Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/1015
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

O pacto social e a pedagogia do preso-condenado

O pacto social e a pedagogia do preso-condenado

Publicado em .


          O preso condenado, em regra, é proveniente das camadas mais desfavorecidas e vitimizadas da sociedade.  Já desde a infância ocorre a vitimização pela ausência de direitos fundamentais (direitos civis, sociais e políticos) efetivos.  Assim já experiencia a ruptura do pacto social, já que dele é excluído.  Quando descumpre a norma e comete um ilícito penal a sociedade no entanto invoca o pacto, alegando que ele o descumpriu.   O preso então é enviado às prisões, onde novamente será vitimizado pelo não cumprimento dos seus direitos de presos dispostos na Constituição e especificamente na Lei de Execuções Penais.  Assim é que novamente ele experiencia o rompimento do pacto e/ou um pacto tirânico.  A fim de descrever este quadro nos utilizamos de algumas referências retóricas como a do estado de natureza presentes em Thomas Hobbes e Rousseau, bem como da noção de Modernidade fornecida por Berman e por Luhmann.  Citamos dados do sistema penitenciário nacional a partir de Heitor Piedade Jr.   e da realidade brasileiro a partir de Pedro Demo.


 INTRODUÇÃO

O presente escorço visa analisar a relação do preso-condenado com a norma e esta como instrumento de reelaboração de um acordo, de um compromisso firmado com a sociedade anteriormente e que foi rompido.

A norma escolhida é a Lei de Execuções Penais, a qual dispõe sobre os direitos do preso em face do Estado e da Sociedade, bem como, os respectivos deveres recíprocos desta relação.

Iniciaremos nossa exposição pela descrição em dados estatísticos da situação do preso e do sistema penitenciário nacional.

A seguir, delimitaremos o objeto do nosso estudo, o qual tem por fim a situação do preso-condenado.  Este deve ser entendido, como aquele que é condenado a cumprir sua pena sem possibilidades imediata de liberdade, pois que deve ficar recolhido à unidade prisional.

Prosseguindo, tratamos da Lei de Execuções Penais, dos seus objetivos e do seu descumprimento, para melhor situar nossa discussão com base no texto legal, reduzindo, as sim as possibilidades de discussões acerca do ideal sistema de execução da pena, pois que partimos da idéia de que o ideal é o que está exposto na Lei de Execuções Penais vigente.

Passamos, então, pela visão da sociedade sobre o tema, partindo propositadamente do senso comum, o qual é comprovado cientificamente através das estatísticas e da nossa experiência cotidiana.  Tratamos da experiência e da conduta do delinqüente perante o processo, situando este como fonte de experiências, ou seja, como instrumento e fonte de aprendizagem.

Mais adiante tratamos da situação do condenado na prisão, da ressocialização do preso e da norma como redutora da complexidade e da contingência.   A norma como um elo com a sociedade e como um elemento essencial na comunicação Estado- sociedade e preso.

Caminhamos finalmente para o ápice de nossa argumentação, o qual consiste na aplicação da concepção do estado natural de HOBBES ao preso-condenado e quando tratamos com mais vigor da sustentação da hipótese de que a Lei de Execuções Penais é um instrumento essencial para a reelaboração do pacto social entre o preso e a sociedade-Estado.


1.  DADOS DA REALIDADE DA SOCIEDADE
BRASILEIRA E DO SISTEMA PENITENCIÁRIO NACIONAL

É público e notório o conhecimento de que a realidade brasileira é profundamente desigual, de que há grande concentração de rendas nas mãos de uns poucos privilegiados, de que a maioria das pessoas presas fazem parte da classe me nos favorecida da sociedade(negros e pobres) etc.  Seria mesmo desnecessário fornecer estes dados, os quais já são cotidianamente verificáveis na experiência de cada um e freqüentemente veiculados através da imprensa.   Sustentamos, assim, que estes fatos já fazem parte de uma tradição brasileira, assim como sua resultante, a tradição do descumprimento das normas no Brasil.  No entanto, apenas para ratificar a existência destes fatos, já constatáveis empiricamente, forneceremos alguns dados da realidade da sociedade brasileira e do sistema penitenciário nacional.  Assim, vejamos.

Informa DEMO, com base nos dados do anuário editado pelo IBGE(1992) que em 1981, 50% da população mais pobre de tinha 13,4% da renda, enquanto 1%, que são os mais ricos, detinham 13% ;  em 1989, a relação estava de 10,4% para 17,3%.  Em 1990, a população carente de 0 a 17 anos (famílias com renda per capita de até ½ salário mínimo) era 53. 5%, chegando a 77. 5% no Nordeste e a 38. 5% no Sudeste.  Das mulheres de 10 anos e mais, para 1990, 10,3% eram chefes de família, 40. 2% tinham menos de 4 anos de estudo, 73. 5% tinham renda mensal de até l salário mínimo.  Em 1990, na população de 10 a 14 anos, 17, 2% integravam a população economicamente ativa, sendo 22. 7% na faixa de rendimento mensal de até ½ salário mínimo.  Na população de 15 a 17 anos, já metade (50. 4%) integrava a população economicamente ativa, agravando-se um pouco mais(até 54%) nas faixas mais baixas de renda.   Entre as pessoas de 10 a 14 anos que trabalhavam, 47. 4% eram empregados, 46. 4% trabalhavam 40 ou mais horas semanais, somente 8. 6% tinham carteira assinada, e 96. 3% ganhavam até 1 salário mínimo.  Das pessoas de 15 a 17 anos, 72. 1% eram empregados, 77. 3% trabalhavam 40 ou mais horas semanais, somente 32. 9% tinham carteira de trabalho, e 81% ganhavam até 1 salário mínimo.  Em 1990, a taxa de escolarização de crianças de 5 a 6 anos de idade mostrava que no total chegava a 48. 5%, descendo para 37. 2% quando o rendimento familiar per capita era de até ½ salário mínimo, e 97% quando subia para mais de 2 salários mínimos.  Era de 71. 7% na zona rural, e de 90. 1% na zona urbana.  Era de 73. 3% no Nordeste, e de 89. 2% no Sudeste.   Em 1988/1989, apenas 22% dos alunos completariam a 8a.  série, e 55% a 4a.   série, sendo que apenas 4. 5% dos alunos conseguiriam formar-se na 8a.  serie sem repetência.  Em uma comparação regional, relativa ao percurso de 1978/ 88, concluíram a 8a.  série no Brasil apenas 20%, sendo no Sudeste 31% e no Nordeste 12%. entre as pessoas de 17 anos, tinham 8 anos de estudos ou mais em 1990, para o Brasil, apenas 26. 5%, para o Sudeste 32. 7%, e para o Nordeste 5. 7.

