra, na consciência que de si mesmo tem, a prova irrecusável e peremptória de uma existência e cognoscibilidade.


5. DA NECESSIDADE DE UMA DEFINIÇÃO DO DIREITO E DA CIÊNCIA A QUEM COMPETE ESSA TAREFA

Segundo Del Vecchio6, se a noção comum e vaga de Direito pode às vezes bastar para certos fins particulares, é contudo insuficiente para os fins superiores do conhecimento. As manifestações vulgares da atividade jurídica são facilmente reconhecidas por todos, porém, frente aos problemas mais elevados e gerais, quando se trata de situar a idéia do Direito na ordem do saber, de determinar-lhe os elementos essenciais, de distingui-la de outros objetos e categorias afins, surgem dúvidas e dificuldades que a noção vulgar é impotente para resolver.

A solução de tais problemas requer uma investigação que não pode ser feita por nenhuma ciência jurídica stricto sensu, isto é, do Direito positivo, porque cada uma destas ciências tem por objeto só uma parte da realidade jurídica, enquanto que a definição lógica deve abranger todos os sistemas jurídicos, inclusive os não positivos; isto é: indicar o limite de toda a possível experiência jurídica.

Nesse mesmo diapasão, Hadbruch7 explica que a Ciência do Direito, repetidas vezes, já tem tentado captar por via indutiva um conceito de Direito, procurando extraí-lo dos próprios fatos ou fenômenos jurídicos, salientando que é fundamentalmente possível chegar, por meio do confronto de diferentes fenômenos desta natureza, a determinar o conceito que lhes está a todos na base; o que não é possível é fundamentá-lo.

Esse pensamento é também o de Recasens Siches8, para quem o esclarecimento do conceito essencial ou universal do Direito não pode ser subministrado pela Ciência Jurídica, em sentido estrito, porque esta versa sobre os vários ramos concretos do Direito positivo e, portanto, considera as especialidades que cada um destes oferece, é dizer, dá conta e razão do que o Direito civil tem de civil, do que o penal tem de penal, das concreções singulares do Direito mexicano, das próprias do Direito argentino, etc. E segue o renomado jusfilósofo, esclarecendo que seria enganoso supor que este conceito geral ou essencial possa ser fundado por via de comparação indutiva dos dados dos múltiplos Direitos conhecidos. Tal fundamentação resultaria injustificada logicamente por duas razões. Em primeiro lugar, porque esse procedimento de indução requereria revolver previamente o campo da experiência jurídica, sobre o qual haveria de exercer-se a comparação e a generalização; mas cabalmente este deslinde do campo da experiência jurídica, precisa, na estrutura lógica ou objetiva do conhecimento, que se disponha previamente do conceito geral ou essencial do Direito, graças ao qual se possa delimitar com rigor a área própria de dita experiência jurídica. Assim, resulta que para levar a cabo o procedimento de indução, com vistas a conseguir mediante ele a essência do jurídico, seria necessário ter de antemão essa noção essencial ou universal, que é precisamente a que se trataria de encontrar. Em segundo lugar, aquela suposta via indutiva para lograr o conceito essencial ou universal do Direito resultaria também impossível, necessariamente frustrada, por outra razão, a saber: porque o que se busca é uma noção absolutamente universal; e ocorre que o que se patenteia em cada um desses ramos concretos da Jurisprudência dogmática é tão-só a série de singularidades ou especialidades que oferecem os conteúdos jurídicos de cada um deles.

Conseqüentemente, para obter a noção universal ou essencial do jurídico, precisa uma indagação de outro tipo diverso do que é característico das ciências jurídicas, a saber: urge uma indagação de caráter filosófico, tarefa da Filosofia do Direito.


6. O PORQUÊ DAS DIFICULDADES EXISTENTES PARA DEFINIR O DIREITO

É bem pertinente a observação de Hart9, segundo a qual há um estranho contraste entre o debate teórico infindável para encontrar a definição do Direito, e a aptidão com que a maior parte dos homens cita, com facilidade e confiança, exemplos de Direito, se tal lhes for pedido. De fato, praticamente toda pessoa é capaz de citar vários exemplos de significados para o Direito.

