Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/10394
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Direito comparado.

Notas sobre os costumes constitucionais da Inglaterra

Direito comparado. Notas sobre os costumes constitucionais da Inglaterra

Publicado em . Elaborado em .

A Inglaterra não possui constituição escrita. O direito constitucional inglês vincula-se historicamente ao desenvolvimento de tradições normativas na Inglaterra, no País de Gales e na Irlanda do Norte. É o direito constitucional da Grã-Bretanha, excluindo-se, naturalmente, a Escócia, em cujo território viceja direito de formatação romanística. Aspectos da tradição constitucional e política inglesa foram transportados para outros ambientes jurídicos, a exemplo do que se deu na formação do direito norte-americano, no desenvolvimento do direito australiano e na influência de vários outros sistemas, a propósito do que aconteceu na Índia, no Paquistão, e em vários rincões da África, na dimensão cultural que marcou o neocolonialismo britânico do século XIX. Importante que se frise, de início, que os norte-americanos, ao obterem a independência, não fizeram muito para rejeitar a constituição inglesa, ou pelo menos nem tanto quanto lutaram para afirmar o texto constitucional que criaram (cf. LUTZ, 1988, p. 5).

Há tese que insiste na igualdade estrutural entre modelos constitucionais ingleses estamentais da Idade Média e modernas concepções de constituições representativas. É axioma desse pensamento a hipervalorização da Magna Carta, documento de 1215, que a historiografia jurídica tradicional fixou como ícone. O referido documento tornou-se paradigma da resistência popular contra o poder absolutista, lugar comum e retórico de pouca sustentabilidade historiográfica, tomando-se essa última com as cautelas epistemológicas que o manejo da história exige, especialmente quando se trata de história do direito (cf. HESPANHA, 1998). Há também tese que defende que as estruturas constitucionais inglesas medievais e modernas são totalmente diferentes, não se percebendo entre elas relação de continuidade; nesse sentido, por exemplo, a Magna Carta seria documento feudal, do baixo medievo, cujo valor histórico deveria se confinar ao momento de sua articulação. À Magna Carta deve se reputar, tão somente, as representações simbólicas a ela aderidas (cf. GARCÍA-PELAYO, 1984).

Em linhas gerais, o constitucionalismo inglês presenciou o triunfo do Parlamento e a transição de um Estado estamental para um Estado democrático e liberal. Usando-se um tipo ideal weberiano, poderia se falar de autoridade que se sedimentou na tradição (WEBER, 1996); trata-se constituição formada na historicidade e não na revolução, não obstante os movimentos do século XVII, ligados às revoluções puritana e gloriosa. A história constitucional inglesa apresenta sujeitos que matizam conflito entre o Rei e o Parlamento; aquele se vê na prerrogativa da expressão jurídica, este último pretende a supremacia. Entre eles, barganhando apoio, magistrados que defendiam o primado do common law, e que se aliaram às forças do legislativo (cf. GARCÍA-PELAYO, 1984).

O entorno constitucional inglês fomentou um direito centrado no processo. Primeiro questiona-se o remédio aplicável, a ação a ser ajuizada, e em seguida aponta-se o direito substancial. Remedies precede rights, os remédios precedem os direitos. Formou-se estrutura judicial dualista que persiste até a contemporaneidade. O Rei açambarcou na baixa idade média a competência jurisdicional dos senhores feudais impondo ao reino uma justiça comum (common law) administrada a partir da Corte de Westminster. O formalismo e as limitações desse modelo suscitaram pedidos diretamente dirigidos à chancelaria do Rei, nascendo a equity. O exercício da advocacia também conhece cisão conceitual, embora por outros motivos. O barrister ou o counsel é o advogado que atua em juízo. O solicitor é o profissional que atua junto ao cliente. Os advogados ingleses pulverizam-se nos quatro clubes de advogados que há no país, e que regulamentam a profissão, os chamados Inns of Courts. Não há na Inglaterra o ministério público tal como o conhecemos em vários outros direitos do mundo (cf. DAVID, 1997).