Ainda de acordo com o IBGE(apud DEMO), na população de 18 anos ou mais ocupada, em 1988,17. 6% estavam filiados a sindicatos ou a associações de empregados, subindo para 23. 4% no Sul, ficando em 17. 3% no Sudeste, e descendo para 14. 8% no Nordeste.  Além do baixíssimo nível de participação quantitativa, os dados indicavam ainda:

". . . a tendência manipulativa dos atuais sindicatos: o Nordeste detinha a maior taxa de filiação sindical entre pessoas filiadas, com 75,2%;  o Sul ficava com 60. 4%, e o sudeste com 67. 8%, em termos de filiação a associações e empregados, o Nordeste detinha a menor taxa, com 16,5%;  entre as pessoas filiadas a sindicatos no Nordeste 93. 6% somente 36. 8% quando se tratava de pessoa de maior instrução(12 ou mais anos de estudo)

Dados sobre acesso a documentos reforçavam esta insinuação: havia no Nordeste por volta de 70% de pessoas de 18 anos ou mais com carteira de indentidade, mas quase 90% com título de eleitor, sinalizando a fabricação manipulada do voto.

Ainda mais forte era o panorama relativo a filiações a partidos e associações comunitárias, na população de 18 anos ou mais: para o país, 16. 8%;  para o Sul, 33. 2%;  para o Sudeste, 15. 8%; para o Nordeste, 9,6%. No todo, predominava filiação comunitária entre as pessoas filiadas: 76. 6%, havendo no Sul a menor taxa de filiação partidária: 7. 4% e, em decorrência, a maior taxa de filiação comunitária:84. 4%. De novo, o Nordeste tinha a maior taxa de filiação partidária, voltando a mesma correlação dúbia entre falta de instrução e adesão partidária. "

Disto nós podemos constatar que é muito baixa a participação organizada, sobressaindo relativamente a região Sul, com 1/3 da população.

Com base em dados fornecidos pelo departamento de Assuntos Penitenciários, (DEPEN), da Secretaria dos Direitos da Cidadania e Justiça, do Ministério da Justiça(apud DEMO)para 1993 podemos constatar estatisticamente a falência do Sistema Penitenciário brasileiro, o qual serve apenas, na prática, para enjaular uma parte considerável das camadas me nos favorecidas econômica e socialmente.

Dos 126 mil presos existentes no país, quase to- dos homens(97%). Destes 48% cumprem pena irregularmente nas carce ragens das delegacias.

Em 297 estabelecimentos penais(penitenciárias e cadeias públicas), há 51, 6 mil vagas, o que estabelece uma média nacional de 2,5 presos por vaga, e um déficit de 74,5 mil vagas.  Ocorrem, em média, 2 rebeliões e 3 fugas por dia.

Cento e setenta e cinco estabelecimentos estão em situação precária, sendo necessários mais 130 para que não haja superlotação.  O custo médio de manutenção do preso é de 3. 5 salários mínimos por mês.

São 345 mil mandados de prisão expedidos e não cumpridos.  Há, em média, um milhão de crimes por ano, sendo 72% casos de roubo ou furto, e 28% de homicídio, lesão corporal, aborto, estupro, corrupção, tráfico, e porte de drogas.

68% das pessoas presas têm menos de 25 anos de idade, sendo que 2/3 são negros e mulatos;  89% são presos sem atividade produtiva ou trabalho fixo; 76% são analfabetos ou semi-analfabetos;  95% são pobres; 98% não podem contratar advo gado; 85% cometem reincidência.

Em 1992, houve 233 mil prisões, 18. 6% em São paulo, 15. 1% na Bahia, 14. 8% em Minas Gerais, 8. 9% em Alagoas, 7% no Pará, 6. 7% no Rio de Janeiro, 3. 4% no Paraná.

Cerca de 1/3 da população carcerária nacional é portadora do vírus da AIDS.

No Estado do Rio de Janeiro, Édson Biondi, coordenador de Saúde do Departamento do sistema Penitenciário, calcula que dois mil detentos, aproximadamente 20% da população carcerária, estejam contaminados pelo vírus HIV(O Globo, p. 22, em 30. 06. 1996).

No Estado do Rio de Janeiro, segundo dados do ISER(apud DEMO, p. 17 e 18), a violência diminuiu de 1985 a 1990, e retornou a crescer sistematicamente depois deste período.

Com relação a homicídios, de um índice de 38. 23 registrados por 100 habitantes em 1985, passou-se a 63. 03 em 1990, ficando em 55. 21 em 1992, no Estado;   na cidade do Rio de janeiro, esta evolução foi sistemática de 33. 35 em 1985 até 1992, com 60. 75; na Baixada, nota-se de imediato, um índice inicial quase dobrado(63. 22 em 19850, subindo em 1989 para 96. 04, e ficando em 74. 67 em 1992.

Com relação aos crimes contra a pessoa e contra o patrimônio no Estado do Rio de Janeiro, o índice que era de 351. 66 e 990. 51 para 1985, alcançando 377. 12 e 1071. 50 em 1989, ficando em 358. 48 e 1061. 45, em 1992 respectivamente.

Segundo informa Heitor PIEDADE JR.  (p. 86 e p. 87) 30. 7% da população carcerária fluminense é reincidente.  Se tomarmos uma das unidades prisionais locais, a penitenciária Milton Dias Moreira, situada no complexo Frei Caneca, no centro do Rio, considerada de segurança máxima e que chega à 50%. Neste mesmo estabelecimento penal, dos considerados não reincidentes, 43. 3% cometeram delitos anteriormente.  Se somarmos o índice de reincidentes com o daqueles não reincidentes que já praticaram delitos no passado verificaremos que 60. 4% da população carcerária desse estabelecimento já praticou algum delito (PIEDADE JR, p. 87).

Muitos outros dados relativos ao tema poderiam ser fornecidos, contudo este não é o propósito principal deste breve escorço.  Aconselhamos àqueles que procuram um maior aprofundamento sobre o assunto a leitura da revista do Conselho de Política Criminal e penitenciária;  da obra "A Questão Penitenciária "de Augusto F.  G.  Thompson, Vozes, Petrópolis, 1976;  "O Cidadão de Papel" de Gilberto Dimenstein, Ática, São Paulo, 4a.  ed. ).


2.   OBJETO DO NOSSO ESTUDO

Convém delimitar o objeto do nosso estudo.   Pretendemos abordar, através de uma abordagem qualitativa, com ligeiro enfoque quantitativo, estudar a situação do preso-condenado no Sistema Prisional brasileiro, principalmente e sua relação com a norma e com sociedade através da Lei de Execuções Penais e com a norma em geral.

Para efeitos do nosso estudo, consideramos como preso-condenado aquele que deverá cumprir, pelo menos, parte de sua prisão em uma unidade prisional, ou seja aquele que não pode cumprir sua pena em liberdade desde o início da Execução criminal.   Este tipo de preso, geralmente, é encarcerado por ter cometido um delito grave ou porque apesar de ter cometido um delito de menor gravidade, já apresentava antecedentes criminais e/ou reincidência, assim, são aqueles considerados de maior perigosidade criminal e que, por conseguinte, necessitam, ser isolados do convívio social direto e livre, por algum tempo.