Exsurge daí uma perplexidade, pois, se praticamente todas as manifestações do Direito são do conhecimento comum, como é que a questão "O que é o Direito(?)" tem persistido e lhe têm sido dadas tantas respostas?

Pérez Luño10, enfatizando que no nosso tempo continuam tendo valor as considerações de Kant sobre a dificuldade que entranha o levantamento de uma definição do Direito, é ao mesmo tempo otimista, considerando que não há por que desprender conclusões melancólicas a propósito da esterilidade do trabalho dos juristas na sua secular tentativa de circunscrever o objeto de seu próprio estudo. Citando exemplo dado por Hart, evidencia que é provável que um médico, ou um químico, não se houvessem em menos dificuldades do que um jurista, se se lhes exigisse sua definição da medicina ou da química, sendo possível que suas respostas fossem diversas, segundo o ângulo de que observassem o fenômeno a definir. Entende, assim, que a dificuldade de definir o Direito é, de uma parte, um problema de diversidade de perspectivas de enfoque a partir das quais se lhe contempla. Conclui, desse modo, que as diferentes definições que ao longo da história se tem dado ao Direito não são outra coisa senão a revelação de distintas formas de conceber a ordem social, seu fundamento e seus fins.

Mas - ainda na trilha do referido autor -, há que se ter presente que a variedade de definições que se pode dar a uma realidade determinada depende necessariamente de uma mudança na própria realidade objeto da definição. E essa complexa e multiforme realidade que denominamos "Direito" sempre esteve sujeita a sensíveis mutações ao largo dos tempos, o que também dificulta a adoção de uma definição unitária do Direito. Portanto, a dificuldade de definir o Direito é, ao lado do problema das diferentes perspectivas por que se lhe pode contemplar, também uma conseqüência da sua permanente mutabilidade.

Santiago Nino11 nos aponta, conforme expomos nas linhas seguintes, dificuldades também de mais quatro ordens para definir o Direito, a saber: é um problema de concepção sobre a relação entre a linguagem e a realidade; a palavra "direito" é ambígua, tendo a pior espécie de ambigüidade; a expressão "direito" é vaga; e a palavra "direito" tem carga emotiva.

A adesão a uma certa concepção sobre a relação entre a linguagem e a realidade faz com que não se tenha uma idéia clara sobre os pressupostos, as técnicas e as conseqüências que se devem ter em conta quando se define uma expressão lingüística, no caso, "direito". No pensamento teórico, especialmente no jurídico, tem alguma vigência a concepção platónica a respeito da relação entre a linguagem e a realidade. Acredita-se que os conceitos refletem uma presuntiva essência das coisas e que as palavras são veículos dos conceitos.

Para essa espécie de concepção, a quem Kantorowicz12 atribuiu a denominação de "realismo verbal", existe somente uma definição válida para uma palavra, obtendo-se essa definição mediante intuição intelectual da natureza intrínseca dos fenômenos denotados pela expressão, de modo que a tarefa de definir um termo é, em conseqüência, descritiva de certos fatos. Quase toda a Jurisprudência (a Ciência do Direito) medieval e oriental, e inclusive a moderna, tem acreditado que entre o nome de uma coisa - objeto do pensamento - e a coisa nomeada existe um nexo metafísico que seria perigoso e sacrílego desconhecer.