O desenvolvimento do constitucionalismo inglês radica nos movimentos liberais daquele país, que matizaram a primeira manifestação contra o Antigo Regime, a primeira revolução burguesa na Europa. O absolutismo realizou-se com toda força nos reinados de Henrique VIII (o Rei das seis esposas) e de sua filha Elisabeth I (a Rainha Virgem), que nos séculos XVI e XVII unificaram o país, montaram a Igreja Nacional Inglesa, romperam com a autoridade papal e formaram um Estado moderno no qual a personalidade jurídica do Rei deixou de ser um complexo de direitos feudais e passou a ser um centro de poderes estatais (cf. GARCÍA-PELAYO, 1984).

À época da dinastia Tudor ganharam força três teses jurídicas, relativas ao modelo constitucional que se formava no reino inglês. Edward Coke defendia a supremacia do common law, pelejando por um direito tradicional e contrário à tradição racional que vai se desenhar no continente. Edward Coke foi um criador de mitos. Ele mesmo, um mito sem precedentes, pelo menos em temas de orientação jurisprudencial e em aspectos da vida particular. Conta-se que no seu enterro, em 1634, após mais de três décadas de vida em comum, a viúve dizia que como Coke jamais existiria alguém mais no mundo, graças a Deus... (HILL,1992, p. 304). Coke passara vida colecionando e explicando precedentes judiciais (cf. BOWEN, in GROSSMAN, 2000, p. 48).

Houve também tese absolutista, centrada em Thomas Hobbes, para quem a monarquia era o poder supremo em relação a todos os súditos; só o Rei tornaria possível uma sociedade civil, pois o povo seria multidão acéfala e incapaz de criar direitos (cf. GARCÍA-PELAYO, 1984). Hobbes foi figura extraordinária, paradoxal, em quem radica o contratualismo jusnaturalista e o juspositivismo (cf. TAMANAHA, 2001, p. 22). Hobbes foi um homem curioso, de grande poder intelectual, que cada século produz apenas dois ou três (CHEVALLIER, 1996, p. 45). O capitulo XXVI do Leviatã sumaria a visão hobbesiana de direito, e lá se lê que em todas as repúblicas o legislador é unicamente o soberano, seja este um homem, como numa monarquia, ou uma assembléia, como numa democracia ou numa aristocracia (HOBBES, 2003, p. 226).

O positivismo legalista remonta a Thomas Hobbes, que marcou no Leviatã passagem recorrente, dando-nos conta de que (...) é evidente que a lei, em geral, não é um conselho, mas uma ordem (HOBBES, 2003, loc.cit.). E continuou escrevendo que (...) não é uma ordem dada por qualquer um a qualquer um, pois é dada por quem se dirige a alguém já anteriormente obrigado a lhe obedecer (HOBBES, 2003, loc.cit.). A convergência entre jusnaturalismo e juspositivismo é em Hobbes percebida na medida em que e não foi outra a razão pela qual a lei surgiu no mundo, senão para libertar a liberdade natural dos indivíduos, de maneira tal que eles sejam impedidos de causar dano uns aos outros, e em vez disso se ajudem e se unam contra um inimigo comum (HOBBES, 2003, p. 228).

Contrário a Coke, Hobbes defendia que o magistrado estava obrigado a aplicar a lei do Rei. Para o pensador inglês, o juiz subordinado deve levar em conta a razão que levou o soberano a fazer determinada lei, para que a sua sentença seja conforme a esta, e nesse caso a sentença é do soberano, caso contrário é dele mesmo, e é injusta (HOBBES, 2003, p. 230). Para Hobbes, (...) não basta que a lei seja escrita e publicada, é preciso também que haja sinais manifestos de que ela deriva da vontade do soberano (HOBBES, 2003, p. 232). E ainda, (...) se a obediência é devida às leis, não em função do assunto de que elas tratam, mas graças à vontade de quem as decreta, a lei não constitui um conselho e sim uma ordem (HOBBES, 2002, p. 215). Para um comentador de Hobbes, a expressão mais genuína do poder absoluto, ilimitado e indivisível do soberano pe a faculdade de dar leis (TRUYOL Y SERRA, 1990, p. 207). O pensamento político de Hobbes explicita modelo plausível de governo absolutista (cf. KELLY, 1999, p. 214), insistindo que a soberania deveria se concentrar em uma única pessoa (cf. BOBBIO, 1991, p. 51). Para Hobbes, o Rei era o juiz supremo (cf. HOBBES, 2001, p. 33).