Por outro lado, apesar desta delimitação do objeto do nosso estudo, isto não significa que não passaremos por uma breve análise de situações comuns aos demais presos não condenados, ou mesmo aos apenas processados.  É evidente que para que o indivíduo chegue à situação de condenado tenha passado antes pela situação de processado, de preso não condenado ainda, situação comum aos demais indivíduos que são simplesmente processados.  Contudo, o que nós pretendemos como fim, é o estudo do preso-condenado, daí a delimitação do objeto proposta.


3.  DA LEI DE EXECUÇÕES PENAIS

A nossa Lei de Execuções Penais é considerada uma das mais avançadas no mundo e se cumprida integralmente, na prática, certamente propiciaria a reeducação e ressocialização de uma parcela significativa da população carcerária atual.

No seu título I, a r.  Lei prescreve os seus objetivos fundamentais.  Diz o art.  1o. :"A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do conde nado e do internado. " Diz ainda a r.   Lei, agora, no art.  3o. " Ao condenado e ao internado serão assegurados to - dos os direitos não atingidos pela sentença ou pela Lei.  Parágrafo único.   Não haverá qualquer distinção de natureza racial, social, religiosa ou política".  E ainda o seu art.  4o. "O Estado deverá recorrer à cooperação da comunidade nas atividades de execução da pena e da medida de segurança. "

Contudo, já verificamos através de dados e sabemos da nossa experiência cotidiana, que as prisões no Brasil, principalmente, não atingem o objetivo de reintegração do condenado à comunidade.  Assim, a Lei de Execuções Penais - ou como é mais conhecida "LEP" - não cumpre seus objetivos e não é aplicada integralmente.  Como exemplos de descumprimento da LEP, podemos citar o não atendimento médico preventivo efetivo aos portadores de HIV, a superlotação das prisões, a violência dos agentes custodiadores e dos próprios presos.  Na nossa experiência diária, dos foros criminais podemos testemunhar a morosidade na concessão dos direitos dos presos, principal- mente quando implica um afrouxamento, uma restrição da liberdade ou mesmo na concessão da liberdade do preso.  Por exemplo, um processo de livramento condicional, o qual visa a verificar se o preso possui condições de ser posto novamente em liberdade de mora em média 1(um)ano, quando não há necessidade de nenhuma diligência extra.  Ressalte-se, outros sim, que não são raras as diligências extras, devido a ineficiência e negligência do Poder Público, como, por exemplo, a folha de antecedentes penais não é remetida pelo Instituto Félix Pacheco, ou quando o processado não é momentaneamente -às vezes demora um mês ou mais para ser encontrado - localizado na Vara das Execuções Criminais (VEP). Na prática, estas demoras no cumprimento da Lei acabam por inviabilizar a sua aplicação, como, por exemplo, em recente caso que está sendo acompanhado pelo nosso escritório: A pessoa foi condenado à 4(quatro) anos de prisão por tráfico.  Com o cumprimento de dois terços da pena teria direito ao livramento condicional.  Para ter direito a este benefício, a jurisprudência é pacífica no senti do de que o condenado deve estar recolhido à presídio, onde poderá fazer os exames criminológicos.  Assim, já tendo em conta este posicionamento da jurisprudência, foi requerido um ano e meio antes de que o condenado completasse 2/3 de sua pena, a transferência para um presídio.   Apesar de inúmeros requerimentos, dentre vários habeas corpus, a transferência do condenado só ocorreu quando cumpriu 3(três) anos de sua pena ;   segundo o Departamento do Sistema Penitenciário, o condenado não foi transferido antes por falta de vagas nos presídios.  Se considerarmos que o processo de livramento condicional demorará em média 1(um) ano, concluiremos que apesar da Lei garantir ao condenado o direito ao livramento condicional ao completar dois anos, na prática, este direito não existe, pois que quando terminarem os exames e o processo do livramento, já terá cumprido sua pena integralmente.  Este caso serve apenas para exemplificar os casos de descumprimento da Lei de Execuções Penais e são de comum ocorrência na realidade forense.  Ressalte-se, que no caso houve inclusive interposição de recurso para o Superior Tribunal de Justiça, o qual manteve a decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, sob o fundamento de que cabia ao Sistema Penitenciário, na medida de suas possibilidades providenciar a transferência do condenado para um presídio, não havendo, por conseguinte ilegalidade.


4.  OPINIÃO PÚBLICA

É muito comum ouvirmos de populares que as leis no Brasil são muito brandas, que os presos são tratados com mais atenção e zelo do que os trabalhadores.

Não iremos nesta breve reflexão tratar da questão de se as leis no Brasil são brandas ou não, tema já, por demais, enfocado por estudiosos de nomeada.   O fato é que as leis estão em vigor, brandas ou pesadas, e é com este dado concreto e imediato que temos de lidar, pelo menos, em um primeiro momento.

A Lei representa um consenso, um compromisso firmado pelos representantes do povo acerca de determinadas questões.  Para que este compromisso seja modificado, somente através dos mecanismos previstos no próprio compromisso inicialmente firmado será decisivamente comprometida e o compromisso perderá a razão de sua existência.

A sociedade, em geral, entretanto, parece não ter consciência da magnanimidade expressa pela Lei pela norma, e incentiva, pressiona o Poder Público, a própria sociedade a descumprir determinadas normas que conferem direitos aos presos, por entenderem-nas injustas, muito brandas, é o caso dos direitos do preso previstos na Lei de Execuções Penais.  Diz a sociedade "como é que pode, roubou e agora está preso com casa e comida de graça ". . . "e ainda tem direito de ser libertado antes do término da pena por um benefício que a Lei concede", "matou e ainda tem tal e qual direito ", etc.

A crítica da sociedade, sem dúvida, é um elemento importantíssimo no desenvolvimento de uma nação moderna democrática que se caracteriza pela liberdade de expressão, pela ampla participação da sociedade e demais preceitos democráticos previstos na Constituição Federal.  Quanto à crítica em si nada temos a questionar.  Entretanto, quando esta crítica causa o imobilismo, a perplexidade do sistema de governo e determinadas questões, o que será transformado em permanente foco de tensão social, inviabilizando a aplicação da lei vigente, mas não tendo força para modificá-la, neste, caso, entendemos ser imprescindível uma reflexão mais profunda.

Se a Lei é injusta, então, devemos nos organizar e pressionar para que seja modificada.  Se os representantes eleitos não atendem aos reclamos da sociedade para que a Lei seja modificada, então basta que na próxima eleição, escolhamos outros representantes.  Tudo dentro das regras do jogo democrático, tudo nos termos da lei, pois que estamos em um Estado Democrático de Direito.