Ao realismo verbal se opõe a concepção "convencionalista" da relação entre a linguagem e a realidade, defendida pela chamada "filosofia analítica". Os filósofos analíticos supõem que a relação entre a linguagem - que é um sinal de símbolos - e a realidade tem sido estabelecida arbitrariamente pelos homens e, ainda, que mesmo havendo um acordo consuetudinário ao nomear certas coisas com determinados símbolos, ninguém está constrangido, nem por razões lógicas, nem por fatores empíricos, a seguir os usos vigentes, podendo eleger qualquer símbolo para fazer referência a qualquer classe de coisas e podendo formar as classes de coisas que lhe resultem convenientes. Para a análise filosófica as coisas só têm propriedades essenciais na medida em que os homens façam delas condições necessárias para o uso de uma palavra; decisão que, naturalmente, pode variar. Assim, quando nos enfrentamos com uma palavra como, por exemplo, "direito", temos que lhe dar algum significado se pretendemos descrever os fenômenos denotados por ela, pois não é possível descrever, por exemplo, o direito argentino, sem saber o que "direito" significa.

Sobre a ambigüidade da palavra "direito", observa-se que ela tem vários significados relacionados estreitamente entre si, o que a torna de uma ambigüidade da pior espécie. Veja-se as seguintes frases: "O Direito brasileiro não prevê a pena de morte"; "Tenho direito a dispor de meus bens"; e "O direito é uma disciplina complexa". Na primeira frase, direito significa o que se chama "direito objetivo", ou seja, o ordenamento jurídico; na segunda, significa "direito subjetivo", o mesmo que faculdade; e na terceira frase, a palavra direito refere-se à investigação, ao estudo da realidade jurídica que, inclusive, tem como objeto o direito nos dois sentidos anteriores.

No que concerne à afirmação de que a expressão "direito" é vaga, para demonstrá-la basta dizer que não é possível enunciar, tendo em conta o uso ordinário, propriedades que devem estar presentes em todos os casos em que se usa essa palavra. Alguns pretendem que a coatividade é uma propriedade que na linguagem corrente se exige em todos os casos do uso de "direito", mas há setores da realidade jurídica que não consideram relevante essa propriedade; outros setores propõem como propriedade necessária do conceito de Direito que se trate de diretivas promulgadas por uma autoridade, mas, nesse caso, têm que se esquecer dos costumes, que não apresentam tal propriedade etc.

Por fim, quanto à carga emotiva, é de se ter em mente que as palavras, além de servirem para referir-se a coisas ou fatos e designar propriedades, também servem, às vezes, para expressar emoções e provocá-las nos demais. Há inclusive palavras que só têm esta última função, como, por exemplo, "ai" (para expressar um sentimento de dor) ou "hurra" (para expressar um susto ou emoção); outras com significado tanto descritivo como emotivo (como "democracia" e "bastardo") e outras só com significado cognoscitivo (como "quadrado" e "caneta"). Direito é uma palavra com significado emotivo favorável, pois, nomear com esta palavra uma ordem social implica condecorá-la com um rótulo honorífico e reunir ao redor dela as atitudes de adesão das pessoas. E quando a palavra tem carga emotiva, fica prejudicado o seu significado cognoscitivo, uma vez que as pessoas estendem ou restringem o uso do termo para abarcar com ele ou deixar de fora de sua denotação os fenômenos que apreciam ou rechaçam, segundo seja o significado emotivo favorável ou desfavorável. Para dar apenas um exemplo prático da imprecisão que isso provoca no campo de referência da expressão, basta citar a velha polêmica entre jusnaturalistas e positivistas em torno do conceito de direito.

Não é digna de aprovação, portanto, grande parte das polêmicas entre juristas empenhados em impor absolutamente sua visão do Direito, porque este, como visto, se trata de uma realidade que, sendo única, assume em sua plenitude uma pluralidade de dimensões.


7. O MODO DE CONCEBER O DIREITO EM DIVERSAS CORRENTES FILOSÓFICAS

Conforme já foi exposto, são inúmeros os fatores que contribuem para dificultar o alcance de um conceito universal do Direito, dentre eles a diversidade de perspectivas de enfoque a partir das quais se contempla o fenômeno jurídico. Pois bem, essas diferentes perspectivas de concepção do Direito deram ensejo ao estabelecimento, durante séculos, de polêmicas entre aqueles que, de forma unilateral e reducionista, pretendem oferecer uma concepção geral do Direito em função de algum de seus componentes.

