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Municípios em território federal, e o auxílio ao controle externo?

Municípios em território federal, e o auxílio ao controle externo?

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SUMÁRIO: 1. Território federal. Divisão em municípios. 2. Dever de prestar contas. Princípio constitucional sensível. 3. Controle externo dos municípios. Competência da respectiva câmara municipal. Auxílio do órgão de contas competente. 4. Possibilidade de criação de tribunais de contas dos municípios no estado. Impossibilidade, no território federal. 5. Criação de conselhos de contas dos municípios no Território Federal. Lei federal.


            A possibilidade de determinado território federal ser dividido em municípios dá ensejo à indagação: como se realizará o auxílio técnico ao controle externo a cargo da respectiva câmara de vereadores sobre as contas públicas municipais?

            Segundo o art. 18 da CF/88, a organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende União, Estados, Distrito Federal (DF) e Municípios, todos autônomos nos termos da Constituição de 1988. Vale dizer, essas pessoas políticas detêm capacidades de auto-administração, de autogoverno e de auto-organização. Por sua vez, nos termos do mesmo artigo, os territórios federais integram a União, ou seja, têm natureza de autarquia territorial, tendo apenas capacidade de auto-administração. Mas, diferentemente do DF, podem ser divididos em Municípios, de acordo com o art. 33. § 1°, da CF/88.

            De qualquer sorte, deve-se registrar que a autonomia das pessoas políticas não é absoluta. Deve observar parâmetros traçados pela Carta Política de 1988. E, assim, cumpre destacar a possibilidade de intervenção nas entidades estatais, segundo preceitos fixados na CF/88.

            Nesse cenário, o dever de prestar contas avulta de importância. Eis que foi erigido como princípio constitucional sensível e, nos termos do art. 34, VII, "d", e 36, III, da CF/88, pode servir de fundamento para excepcional intervenção da União nos Estados ou no DF mediante representação do Procurador-Geral da República perante o Supremo tribunal Federal. Na mesma linha, de acordo com o art. 35, II, da CF/88, pode ensejar excepcional intervenção do respectivo Estado ou da União em municípios, mas, neste último caso, apenas em municípios situados em território federal.

            Fácil de ver que o poder estatal, embora uno e indivisível, não está enfeixado no âmbito de um único órgão ou agente político. Ele é distribuído entre diversos órgãos constitucionais, com vistas a, entre outras finalidades, assegurar maior respeito aos direitos fundamentais e maior eficiência estatal, pela descentralização de funções. Assim, constitui-se o chamado sistema de freios e contrapesos.

            Por meio desse sistema, cada função estatal exercerá controle sobre as demais, de tal sorte que, dos freios recíprocos, surgirão a harmonia e a independência dos poderes (funções estatais básicas). Órgãos jurisdicionais exercerão controles jurisdicionais. Órgãos administrativos, controles administrativos. Órgãos legislativos, controles legislativos. Ocorre, todavia, que as funções estatais não são exclusivas de determinados órgãos. São predominantes; e, com isso, observa-se que há funções típicas e atípicas. E, destarte, controles típicos e atípicos.

            Por conseguinte, nos termos da Constituição de 1988, órgãos administrativos podem exercer controles legislativos. É o que ocorre, por exemplo, com os tribunais de contas no Brasil. São órgãos administrativos que exercem competências de controle legislativo financeiro, em auxílio ao controle externo a cargo do Poder Legislativo correspondente.

            Registre-se que, embora configure órgão administrativo, independente e autônomo [01], e prolate decisões administrativas em processos dessa mesma natureza, o TCU promove controle legislativo financeiro, em auxílio ao Congresso Nacional [02], exercendo competências constitucionais que lhes são exclusivas [03] e outras em conjunto com o Legislativo [04], servindo de parâmetro constitucional para a instituição das demais cortes de contas brasileiras.

            Note-se, ainda, que não há relação de convergência ou mesmo de superposição entre os tribunais de contas no Brasil [05]. Em outras palavras, não cabe recurso ao TCU de uma decisão proferida, por exemplo, por tribunal de contas estadual. E, nesse ponto, não é demais lembrar que o TCU é instituído nos termos da CF/88; os tribunais de contas estaduais e os tribunais ou conselhos de contas dos municípios são instituídos segundo as respectivas constituições estaduais; enquanto o Tribunal de Contas do Distrito Federal e os tribunais de contas municipais (do Rio de Janeiro e de São Paulo) são instituídos pelas respectivas leis orgânicas, respeitados os parâmetros definidos pela Constituição de 1988.

            Desse modo, balizado pelo escopo do presente trabalho, cumpre deslindar o regime constitucional a ser atribuído para a fiscalização dos recursos públicos dos municípios situados dentro do espaço físico de um território federal.

            A fiscalização legislativa financeira dos recursos públicos pertencentes ao território federal (autarquia territorial federal) é realizada pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, com auxílio do Tribunal de Contas da União. Essa é a dicção do art. 33, § 2°, da CF/88 que estabelece:

            Art. 33. A lei disporá sobre a organização administrativa e judiciária dos Territórios.