Entretanto, a sociedade brasileira carece, como sabemos de organização.  A história brasileira é marcada pela liderança e participação de uma elite, em detrimento da participação ampla da sociedade.  É marcada pelo populismo, pela herança patrimonialista, os quais favorecem à criação de uma sociedade na qual as leis são muito mais figuras retóricas do que propriamente práticas, vinculadas aos problemas da coletividade.  A crise de regulamentação das leis e mais um destes elementos do Estado retórico, do governo patrimonialista.


5.  DA EXPERIÊNCIA E DA FORMAÇÃO DA VONTADE

Já diz um provérbio popular "O hábito faz o monge".  De fato, as experiências pelas quais as pessoas passam ao longo de suas vidas vão moldando sua forma de pensar, seu caráter, sua vontade, sua conduta, enfim, sua maneira de ser.  A nossa experiência cotidiana pode facilmente constatar estas conclusões, bem como os estudos da Sociologia, da Psicologia e da Psiquiatria principalmente.

Um destes estudos é o da fisiopsicologia da vontade, o qual nos fornece uma descrição do processo de formação de vontade na pessoa.

De acordo com HAMON ( apud, SODRÉ, p. 75), a vontade seria formada da seguinte forma: uma superfície sensitiva ou sensorial recebe uma impressão.  Esta é conduzida pelo nervo sensitivo para o centro reflexo medular(medula espinhal, medula alongada), corrente centrípeta;  deste centro nervoso parte uma corrente centrípeta seguindo o nervo motor.  A reação motora é executada por órgãos do movimento.  O movimento assim concluído é inconsciente.   Em lugar de se deter no centro, a corrente centrípeta pode continuar seguindo o nervo sensitivo e atingir um centro cerebral consciente (cérebro). Deste centro, através do nervo condutor de motricidade, parte uma corrente centrífuga que abala o centro medular.  Este por sua vez aciona o músculo pelo nervo motor;  eis o movimento voluntário, consciente.

Este estudo demonstra que cada elemento do meio, objeto exterior, cada objeto percebido por nossos sentidos causa uma determinada reação, resposta do nosso organismos, de nossa mente, ou seja, o Homem, portanto, age de acordo com suas experiências. 


6.  DA EXPERIÊNCIA E DA CONDUTA DO DELINQUENTE PERANTE O PROCESSO

A suspeita, nos termos da Lei, de prática de um delito é suficiente para submeter o r.  Suspeito a um processo penal, o qual visa a apurar as responsabilidades penais pela realização de um ou mais delitos.

A pessoa que responde a um processo penal - o qual visa a apurar as responsabilidades- embora goze de presunção de inocência, tem uma série de seus direitos restringidos, conforme o delito praticado, a gravidade, etc.

O delinqüente é aquele que praticou um ato anti-social reputado como delito pelo ordenamento jurídico da sociedade que o está processando.  O seu ato é nocivo a esta sociedade, a expressão de sua liberdade é nociva para a sociedade, por isso a sociedade tenta controlar sua personalidade, através da restrição da liberdade, da personalidade, desde o processo penal de formação de culpa, através da restrição da liberdade (não é sem razão que KANT considerava a liberdade como o primeiro e único direito natural) e se acentuando na fase de Execução Penal, após a condenação.   A restrição da liberdade, da personalidade do delinqüente consiste na restrição do exercício dos direitos, inclusive de direitos fundamentais, v. g. , a pessoa processada por prática de um delito tem o seu direito de ir e vir - direito fundamental - restringido direta ou indiretamente.

Na sociedade brasileira, acentuam-se, gradativamente, a edição de leis que já na fase de apuração do delito, na fase policial e no processo criminal, durante a instrução probatória, restringem, cada vez mais, um número maior de direitos individuais fundamentais do processado. São exemplos destas leis, a de Entorpecentes, a dos Crimes Hediondos a recente Lei das Organizações Criminosas. O fundamento destas leis é a defesa social. No passo em que caminhamos, chegaremos a aplicar pena, condenar sem nenhum direito de defesa, tal como nas priscas eras do Direito penal, onde imperava a Lei de Talião, pois que, cada vez mais antecipam-se efeitos peculiares à sentença condenatória, cada vez são maiores as hipóteses de restrição da liberdade cautelarmente, sem o contraditório constitucional.

Entretanto, ainda não chegamos ao ponto de igualar as conseqüências de um processo penal antes do trânsito em julgado, ao processo penal de Execução, após o trânsito em julgado;  ao menos não completamente.

Assim, a pessoa que responde a um processo penal, ainda goza de uma gama significativa de direitos de defesa, que podem ser utilizados e opostos eficazmente contra o Estado. Mesmo nos casos das Leis mais restritivas, como as supra citadas, ainda há a possibilidade de uma razoável proteção dos direitos fundamentas do acusado. É extremanente importante que o processado tenha esses direitos efetivamente protegidos, porque estes representam a manutenção de um nível mínimo da própria personalidade do processado.

Os direitos individuais fundamentais, como sabemos, visam a resguardar um nível mínimo de existência da pessoa, de sua liberdade. Depois da garantia da vida humana, a liberdade é o bem fundamental. O processo também protege direi tos à intimidade, à honra, quando tiverem caráter fundamental.

O exercício ou, mesmo apenas, a mera possibilidade de utilizar estes direitos eficazmente durante o processo, é salutar para o processado, pois que através desta experiência, de utilizar estes direitos eficazmente durante o processo, ele interioriza e sedimenta os valores humanos fundamentais.

Como já observado, é através da experiência que nós desenvolvemos, criamos e modificamos nossos valores, e de acordo com estes valores, é que nos conduziremos na sociedade. O processo penal é também uma fonte de experiências e, como tal, coloca em jogo uma aprendizagem e sedimentação de valores. Assim, à medida que o processo resguarda determinados valores vitais do caráter humano do processado,este absorverá a experiência destes valores, e desenvolvera uma conduta de acordo.

Evidentemente que não pretendemos ser ingênuos e a afirmar que somente o cumprimento da lei no processo levará o preso à ressocialização.  Mas certamente este é um dos fatores importantes neste processo. 


7.  DO DELINQUENTE CONDENADO NA PRISÃO

Depois de condenado, o delinqüente, se não for concedido nenhum benefício legal que lhe permita cumprir a pena, em liberdade, será mantido em uma unidade prisional.  É dos condenados recolhidos a unidades prisionais que trata este breve escorço.

A prisão teria por objetivo a ressocialização do condenado.   Laboratorialmente seriam criadas condições experimentais de práticas sociais semelhantes àquelas existentes na sociedade livre, através da tutela e supervisão do Estado.