Apesar de serem muitas as doutrinas que se ocuparam e ocupam do tema em exame, podem elas ser reduzidas nos três grupos seguintes:

7.1. Doutrinas de orientação sociologista ou realista

Estas doutrinas circunscrevem o Direito às ações humanas tendentes à sua criação ou aplicação. Dentre elas, pode-se citar: a) a Escola Histórica, que concebe Direito como o espírito popular (este é sua força criadora); b) a Jurisprudência de Interesses, que reduz o Direito aos interesses sociais que o inspiram a cuja garantia serve; c) a Escola do Direito Livre, o Realismo Americano e o Escandinavo etc., que pretendem ver como Direito apenas no caráter criador das sentenças judiciais. Todas essas concepções - sociologistas ou realistas - têm como elemento comum a circunstância de privilegiar a consideração do Direito eficaz, enquanto dotado de vigência social comprovada através de sua relevância nos comportamentos reais dos homens, que constituem o chamado "Direito Vivo" (Ehrlich). 13

7.2 Positivismo Jurídico

Para esta doutrina, o Direito se identifica com as normas ou sistemas normativos, enquanto regras postas por quem detenha o poder em uma determinada sociedade e trata de impô-las coativamente nesse âmbito. Por essa perspectiva, o traço caracterizador do Direito é a nota de sua validade. Uma norma é jurídica se, e somente se, cumpre os requisitos procedimentais previstos no próprio sistema normativo para a produção de normas.

Integram o Positivismo Jurídico, dentre outras, as Teorias do Cepticismo e do Realismo Empírico; o Positivismo Ideológico, o Formalismo Jurídico e o Positivismo Metodológico ou Conceitual.

Segundo o Cepticismo (já visto particularmente no item "4", retro, dada sua íntima relação com o tema em exame), o Direito é comando arbitrário, inteiramente relativo, privado de autoridade intrínseca. Essa concepção está tratada aqui porque, para muitos juristas, essa tese - segundo a qual não existem princípios morais e de justiça universalmente válidos e cognoscíveis por meios racionais e objetivos - se identifica com o positivismo14.

Enfim, pela doutrina céptica, qualquer que seja a forma que ela assuma (concebendo que o Direito carece de fundamento intrínseco, ou que consiste em um comando arbitrário etc.), o seu significado é sempre negativo. Os seus partidários recusam-se a aceitar um critério universal e absoluto de justiça superior ao fato do Direito positivo.

Não é muito diferente a concepção realista, cuja doutrina, aparentemente oposta à céptica, desta na verdade se aproxima. O cepticismo e o realismo, independentemente dos pressupostos de que partem, possuem o mesmo significado. HOBBES, que se pode dizer realista, tende para uma construção positiva, afirmando que só o Estado pode determinar o justo e o injusto, e que o Direito começa só com o Estado. No mesmo sentido se orienta a doutrina de KIRCHMANN, considerado uma das mais típicas expressões do realismo. Para as doutrinas realistas, portanto, o fundamento do Direito é o sentimento do respeito e acatamento da autoridade constituída. Não admitem esses pensadores a existência de um ideal de justiça válido em si e por si. Por isso, igualmente rejeitam a possibilidade de o indivíduo contrapor as suas especulações racionalistas aos critérios da autoridade constituída.

Por sua vez, a corrente, que Alf Ross chama de "pseudopositivismo" e que recebeu de Norberto Bobbio15 a denominação de "Positivismo Ideológico", concebe o Direito como conjunto de regras impostas pelo poder que exerce o monopólio da força de uma determinada sociedade. Esse Direito, com sua própria existência, independentemente do valor moral de suas regras, serve para a obtenção de certos fins desejáveis como a ordem, a paz, a certeza e, em geral, a justiça legal.