Havia também tese de apoio ao parlamentarismo, centrada na defesa de um direito tradicional, imputado ao Parlamento, que baseava suas pretensões em antigos costumes e privilégios (cf. GARCÍA-PELAYO, 1984). A morte de Elisabeth I em 1603 acirrou a disputa entre essas três tendências. Havia setores contrários ao Estado absolutista, a exemplo da burguesia mercantil, de uma nobreza progressista rural (gentry) e de uma camada expressiva de camponeses posseiros (yeomen).

Jaime I, da Escócia, reinou na Inglaterra após a morte de Elisabeth I, dando início à dinastia Stuart. Reforçou-se o catolicismo que havia dentro do anglicanismo. É que do ponto de vista teológico as divergências do luteranismo e do calvinismo são maiores do que as do anglicanismo, em relação ao catolicismo romano. A circunstância pode traduzir o sentido político que fora mais marcante na reforma inglesa; embora, bem entendido, o luteranismo e o calvinismo não se limitassem a problemas de consubstanciação, de transubstanciação, de salvação pela fé e pela predestinação, especialmente em sua leitura e em seu entendimento weberiano.

Em 1628 a Petição de Direitos marcou a primeira restrição estatutária imposta aos monarcas ingleses desde o tempo dos Tudor. O Parlamento identificou-se com o puritanismo, versão radical do calvinismo em solo inglês. Em 1648 a Revolução Puritana marcou o embate entre a burguesia e a realeza, pelo controle político do país, com vitória daquela primeira. Derrubou-se ao Rei Carlos I, decapitado em 1649, ato simbólico e muito expressivo, que qualifica a desmistificação do absolutismo monárquico (cf. ARRUDA, 2004). É que se derrubava um Estado monárquico sem rival, em autoridade e eficácia, em todo o Ocidente europeu (ANDERSON, 1998, p. 112).

Triunfou regime republicano que se substancializou no protetorado de Oliver Cromwell, o eleito de Deus, na expressão de importante historiador inglês (HILL, 2001). Em 1651 outorgou-se o Ato de Navegação, que determinou que as mercadorias somente poderiam ser desembarcadas em portos ingleses se o fossem por navios ingleses ou dos países de origem dessas mercadorias. Impulsionou-se a indústria naval britânica, que se destacava no domínio dos mares, no prenúncio do império colonial que se formava, sob o qual o sol jamais se punha, como rezava adágio da época. Cromwell não conseguiu se fazer sucedido por seu filho Ricardo, por fraqueza e temeridade desse último. Além disso, ao que consta, Ricardo Cromwell era um celerado.

Os Stuart retornaram ao poder e os ingleses conheceram o período da Restauração. Cromwell teria sido desenterrado e seu corpo pendurado numa forca. O poeta John Miltom, quase ou já cego, fora julgado e condenado. Autor do imortal Paraíso Perdido, Milton notabilizou-se por ter escrito um dos mais impressionantes libelos em favor da liberdade de expressão, o Aeropagítica- Discurso pela Liberdade de Imprensa na Inglaterra. O texto foi redigido logo após Newton fora abandonado pela primeira esposa, de quem queria o divórcio, e cujo texto que preparou em favor da separação não recebera o nihil obstat das autoridades e da censura na Inglaterra. Milton era ferrenho defensor da liberdade de imprensa. Para o poeta, (...) os livros não são coisas absolutamente mortas; contém uma espécie de vida em potência, tão prolífica quanto a da alma que os engendrou. E mais: eles preservam, como num frasco, o mais puro e eficaz extrato do intelecto que os produziu (MILTON, 1999, p. 61).

Milton foi rival da monarquia absolutista, inimigo visceral dos tiranos da época. Para o pensador inglês, dos maus, os tiranos raras vezes esperam agressão ou mesmo suspeitam, sendo todos naturalmente servis. Por outro lado, àqueles em quem a virtude e o verdadeiro valor é o mais eminente têm um temor sincero e contra eles, por direito seus senhores, voltam todo o ódio e a suspeita. É por isso que os maus não apenas odeiam os tiranos, como ainda estão sempre prontos a tingir com os nomes falsificados de lealdade e obediência suas torpes condescendências (MILTON, 2005, p. 6).