O condenado é aquele que praticou um ato anti-social, portanto um indivíduo que usou sua liberdade nocivamente contra a sociedade. A sociedade, assim, através da prisão, visa restringir a liberdade do condenado, para ter um controle sobre sua personalidade(do condenado), sobre sua vontade agressiva e nociva. Se durante o processo penal, durante a instrução probatória, havia dúvida acerca da sua nocividade e, consequentemente, a pessoa gozava de uma gama maior de direitos;  após a declaração de nocividade social, o condenado passa a ter, de acordo com a Lei de Execuções Penais, um número mais restrito de direitos a exercitar.

Os direitos do condenado preso estão prescritos na Lei de Execuções Penais. Esta Lei consagra direitos e deveres do condenado preso e da sociedade.

Após a sentença condenatória transitada em julgado, a expectativa de liberdade do preso desloca-se daqueles direitos de maior alcance, que gozam as pessoas livres, para aqueles dispostos na Lei de Execuções Penais.  No dia-a-dia da unidade prisional será na lei de Execuções Penais seu contrato e experiência normativa imediata (será mesmo, e os regulamentos?).  É através desta Lei que o condenado preso poderá, em tese, recuperar o exercício pleno de sua liberdade, de sua personalidade, enfim de sua existência.   Portanto, todas as esperanças, sentimentos, expectativas do condenado preso, convergem para esta Lei.

Como já ressaltado, é através da experiência que são internalizados os valores.  O processo, como já observado, é uma fonte expressiva de valores, além de constituir uma sucessão de atos preordenados e método através do qual o Estado aplica a Lei.

A vida na unidade prisional é outra fonte de experiências significativas, através da qual o condenado preso, desenvolverá seus valores enquanto estiver preso, e moldará sua conduta.

Se o fim da prisão, modernamente, é a ressocialização do preso-condenado, se a ressocialização implica uma socialização dos valores do condena do, se a experiência é que possibilita a modificação e o desenvolvimento dos valores, seria de se esperar que as prisões fossem ambientes, laboratórios, que proporcionassem ao condenado uma gama de experiências que lhe incutissem, ou que lhe permitissem desenvolver valores benéficos à sociedade.

Entretanto, como nós sabemos, as prisões no mundo e, mormente no Brasil, não proporcionam ao condenado preso a sua recuperação.  São ambientes tensos, em péssimas condições humanas.  A superlotação é comum.  Os direitos previstos na Lei de Execuções Penais não são aplicados na prática. Há violência contra os condenados, praticadas por aqueles que têm a incumbência de custodiá-los e mesmo por outros presos.  Enfim, nós sabemos que o ambiente de uma unidade prisional no Brasil, em regra, é muito mais propício para o desenvolvimento de valores nocivos à sociedade, do que ao desenvolvimento de valores e condutas benéficas.

É devido a esta pressão social que, por exemplo, poucas pessoas físicas e ou jurídicas se interessam em oferecer empregos os presos.  A lei e Execuções Penais prescreve que o preso tem a obrigação de trabalhar, todavia, sabemos, poucas são as unidades prisionais que conferem trabalho ao preso, por diversas razões, já conhecidas, falta de trabalho, o Estado não possui condições financeiro-econômicas de supervisionar o labor dos presos, de contratar professores e demais profissionais do quadro técnico. Mesmo as unidades prisionais que oferecem oportunidade de trabalho ao preso, proporcionam essa oportunidade a um pequeno número presos, devido à escassez de vagas para o trabalho prisional.  As atividades laboratícias muitas das vezes também não são adequadas ao mercado de trabalho, se tem conhecimento de unidades prisionais nas quais os presos aprendem a fazer peças artesanais de pouca ou nenhuma aceitação no mercado.


8.  DA RESSOCIALIZAÇÃO DO PRESO

A Lei de Execuções Penais prescreve os princípios e regras que possibilitariam a ressocialização do preso.  O processo de ressocialização envolve uma série de elementos, sendo complexo.

Ressocializar significa tornar o Ser Humano capaz de viver em sociedade novamente, consoante a maioria dos Homens fazem.  A palavra ressocializar poderia a princípio referir-se apenas à conduta do preso, aos elementos externos que nós podemos resumir da seguinte forma : ressocializar é modificar a conduta do preso, para que seja harmônica com a conduta socialmente aceita e não nociva à sociedade.  Entretanto, como sabemos, antes da conduta existem os valores;  nós agimos, atuamos em função desses valores.  A conduta é um elemento externo, dessa forma é essencial influir nos valores diretamente, tornando-os o máximo possível sociáveis.

Assim é que ressocializar não significa apenas dar um emprego ao preso na prisão ou quando ele sai desta, ou não ter preconceitos contra os ex-presidiários.  Estas são atitudes positivas é evidente, todavia, o processo da ressocialização é muito mais complexo e inicia por uma reversão dos valores nocivos do condenado, para valores benéficos para a sociedade.  Como conseguir essa transformação é que é o pulo do gato.

Dentro do processo de ressocialização do preso condenado é fundamental uma práxis que resgate, enquanto ainda o mesmo está encarcerado os seus valores de pessoa, de ser Humano, os valores em comum com a sociedade livre. Isto só pode ser conseguido através de um ambiente de experiências favorável à assimilação destes valores. Este ambiente de experiências favorável deve ser o mais amplo possível e em crucial implicação o efetivo cumprimento da Lei de Execuções Penais, a qual tem o status de uma espécie de Constituição Federal do preso.


9.  DA NORMA COMO REDUTORA DA
COMPLEXIDADE DA CONTINGÊNCIA

O Homem capta, através dos seus sentidos, as coisas do mundo, reelaborando-as e classificando-as de acordo com sua capacidade.  O número de objetos existentes no mundo que estimulam os sentidos do Homem é muito maior que a sua capacidade de percepção.  Assim, a capacidade de percepção do homem é limitada, enquanto o número e a variedade dos objetos a serem percebidos é imensurável.   Além do que, como observa LUHMANN (p. 45, 1983) : "Cada experiência concreta apresenta um conteúdo evidente que remete a outras possibilidades. " Estas possibilidades são a um só tempo complexas e contingenciais.  Complexas significa que existem mais possibilidades do que se pode realizar e contingenciais que as possibilidades esperadas podem não ser realmente realizadas, ou seja, podem ser enganosas, erradas ou mesmo inexistentes, etc.