Para o positivismo ideológico, o Direito positivo, tão-só pelo fato de ser positivo, isto é, a emanação da vontade dominante, é justo; ou seja, o critério para julgar a justiça ou injustiça das leis coincide perfeitamente com o que se adota para julgar sua validade ou invalidade. Pretende esse positivismo que os juízes assumam uma posição moralmente neutra e que se limitem a decidir segundo o direito vigente.

Já em consonância com o "Formalismo Jurídico", o Direito está composto exclusiva ou predominantemente por preceitos legislativos, ou seja, por normas promulgadas explícita e deliberadamente por órgãos centralizados, e não, por exemplo, por normas consuetudinárias ou jurisprudenciais. Pressupõe tal corrente que a ordem jurídica é um sistema autosuficiente para prover a solução unívoca para qualquer caso concebível. Assim, o Direito consistiria somente em leis.

Finalmente, o "Positivismo Metodológico" ou "Conceitual". Trata-se aqui do tipo de positivismo defendido por autores como Bentham, Austin, Hart, Ross, Kelsen, Bobbio e outros, de acordo com o qual o conceito de Direito não deve caracterizar-se segundo propriedades valorativas, mas sim tomando em conta propriedades descritivas.

Para citar exemplos, veja-se Austin, Hart (ambos considerados por alguns como fundadores da moderna Teoria Geral do Direito inglesa) e Kelsen. Para todos eles, o Direito se reduz a ordens (normas). John Austin concebe o Direito em normas baseadas em ameaça, normas jurídicas consistentes em ordens (comands) emanadas do soberano; e Hart, posteriormente, adere ao seu positivismo, mas não admite a redução regras de toda sorte a um só tipo (as emanadas do soberano). Para Hart, o sistema que formam as regras jurídicas é identificado sobre a base de certos usos ou práticas sociais. Kelsen, por outro lado, vê a norma como um juízo hipotético que expressa o enlace específico (imputação) de uma situação de fato condicionante com uma conseqüência condicionada.

7.3. Teorias Jusnaturalistas

Os que são desta vertente polarizam sua visão do Direito nos valores que o fundamentam ou o legitimam e a cuja consecução se deve encaminhar. O valor da justiça (entendido em um sentido amplo que, a teor das tendências doutrinais ou das circunstâncias, expressará as exigências do ethos social, do bem comum ou dos direitos humanos) constitui, para essa corrente, o norte de toda regra jurídica e o parâmetro para aferir sua correção.

Dentro dessa corrente se inserem várias vertentes: a Teoria do Teologismo, o Jusnaturalismo Racionalista, a Teoria do Historicismo (também conhecida como Realismo Empírico) e a Teoria da Natureza das Coisas.

A Teoria do Teologismo procurou encontrar o fundamento intrínseco do Direito por via diferente: recorreu à idéia da divindade, da qual derivariam imediatamente os princípios do bom e do justo, que deviam ser aceitos mediante a Revelação. O fundamento do Direito teria, portanto, caráter sagrado e, por isso, estaria subtraído a quaisquer controvérsias. O Direito seria, enfim, o Direito revelado. Por tal concepção, na sua versão originária, o próprio Estado teria uma autoridade derivada do querer divino e, por isso, também possuiria caráter sagrado.

Cuidadosamente, para não se debater contra a fé religiosa, o espírito crítico tratou logo de distinguir da Religião tanto a Filosofia como a Ciência, a fim de lhes assegurar a independência. O mesmo se deu no terreno da Filosofia do Direito, sendo dignas de destaque as palavras de GRÓCIO, na sua obra De iure belli ac pacis, de 1625, afirmando que "O Direito natural existiria ainda que Deus não existisse". É claro que Grócio fez tal afirmação depois de uma prévia reprovação explícita do ateísmo, de molde a evidenciar que não se propunha a combater a fé religiosa, mas tão-só dar ao Direito fundamento exclusivamente racional, independente das premissas teológicas. Grócio visava a construir um sistema de Direito internacional de normas aplicáveis aos diversos Estados e não fazia sentido basear esse Direito na religião, que, na sua época, era motivo de lutas e discórdias especialmente entre católicos e protestantes.