            § 2º - As contas do Governo do Território serão submetidas ao Congresso Nacional, com parecer prévio do Tribunal de Contas da União.

            De outra sorte, o controle legislativo financeiro dos recursos públicos pertencentes aos municípios situados no território federal segue outro modelo.

            Com efeito, por serem recursos municipais, e considerando a autonomia desses entes estatais, deve-se prestigiar o comando dado pelo art. 33, § 1°, da CF/88 que aduz:

            Art. 33. A lei disporá sobre a organização administrativa e judiciária dos Territórios.

            § 1º - Os Territórios poderão ser divididos em Municípios, aos quais se aplicará, no que couber, o disposto no Capítulo IV deste Título. (destacou-se)

            Ora, o regime fixado para o controle legislativo financeiro dos municípios, no aludido Capítulo IV, está consagrado no art. 31 da CF/88 que estatui:

            Art. 31. A fiscalização do Município será exercida pelo Poder Legislativo Municipal, mediante controle externo, e pelos sistemas de controle interno do Poder Executivo Municipal, na forma da lei.

            § 1º - O controle externo da Câmara Municipal será exercido com o auxílio dos Tribunais de Contas dos Estados ou do Município ou dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios, onde houver.

            § 2º - O parecer prévio, emitido pelo órgão competente sobre as contas que o Prefeito deve anualmente prestar, só deixará de prevalecer por decisão de dois terços dos membros da Câmara Municipal.

            § 3º - As contas dos Municípios ficarão, durante sessenta dias, anualmente, à disposição de qualquer contribuinte, para exame e apreciação, o qual poderá questionar-lhes a legitimidade, nos termos da lei.

            § 4º - É vedada a criação de Tribunais, Conselhos ou órgãos de Contas Municipais.

            À primeira vista, poderia parecer que a resposta à indagação defluiria do silogismo contido nos §§ 1° e 4°, supra. Se é vedada a criação de tribunal de contas municipal, mas não é vedada a criação de tribunais de contas dos municípios. Então, o controle externo dos municípios situados em território federal deveria ser exercido pela câmara municipal respectiva, com auxílio do tribunal de contas dos municípios que porventura viesse a ser criado com essa finalidade.

            Ocorre, todavia, que o art. 235, III, IV e VI, da CF/88 lança mais luzes sobre a questão e parece indicar outra solução, ao aduzir:

            Art. 235. Nos dez primeiros anos da criação de Estado, serão observadas as seguintes normas básicas:

            III - o Tribunal de Contas terá três membros, nomeados, pelo Governador eleito, dentre brasileiros de comprovada idoneidade e notório saber;

            IV - o Tribunal de Justiça terá sete Desembargadores;

            VI - no caso de Estado proveniente de Território Federal, os cinco primeiros Desembargadores poderão ser escolhidos dentre juízes de direito de qualquer parte do País;

            Com efeito, pode-se entender que o artigo 235, supra, aponta para a impossibilidade de criação de um tribunal de contas dos municípios no território federal. A uma, porque ele prevê no seu bojo regra específica para estado proveniente de território federal, ao dispor sobre vagas para desembargadores do novo tribunal de justiça estadual, e, destarte, indica que as demais regras do artigo aplicam-se indistintamente a estado proveniente, ou não, de território federal. A duas, porque prevê a criação de um tribunal de contas para o novo estado, mostrando que não haveria tribunal de contas local a ser transformado em corte de contas estadual.

            Esse, inclusive, parece ser o entendimento do Supremo Tribunal Federal, quando, ao julgar a ADI 445 (DJ de 25/3/94), acompanhou o voto do ilustre Ministro Néri da Silveira e decidiu:

            "Em face de informações devidamente documentadas, o Estado do Tocantins, criado pelo art. 13 do ADCT da Constituição de 1988, possui mais de cem municípios e quase três dezenas de órgãos da administração direta e indireta, funcionando o Tribunal de Contas do Estado com apenas três Conselheiros, nos termos do que determina o art. 235, III, da Constituição, para os dez primeiros anos da criação de Estado novo. Não é possível, assim, acolher, em linha de princípio, a alegação de ofensa ao art. 37 da Constituição. A inconstitucionalidade da criação do Tribunal de Contas dos Municípios do Estado do Tocantins resulta, entretanto, na espécie, de ofensa ao art. 235, da Constituição Federal, que define normas básicas para a organização e funcionamento dos novos estados, durante os dez primeiros anos de sua criação. No art. 235, III, prevê-se a existência de um Tribunal de Contas, no Estado, com três membros, não se fazendo qualquer remissão ao art. 31 e seus parágrafos da mesma Carta Magna. Ao dispor especificamente sobre o Estado do Tocantins, o art. 13 do ADCT não previu nenhuma ressalva a autorizar a invocação do art. 31 e parágrafos da Constituição, para a fiscalização das contas dos Municípios, durante os dez primeiros anos da existência do Estado. De tal maneira, conforme o art. 235, III, da Lei Maior, o auxílio às Câmaras Municipais, para o controle externo, nesse primeiro decênio, há de fazer-se por intermédio do Tribunal de Contas do Estado, sendo inviável a criação de Tribunal de Contas dos Municípios." (destacou-se)