O grau de complexidade e de contingência é particularmente agravado na modernidade com sua crise de valores, de parâmetros, de rompimento de tradição, tudo proveniente, em grande parte, do rompimento com os parâmetros anteriores ao renascimento, à modernidade.   Na modernidade "tudo que é sólido desmancha no ar. "(BERMAN passim). BERMAN nos traça um preciso quadro da crise da modernidade Rousseau (apud BERMAN, p. 17), na Nova Heloísa, o jovem Saint-preux vindo do campo para a cidade relata à sua amada, Julie, as contradições e intensidade do "tourbillon social", de mil e uma contingências e complexidades, in verbis:

". . . eu começo, a sentir a embriaguez a que essa vida agItada e tumultuosa me condena. Com tal quantidade de objetos desfilando diante de meus olhos, eu vou ficando aturdido. de todas as coisas que me atraem, nenhuma toca meu coração,embora todas juntas perturbem meus sentimentos, de modo a fazer que eu esqueça o que sou e qual meu lugar"
(p. 17 e p. 18)

A norma, dentro deste contexto, tem um crucial papel de reduzir o nível de complexidade e de contingência do "tourbillon", proporcionando ao Homem um certo alívio e economia de tempo. A norma tenta sintetizar as expectativas dos Homens em relação a determinados valores ou situações, estabelecendo um valor, um modelo a ser tido como referencial, é o dever ser contido em cada norma. Sem a norma, as expectativas das pessoas acerca da conduta do outro -expectativas cognitivas (LUHMANN, l983, passim) - é dispersada em meio às expectativas das demais pessoas, o que importa um maior nível de complexidade e de contingências, acarretando maior tensão social, instabilidade, dor e ameaça à existência e desenvolvimento da sociedade.

O condenado preso em regime fechado deposita suas expectativas na LEP, assim, ele tem a expectativa de que a norma, a LEP, deve ser cumprida, senão aquele que não a cumprir deverá receber uma punição prevista na Lei.  Malgrado, como salientado, o preso-condenado já possua um baixo grau de confiabilidade nas relações normativas - principalmente naquelas estabelecidas pelo Estado - a expectativa a confiança na norma, no caso, do condenado preso é apreendida ou reforça da ao longo do processo, e culmina com sua condenação, quando ele aprende que aquele que como ele, não cumpriu a norma deve ser castigado, pois que a norma é para ser cumprida.  Entre tanto, quando a LEP não é cumprida pelo Estado ou pela sociedade civil, esta confiabilidade e expectativa desenvolvida pelo preso ao longo do processo é neutralizada facilmente, a função redutora de complexidade e de contingências da norma, é aniquilada, voltando ao estado anterior de acentuada complexidade e contingência geradores de alta tensão e que o conduziu a praticar um delito.

Com o passar do tempo, o preso pode reelaborar sua expectativa em relação à norma, à LEP, sedimentando a expectativa de que quando ela beneficia o preso, dificilmente será cumprida ou dificilmente será integralmente cumprida, dependendo sempre de um excessivo discricionarismo do Estado e da sociedade civil, retornando novamente a uma maior complexidade e contingência, pois se a aplicação da norma, do seu conteúdo, irá ser, na prática, determinada por outra pessoa, de acordo com a conveniência e oportunidade e certamente com as indiossincrasias e interesses particulares do intérprete (e este estando repleto de complexidade e contingências, também estará sujeito a tomar um série de alternativas e decisões inesperadas para o preso, já que este não pode prever os pensamentos e já que o referencial da norma, em face do excessivo discricionarismos, é praticamente nulo. )Assim é que novamente o nível de tensão, de instabilidade aumenta e o preso assimila esta experiência, moldando seu caráter, maneira de ser, de ver o mundo, de pensar e de agir.


10.  DO ESTADO DE NATUREZA EM HOBBES E
DO DELINQUENTE, CONDENADO-PRESO

A concepção do estado de natureza hobbesiana, ao nosso entendimento, se adequa perfeitamente ao estado do delinqüente, do marginal, do condenado, do preso, do criminoso habitual e/ou daquele que cometeu um delito considerado grave(roubo, seqüestro através de extorsão etc. ), os quais são pessoas que possuem um certo grau de freqüência e tendência para o envolvimento com o mundo do crime, ou seja, vivem ou almejam viver do crime.

Segundo HOBBES, o Homem no estado de natureza é movido exclusivamente pelas suas paixões, sendo portanto, egoísta, individualista, agressivo e constante ameaça aos outros homens. Como a vida é o bem que possibilita ao Homem realizar suas paixões, quando for ameaçado pela desordem e anarquia generalizada do estado natural, no qual todos indiscriminadamente exercem suas paixões, o Homem é obrigado a passar para o estado civil através do contrato social e do pacto-promessa de cumprimento do contrato.

O estado natural hobbesiano é um estado hipotético, diferente do estado natural de ROUSSEAU, que de fato teria existido em algum tempo, sendo, portanto, histórico.  Para HOBBES, o estado natural universal, total, nunca existiu, mas o parcial sim.  Este se resumiria aos seguintes casos:

i)O estado de natureza entre sociedades independentes, em particular, na época em que viveu Hobbes, com relação aos Estados soberanos;

ii)O estado entre os indivíduos numa guerra civil, quando a sociedade política é dissolvida.  Recentemente tivemos notícias das guerras na Iugoslávia, na qual combatem diversas nações, e que, quando fazem prisioneiros, estes são torturados, as mulheres estupradas e toda sorte de atrocidades inimagináveis de ocorrerem em um estado civil.

iii)O estado em que se encontram as sociedades primitivas, tais como, os índios - enquanto - os bárbaros da Antigüidade, agora civilizados.

O criminoso que vive do crime, o que faz do crime um meio de vida, ainda que não exclusivo, mas habitual, o qual, quando condenado provavelmente cumprirá sua pena em regime inicialmente fechado, é o objeto de enfoque no nosso presente trabalho.

Este criminoso possui um alto grau de agressividade, de egoísmo, de individualismo, tal qual, o Homem no esta do natural de HOBBES, que age movido exclusivamente por suas paixões.

O criminoso habitual no Brasil, consoante demonstram as estatísticas, é originário da classe pobre, de raça negra.  Possui baixo ou nenhum nível de escolaridade e de qualificação profissional.  Embora, não cheguemos ao ponto de considerarmos que a criminalidade no Brasil forme"um Estado dentro do Estado Legal", certamente, é nítido que esta criminalidade possui uma gama de poder considerável que, em determinados casos, rivaliza e supera o poder do Estado Legal.   Basta verificarmos o poder exercido pelos traficantes nas favelas e circunvizinhança- onde reina a lei do silêncio - sem dúvida, um poder, pelo menos, em intensidade e funcionalmente semelhante ao poder estatal.