O Jusnaturalismo Racionalista se originou no movimento iluminista e se estendeu pela Europa nos séculos XVII e XVIII, tendo sido exposto por filósofos como SPINOZA, PUFENDORF, WOLFF e KANT. De acordo com esta concepção, o Direito natural não deriva dos mandatos de Deus, mas sim da natureza ou estrutura da razão humana. Os juristas do racionalismo formularam detalhados sistemas de Direito natural, cujas normas básicas, das quais se inferiam logicamente as restantes, constituiam supostos axiomas autoevidentes para a razão humana, comparáveis aos axiomas dos sistemas matemáticos. Os pressupostos e métodos dessa corrente influíram na configuração da chamada "dogmática jurídica", que é a modalidade da ciência do Direito que prevalece nos países de tradição continental européia.

A Teoria do Historicismo se distingue em três correntes: a política, dos filósofos da restauração (De Bonald, De Maistre, Haller e outros); a filosófica (Schelling a Hegel); e a jurídica, que ficou conhecida como Escola Histórica, representada por Savigny, Puchta, Hugo e outros. O historicismo encara o fundamento do Direito na sua qualidade de fato ou processo coletivo, como produto da vida social.

Por fim, de acordo com a Teoria da Natureza das Coisas, que foi defendida por RADBRUCH, DIETZE, MAIHOFER, WELZEL e outros, certos aspectos da realidade possuem força normativa e constituem uma fonte de Direito à qual deve adequar-se o Direito positivo. Trata-se de uma reação mais recente contra o positivismo, para um retorno ao jusnaturalismo. Gustavo Radbruch propõe a "natureza das coisas" como fundamento da "progressiva transformação de uma relação vital em uma relação jurídica, e de uma relação jurídica em uma instituição jurídica." Esta instituição jurídica que deriva não do Direito positivo, mas sim dos fatos da natureza, dos costumes, tradições ou usos ou das relações vitais, é uma espécie de "tipo ideal" que se obtém "mediante a tipificação e a idealização da individualidade da relação vital que se considera." Esta "natureza das coisas" não é diretamente uma fonte do Direito, mas sim "atenua" a tensão entre o ser e o dever ser, estabelece um limite ao legislador enquanto este não pode obrigar a ninguém a algo de cumprimento impossível além de cumprir um importente papel supletório nos casos de lacunas da regulação jurídica. 16


8. COMO ENFRENTAR O PROBLEMA RELATIVO À DIFICULDADE DE CONCEITUAR O DIREITO

O próprio Herbert Hart, em livro totalmente dedicado ao tema ora debatido - aliás, intitulado especialmente de "O Conceito de Direito" -, num certo trecho17, afirma o seguinte:

"Em vários pontos deste livro encontrará o leitor discussões de casos de fronteira em que os teorizadores do direito sentiram dúvidas na aplicação da expressão ‘direito’ ou ‘sistema jurídico’, mas a resolução sugerida para tais dúvidas, que também encontrará aqui, constitui apenas uma preocupação secundária do livro. Porque o seu objetivo não é fornecer uma definição do direito, no sentido de uma regra por referência à qual pode ser testada a correção do uso da palavra; é antes de fazer avançar a teoria jurídica, facultando uma análise melhorada da estrutura definitiva de um sistema jurídico interno e fornecendo uma melhor compreensão das semelhanças e diferenças entre o direito, a coerção e a moral, enquanto tipos de fenômenos sociais. O conjunto de elementos identificados no decurso da discussão crítica dos próximos três capítulos e descritos em detalhe nos capítulos V e VI serve este propósito através de formas que são demonstradas no resto do livro. É por esta razão que são tratados como os elementos centrais no conceito de direito e de primeira importância na sua dilucidação." (Destaques inexistentes no original).