            Desse modo, pode-se inferir que a CF/88 teria definido outro modo de se estabelecer qual o órgão técnico competente sobre as contas dos municípios, em auxílio ao controle externo a cargo das respectivas câmaras municipais. E, realmente, ela o fez. Determinou que, por meio de lei da União, seja instituído um conselho de contas dos municípios, em respeito ao disposto no art. 31, §§ 1° e 2°, e no art. 35, II, da CF/88, que estabelecem:

            Art. 31. [omissis]

            § 1º - O controle externo da Câmara Municipal será exercido com o auxílio dos Tribunais de Contas dos Estados ou do Município ou dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios, onde houver.

            § 2º - O parecer prévio, emitido pelo órgão competente sobre as contas que o Prefeito deve anualmente prestar, só deixará de prevalecer por decisão de dois terços dos membros da Câmara Municipal.

            Art. 35. O Estado não intervirá em seus Municípios, nem a União nos Municípios localizados em Território Federal, exceto quando:

            II - não forem prestadas contas devidas, na forma da lei;

            Tais disposições, aliás, são consentâneas com as tradições republicanas nacionais, nessa área. Basta observar o modelo que fora anteriormente instituído para o controle financeiro dos municípios em geral, inclusive daqueles situados nos antigos territórios federais.

            A Emenda Constitucional n.° 1, de 17/10/1969, deixava claro caber ao tribunal de contas estadual ou a órgão estadual equivalente a competência para atuar em auxílio às câmaras municipais, no exercício do controle externo. Nesse sentido, o seu artigo 16 rezava:

            Art. 16. A fiscalização financeira e orçamentária dos municípios será exercida mediante contrôle externo da Câmara Municipal e contrôle interno do Executivo Municipal, instituídos por lei.

            § 1º O contrôle externo da Câmara Municipal será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas do Estado ou órgão estadual a que fôr atribuída essa incumbência.

            § 2º Sòmente por decisão de dois terços dos membros da Câmara Municipal deixará de prevalecer o parecer prévio, emitido pelo Tribunal de Contas ou órgão estadual mencionado no § 1º, sôbre as contas que o Prefeito deve prestar anualmente.

            § 3º Sòmente poderão instituir Tribunais de Contas os municípios com população superior a dois milhões de habitantes e renda tributária acima de quinhentos milhões de cruzeiros novos. (destacou-se)

            Por sua vez, recepcionado pela Emenda n° 1/1969, o Decreto-Lei n.° 411, de 8/1/1969, ao dispor sobre a administração dos territórios federais e a organização dos seus municípios, atribuiu o controle externo dos municípios às respectivas câmaras de vereadores e fez menção à participação de um conselho territorial, que teria, entre outras competências, atribuições para exercício do controle financeiro dos municípios. Nesse sentido, são os artigos 70 e 71 da referida norma jurídica, verbis:

            Art 70. A fiscalização da administração financeira do Município será feita pela Câmara Municipal.

            Art 72. Verificada a existência de irregularidade nas contas do Prefeito, a Câmara representará ao Governador e ao Conselho Territorial, bem como à autoridade judicial, para efeito de apuração de responsabilidade criminal.

            Conclui-se, portanto, que, no atual modelo constitucional, o controle externo financeiro dos municípios situados em território federal deve ser feito pelas respectivas câmaras municipais, com auxílio de órgão técnico estadual competente sobre as contas municipais, ou seja, com auxílio de conselho de contas dos municípios, que deve ser instituído por meio de lei federal.


Notas

            01 JACOBY FERNANDES, Jorge Ulisses. Tribunal de Contas do Brasil: jurisdição e competência. Fórum, 2ª edição – 2005, p. 113.

            02 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. Atlas, 20ª edição – 2007, p. 687.

            03 CF/88, artigo 71, II a VIII.

            04 CF/88, artigo 71, I, IX e X e §§ 1° e 2°.

            05 LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. Editora Método. 11ª edição – 2007, p. 516.


Autor

  • André Luís Carvalho

    André Luís Carvalho

    bacharel em Direito pelo Centro Universitário Unieuro, em Brasília/DF, e chefe de gabinete do Ministro Augusto Nardes no Tribunal de Contas da União, Capitão do Exército, na reserva, também possui os títulos de mestre em Aplicações Militares pela ESAO e de bacharel em Ciências Militares pela AMAN

    foi Conselheiro-Substituto do Tribunal de Contas do Estado de Goiás

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, André Luís. Municípios em território federal, e o auxílio ao controle externo?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1444, 15 jun. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10015. Acesso em: 19 abr. 2024.