Dessa forma, é que entendemos que o criminoso no Brasil vive em uma espécie de estado de natureza parcial, consoante concebera HOBBES.  Esse criminoso, especialmente no Brasil, teve um baixíssimo nível de sociabilidade, ou seja, de efetiva integração na sociedade, baixo nível de cidadania, de informação, de condições de vida, de susbsistência, etc. São marginalizados socialmente, mesmo quando ainda não tinham cometido delito, mas pelo fato de pertencerem em sua grande maioria a uma classe pobre já estigmatizada e sub-valorizada pela sociedade.  Isto resulta que o delinqüente tem um histórico de efetiva reduzida participação política, ou seja, uma ínfima experiência efetiva no estado político, o qual se caracteriza pela existência de direitos e deveres recíprocos e de respeito aos direitos fundamentais da pessoa.  Assim, o delinqüente desde a sua infância, acumula uma experiência de ver pessoas participarem do estado civil-classe alta e média- e ele e sua família ficam praticamente à margem deste estado, como diz a música popular, "vendo a banda passar" e, quando muito, coadjuvando a atuação principal de algum membro da classe privilegiada, quase que em um outro Estado, em um estado natural, regido primordial e cotidianamente pelas paixões dos Homens, por aqueles que, pela força, impõem suas paixões àqueles que obedecem e se submetem.


11.  DO PACTO SOCIAL ATRAVÉS DA LEI DE EXECUÇÕES PENAIS (LEP)

Como já mencionado, o Homem, dentro da concepção hobbesiana, é naturalmente mau(selvagemente nocivo) e, sendo assim, é imprescindível o estabelecimento do pacto social a fim de controlar e canalizar esta sua natureza para reverter em benefício da sociedade.

O preso, aquele que praticou um delito, um ato anti-social, parece se encaixar claramente dentro do perfil do Homem natural hobbesiano consoante já referimos.   Assim, dentro da visão da sociedade, o preso, o condenado por prática de delito, em regra, é um ser individualista, egoísta e que pratica um ato nocivo à sociedade, um ato que rompe o pacto social firmado pela sociedade para a preservação dos direitos dos seus membros. O preso - condenado, então é aquele que rompe o pacto social, por isso a sociedade o exclui do ambiente social, para confiná-lo num espécie de hospital, as cadeias, onde o preso, uma espécie de doente social, será tratado para que desenvolva valores benéficos à sociedade ou, se não for possível, que pelo menos não retorne ao convívio social.

O principal fim destes hospitais de doentes sociais, como chamamos as cadeias, é sem dúvida o de tornar o Homem novamente um ser capaz de conviver pacificamente na sociedade, de acordo com as regras do jogo estabelecidas através do pacto. Somente em último caso é que essa recuperação é descartada, nos casos de prisão perpétua e de pena de morte, as quais não existem no estado brasileiro em tempo de paz. Assim, no Brasil parece evidente que,, ao menos dentro de uma concepção formal do sistema jurídico vigente, cadeia é para ressocializar o condenado.

Para ressocializar o condenado pressupõe-se que este condenado possua um mínimo de capacidade de condições de assimilar o processo de ressocialização, é necessário então que o condenado, embora, preso e sob custódia do Estado, exerça uma parcela ainda que mínima, mas fundamental de sua liberdade, de sua personalidade, pois são estes caracteres que distinguem o Homem dos demais animais, ou seja, é necessário que o cercear a liberdade do preso, não se lhe retire a sua qualidade humana.  Se o condenado mantém ainda sua qualidade humana, ele é ainda detentor de poder e, consequentemente, fonte de direitos a serem respeitados, portanto ele ainda pode exercer direitos e em contrapartida tem uma série de deveres a obedecer.  Entretanto, como já demonstrado, os direitos do condenado, mesmo os fundamentais, não são os mesmos e ou na mesma extensão daqueles dos chamado "homens livres".

A norma que regula os direitos e deveres do preso para com o Estado e para com a sociedade é a LEP.

A LEP é que estabelece as normas fundamentais que regerão as relações dos presos-condenados, com o Estado e com a sociedade no cotidiano da execução da pena. Assim, é que a Carta Magna dos presos passa a ser a LEP, a qual prescreve em que nível o condenado poderá exercer sua liberdade, enquanto estiver na condição de preso condenado em cumprimento de pena, ou seja, enquanto não recuperar totalmente, como a maioria das pessoas possuem, o exercício da liberdade. A LEP serve, portanto, como uma espécie de pacto ou de preparação para a retomada do pacto que o condenado violou ao cometer o delito.

É através da LEP que o condenado preso pode saber que conduta pode realizar no âmbito da cadeia. Que horas terá de dormir - ou quem determinará o horário em que deve dormir -, a quem e como deve obedecer, etc. Através da LEP é que toma conhecimento dos comportamentos que pode exigir dos demais internos, agentes do Estado, da sociedade, já que a função principal das cadeias é a ressocialização - de acordo com a Lei - e que esta só é possível se o Homem mantiver sua qualidade humana, o que implica o exercício de direitos. A LEP, possibilita, formalmente, um exercício de uma série de experiências, de relação social, de pacto social, todas fundamentais para que o condenado recupere um nível mínimo de valores benéficos à sociedade.  É somente através da experiência que os valores são modificados, é através da prática cotidiana desses valores que estes vão sendo sedimentados, a experiência é que permite a superação das limitações naturais, genéticas, físicas do Ser Humano, através do hábito.

Assim é que não basta a existência do pacto, a sua idealização, é necessário, para que as relações tenham um mínimo de estabilidade necessária para a existência e desenvolvimento do Estado, que de fato, no dia a dia, o pacto exista, ou seja, que efetivamente os direitos e deveres recíprocos nele estabelecidos tenham aplicação efetiva.

Da mesma forma, a LEP, sendo uma preparação, ou uma simulação do pacto social, deve não apenas consistir numa carta de princípios formal, mas é imprescindível que tenha aplicabilidade prática, ou seja, que efetivamente no dia a dia, os condenados possuam direitos e deveres consoante estabelecidos na LEP.

Conforme observou ROUSSEAU, da força não advém nenhum direito, não podendo resultar nenhuma moralidade, obedecer à força é mais um ato de necessidade do que de vontade.  Assim, é que se apenas uma das partes do pacto, no caso o Estado, exerce direitos efetivamente, e o condenado exerce um "quase nada" de direito, podemos concluir que o Estado, em realidade, exerce sua força, pretendendo que seja aceita na forma de subserviência, não como direito.  Se a ressocialização pretende modificar os valores do condenado preso, ou seja, modificar sua moralidade, como atingir este fim através da força? Simplesmente não é possível.   ROUSSEAU(p. 28 e 29) demonstra isso com clareza, dizendo que:

"O mais forte nunca o é bastante para ser sempre amo, senão transformar sua força em direito e a obediência em dever.  Daí, o direito do mais forte, direito tomado ironicamente em aparência, e realmente estabelecido em princípio, entre tanto, jamais se nos explicará esta palavra ?A força é um poder físico;  não vejo que moralidade pode resultar dos seus efeitos.  Ceder à força é um ato de necessidade, não de vontade, é entretanto, um ato de prudência". . . "Convenhamos pois que a força não constitui um direito e que não somos obrigados a obedecer senão aos poderes legítimos".