Tal como Hart, muitos outros autores escreveram livros ou dedicaram capítulos de obras suas ao tema "Conceito de Direito" (ou quid ius?), mas, como ele, não se debruçaram na luta desvairada por encontrar uma definição única que abranja toda e qualquer manifestação do fenômeno jurídico. Significa essa postura uma manifestação de que já é tranqüila a compreensão de que o fenômeno do Direito não pode ser sintetizado em um conceito reduzido, válido para todos os tempos, para todos os lugares e para todas as manifestações de tal fenômeno.

Indagar um conceito de Direito implicará, sempre, em buscar compreender muitas questões às quais o tema inarredavelmente conduz e verificar a relação que elas guardam entre si. Quando muito, se poderá identificar e reduzir as inúmeras questões recorrentes a um mínimo dentre elas (às de incidência mais freqüente), em direção às quais o exame do tema sempre conduz, a fim de que se possa estudá-las particularmente. Estudar tais questões passa a ser o mesmo que estudar o conceito de Direito.

O mesmo Hart18, por exemplo, sustenta que "a especulação sobre a natureza do direito tem uma história longa e complicada; todavia, vista em retrospectiva, é nítido que se centrou quase continuamente sobre alguns pontos principais (...)", que são, segundo o referido autor, "aspectos do direito que parecem naturalmente dar origem a incompreensões em todos os tempos, de tal forma que a confusão e uma necessidade conseqüente de maior clareza acerca deles podem coexistir mesmo nos homens avisados, dotados de firme maestria e conhecimento do direito."

Em outro trecho, o mesmo autor19 aponta três das principais questões que, sempre surgindo juntas, aparecem com se fossem um autêntico pedido de definição do Direito: 1ª) Como difere o direito de ordens baseadas em ameaças? 2ª) Como difere a obrigação jurídica da obrigação moral e como está relacionada com esta? 3ª) O que são regras e em que medida é o direito uma questão de regras?

Portanto, perseguir um conceito de Direito equivale exatamente a procurar resposta para questões como essas, referidas por Hart.

Logo, a postura recomendável diante de um conceito tão variável como o de Direito, parece que é aquela sugerida por muitos autores, e bem expressada por Santiago Nino20, de aceitar que há certas razões de peso em favor de várias das posições adotadas a respeito da definição de "direito" e que eleger alguma destas posições não implica tomar partido por uma questão filosófica profunda, mas sim por uma mera questão verbal.

Uma controvérsia sobre o significado que tem ou que se deve dar a certa palavra não representa - uma vez identificada como tal - nenhum obstáculo para o progresso das idéias. Mesmo que as partes não se ponham de acordo, elas podem entender-se perfeitamente se procurarem distinguir cuidadosamente o significado diferente que pretendem dar à palavra mencionada e se procurarem traduzir da linguagem da sua corrente, para a linguagem da outra corrente, o significado daquilo a que se referem.

Desse modo, ao se pretender reportar ao Direito como lei, o melhor é que se use a locução Direito Positivo; ao referir-se ao Direito como Revelação, convém expressar Direito Natural de Origem Divina; desejando mencionar o Direito no seu sentido de faculdade, o ideal é que se use a locução Direito Subjetivo; e assim por diante.


9. CONCLUSÃO

Direito, portanto, é tudo o que defende cada uma das correntes da Filosofia do Direito antes referidas, mas, certamente se lhe aplicam outras infindáveis definições, tantas quantas forem as perspectivas a partir das quais se lhe examine. Por isso, não se pode rechaçar - ou apoiar - completamente nenhuma posição. Em tais circunstâncias, até mesmo a atitude céptica deve ser encarada como um modo de "conceituar"o Direito.

A constatação acima, de modo algum impedirá o avanço dos estudos do Direito, ao revés, o fomentará, pois, é da própria natureza humana não se acomodar diante de respostas inacabadas frente a assuntos tão palpitantes como o Direito.

Diante de tais circunstâncias, parece bem pertinente citar agora, à guisa de conclusão, um tipo diferente de resposta - certamente apenas mais uma entre tantas, porém, bem mais "universal" - à pergunta "quid ius(?)", proposta por Dworkin21. Este jusfilósofo é inglês e, obviamente, examina sobretudo o sistema jurídico desse povo, porém, sua resposta à pergunta sobre o que é o Direito aplica-se, perfeitamente, também a povos que adotem quaisquer sistemas jurídicos. Eis a resposta:

"O direito não é esgotado por nenhum catálogo de regras ou princípios, cada qual com seu próprio domínio sobre uma diferente esfera de comportmentos. Tampouco por alguma lista de autoridades com seus poderes sobre parte de nossas vidas. O império do direito é definido pela atitude, não pelo território, o poder ou o processo. Estudamos essa atitude principalmente em ribunais de apelação, onde ela está disposta para a inspeção, mas deve ser onipresente em nossas vidas comuns se for para servir-nos bem, inclusive nos tribunais. É uma atitude interpretativa e auto-reflexiva, dirigida à política no mais amplo sentido. É uma atitude contestadora que torna todo cidadão responsável por imaginar quais são os compromissos públicos de sua sociedade com os princípios, e o que tais compromissos exigem em cada nova circunstância. O caráter contestador do direito é confirmado, assim como é reconhecido o papel criativo das decisões privadas, pela retrospectiva da natureza judiciosa das decisões tomadas pelos tribunais, e também pelo pressuposto regulador de que, ainda que os juízes devam sempre ter a última palavra, sua palavra não será a melhor por essa razão. A atitude do direito é construtiva: sua finalidade, no espírito interpretativo, é colocar o princípio acima da prática para mostrar o melhor caminho para um futuro melhor, mantendo a boa-fé com relação ao passado. É, por último, uma atitude fraterna, uma expressão de como somos unidos pela comunidade apesar de divididos por nossos projetos, interesses e convicções. Isto é, de qualquer forma, o que o direito representa para nós: para as pessoas que queremos ser e para a comunidade que pretendemos ter."


NOTAS

  1. Teoría del derecho, p. 27.

  2. Manual de historia del derecho argentino, pp. 257-258.

  3. Filosofia do Direito, pp. 67-80.

  4. Lições de Filosofia do Direito, p.333.

  5. Idem, ibidem.

  6. Op. Cit., p. 331.

  7. Filosofia do Direito, p.85.

  8. Filosofía del Derecho, pp. 11-12.

  9. O Conceito de Direito, p. 7.

  10. Teoría del derecho, pp. 27-28.

  11. Introducción al análisis del Derecho, pp. 11-16.

  12. Apud Santiago Nino, Introducción al Análisis del Derecho, p. 12.

  13. Cfr. Pérez Luño, op. Cit., p. 43.

  14. Santiago Nino (In: op. Cit., p. 31) afirma que não é correto identificar o positivismo jurídico com o cepticismo ético, dando o exemplo do positivista contemporâneo H.L.A. Hart, que mesmo a despeito de ter incursionado com lucidez na discussão de problemas valorativos, como o da justificação da pena, nem por isso é um céptico, pondo de manifesto que não pressupõe que tal tipo de discussão seja irracional e envolve um mero choque de atitudes emotivas.

  15. Apud Santiago Nino, op. Cit., p. 33.

  16. Cfr. Aftalión. Vilanova. In: Introduccion al derecho, p. 376.

  17. O Conceito de Direito, pp. 22-22.

  18. Op. Cit, p. 18.

  19. Idem, ibidem.

  20. Op. Cit., p. 43.

  21. O Império do Direito, p. 492.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Autor

  • Marco Aurélio Lustosa Caminha

    Marco Aurélio Lustosa Caminha

    Desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 22ª Região. Ex-Procurador Regional do Trabalho. Professor Associado de Direito na Universidade Federal do Piauí. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino (Buenos Aires, Argentina). Doutor em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Maranhão.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAMINHA, Marco Aurélio Lustosa. O conceito de Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. -1096, 1 jul. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1. Acesso em: 28 mar. 2024.