Ao condenado-preso nada mais resta praticamente.   Suas esperanças de liberdade voltam-se para a Lei de Execuções Penais, a qual é aplicada, citada, comentada, discutida freqüentemente no dia a dia da unidade prisional.

Para o preso-condenado, a Lei de Execuções Penais é praticamente o único elo com a sociedade livre em termos de obrigação e dever, de compromisso.  O condenado preso, embora possa não ter consciência analítica da complexidade do fenômeno da ressocialização já exposto, tem consciência clara de que foi condenado porque a sociedade assim determinou, porque ele descumpriu uma regra e aqueles que descumprem uma regra estabelecida pela sociedade são punidos.  Assim, ele sabe que a norma é para ser cumprida, que aqueles que a descumprem são punidos e que ele foi punido por descumprir a norma. É essa experiência que o preso-condenado adquire gradativamente ao longo do processo. A relevância do respeito ao compromisso com a sociedade.

Como já foi exposto, a liberdade é imprescindível à existência humana e a Lei visa a proteger essas liberdades através da concessão de direitos. A LEP confere um série de direitos aos condenados, visando, possibilitar ao preso não somente a obediência, com o quando o condenado cumpre seus deveres, mas lhe possibilita exercitar sua face ativa da liberdade que foi tolhida por ser nociva à sociedade, para um sentido benéfico através da ressocialização. Através dos direitos previstos na LEP, seriam canalizadas parcela significativa das insatisfações e esperanças do preso, seria preservada mesmo uma parcela mínima da dignidade da personalidade do condenado, que é a possibilidade de exercitar um direito, de ter a experiência de dizer a outra pessoa que ela deve ceder em face do que a sociedade considera como concreto e verdade.  Os condenados presos sabidamente, em sua maioria são pessoas indisciplinadas, que têm sérias dificuldades em lidar com a norma estabelecida.  Devido a esta dificuldade é que o delinqüente infringe a norma. O exercício de troca de papéis, proporcionado pelo direito de exigir de alguém o cumprimento de um compromisso pactuado através da norma estatal, coloca o condenado na outra ponta da relação, no papel que lhe permite acompanhar o esforço de uma outra pessoa, como ele, para cumprir a norma, superando suas vicissitudes, fraquezas, idiossincrasias e dificuldades em lidar com a norma, para finalmente, no clímax desta peça, presenciar o cumprimento da norma por outrem.   Essa experiência de cumpri mento da norma vai aos poucos, desmistificando a dificuldade que o condenado tinha com o cumprimento da norma. Entretanto, é imprescindível, como se verifica, que aquele que deve cumprir a norma, efetivamente, a cumpra, pois caso contrário, o condenado experimentará uma experiência negativa de reforço dos seus vícios, maus hábitos, excessivo individualismo egoísmo, os quais ele conhece desde a sua infância e que o levaram à prisão.

A LEP e o instrumento através do qual o condena do preso reelabora o pacto social quebrado.

Todavia, como já demonstrado e como é de conheci mento geral, a LEP não é cumprida, principalmente, no que tange aos direitos do preso.

Assim, é que a experiência de completa ausência de direitos, por três anos, por exemplo, sedimenta no conde nado uma gama de valores e prática nocivas à sociedade, experiência, o hábito são certamente muito mais poderosos do que qualquer discursos moral ou retórico. A experiência prisional do condenado sugere-lhe que a única forma de expressar sua personalidade, de gozar sua liberdade é violando a lei, já que não possui direitos efetivamente a exercitar.


12.  CONCLUSÃO

O preso-condenado, no Brasil, principalmente, é originário das classes menos favorecidas da sociedade. São pessoas que desde a tenra infância são pressionados, oprimidos pela sociedade civil, pelos chamados poderosos. Desde a sua infância, nas favelas, nos morros, nas regiões mais pobres o delinqüente convive com uma precária condição de vida, em meio ao esgoto, à discriminação social, à completa ausência de informações de formação educacional, escolar. Sem o background social de uma mínima formação educacional e social, o preso-condenado, mesmo antes de se tornar um delinqüente já ocupa uma posição inferior na relação do pacto social, do contrato social. Seus familiares, por certo também tiveram a mesma sina e a sua será possivelmente pior, pois que a crise social, a cada dia, é mais grave.

Assim, o membro da classe menos favorecida comete um delito, num impulso, numa força de auto-preservação, e rompe o pacto tirânico, autoritário, no qual não tinha praticamente nenhum direito, mas um mundo de obrigações a se rem cumpridas.

Ao longo do processo, o preso aprende os valores da sociedade e que deve adequar sua conduta a esses valores, para que não sofra um mal maior, a prisão.

Preso e condenado, o preso, segundo a Lei de Execuções Penais, teria direito a uma série de bens, os quais na prática não lhe são concedidos.

A única relação do preso-condenado com a norma, ou pelo menos a mais forte relação do preso com a norma, se dá através da Lei de Execuções Penais, pois que ali está previsto como poderá obter sua liberdade, como deve se comportar, enquanto estiver cumprindo sua pena.

A Lei de Execuções Penais, no entanto, não é cumprida e causa assim a revolta do preso, o qual mais uma vez tem uma relação negativa com a norma estatal.

Assim, é que podemos concluir que um dos principais elementos no aumento da criminalidade é o não cumprimento da Lei de Execuções Penais pelo Estado e pela sociedade.  Não pretendemos, com esta assertiva, ressaltar a qualidade da Lei de execuções Penais, mas o fato de que enquanto acordo, compromisso, integração Estado-preso não foi cumprida pelo Estado;  assim é que pretendemos ressaltar o aspecto do pacto não cumprido pelo Estado e legitimizador do rompimento do pacto e do estado de guerra entre o Estado e os delinqüentes existentes nos nossos dias. 


BIBLIOGRAFIA

DEMO, Pedro.  A violência social p.  9/34, in Revista do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, v. 1. , no.  3, jan. /jun. , 1994.

PIEDADE JR. , Heitor.  Vitimização pelo sistema carcerário p.  81/100, in Revista do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, v.1., no. 3, jan. / jun., 1994.

SODRÉ, Moniz. As três escolas penais. 1955, Freitas Bastos.

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar : a aventura da modernidade ps. 17 e 18.

LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I, Rio de Janeiro, 1983, Ed. Tempo Brasileiro.

HOBBES, Thomas. Leviatã. Coleção os Pensadores, Abril Cultural.

ROUSSEAU, Jean Jacques.  O Contrato social, Coleção universi dade de bolso, Ed. Ediouro.

DIMENSTEIN, Gilberto.O cidadão de papel. Ed. Ática, 4ªed.

THOMPSON, Augusto F. G. A questão penitenciária, Petrópolis, Vozes, 1976.

 


Autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RIBEIRO, Lúcio Ronaldo Pereira. O pacto social e a pedagogia do preso-condenado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 28, 1 fev. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1015. Acesso em: 5 maio 2024.