Ao término da era da Restauração aprovou-se o Habeas Corpus Act, que determinava que não se podia prender sem mandado judicial, que o acusado deveria ser apresentado aos tribunais em 30 dias, que o réu não poderia ser enviado para prisão localizada fora do território do Reino. Proibia-se também que o acusado fosse julgado duas vezes pelo mesmo crime, a double jeopardy, como o instituto será conhecido pelo direito norte-americano e subseqüentemente aplicado em vários modelos constitucionais do mundo. O Parlamento, no entanto, é desde então a marca mais característica do modelo constitucional inglês, especialmente como organizado ao longo do século XVII (cf. TREVELYAN, 1987, p. 342).

A essa época formam-se os partidos políticos ingleses. Os tories eram em sua maioria proprietários rurais, desenvolviam um ideário conservador, eram ligados aos anglicanos, defendiam uma Coroa forte e ainda recorriam à doutrina do direito divino dos reis. Os whigs eram liberais, vinculavam-se a descendentes do que haviam lutado ao lado de Cromwell, eram puritanos, tolerantes em matéria de religião (apenas com os demais protestantes, bem explicado) e sustentavam doutrinas de contrato social (cf. ARRUDA, 2004). Grupos minoritários, porém de radicalismo agressivo, ficaram em segundo plano. Os seekers e os ranters perfilavam ousado ceticismo. Os levellers, os diggers e os pentamonarquistas protestavam por reformas políticas e econômicas que atendessem as camadas mais populares que eles representavam. Os batistas e os quakers, cujas lutas partiam de premissas religiosas, formavam ao lado dos outros grupos o exército dos agitadores da época (cf. HILL, 2001).

Em 1689 a Revolução Gloriosa testemunha o triunfo do parlamentarismo. Jaime II fez um acordo, deixando o trono vago, fugindo para a França. Guilherme de Orange, casado com Maria, filha de Jaime II, começou a exercer reinado marcado por governo parlamentar com bases oligárquicas, com assentamento em princípios liberais, calcados na Declaração de Direitos de 1689. Em 1694 fundou-se o Banco da Inglaterra. Bem mais tarde, em 1832, reformas eleitorais deram fim a sistema eleitoral que lembrava o modelo medieval. De 1850 a 1875 conheceu-se a supremacia inglesa no mundo. Ao longo da Era Vitoriana o capitalismo inglês fez-se dominante, embora nos subúrbios de Londres tinha-se a opção de se morrer de fome de uma vez, ou lentamente, nos termos da advertência de Charles Dickens (cf. ARRUDA, 2004). O capitalismo inglês alterou costumes, mapas e alianças políticas; é a Idade do Império (cf. HOBSBAWN, 1989, p. 56).

Adotou-se o roteiro político de John Locke, síntese do contratualismo iluminista, para quem a constituição do legislativo é o primeiro e fundamental ato da sociedade (LOCKE, 1998, p. 573). Médico, atento observador da sociedade e da política de seu tempo (cf. GRANSTON, 1985), Locke indica-nos o direito natural como chave para o entendimento da coerência de seu pensamento (cf. PERRY, 1978, p. 12). A partir de Locke fundamenta-se uma constituição flexível, marcada pelo liberalismo que se desenvolveu na Inglaterra, que imputa ao Estado a obrigação prioritária de garantir a propriedade privada. O modelo político moldava-se nos ditados do capitalismo (cf. WOOD, 1999), em trajetória que remontava ao medievo (cf. BERMAN, 1983), e que se formatou ainda nos conflitos do campo (cf. THOMPSON, 1997).

Ao pensamento de Locke acrescentam-se contribuições posteriores de Adam Smith, de Thomas Malthus, de David Ricardo, de John Stuart Mill, do darwinismo social de Herbert Spencer, do utilitarismo de Jeremiah Bentham e do próprio positivismo jurídico de John Austin. O constitucionalismo inglês centra-se na expressão dos direitos individuais de modo negativo, isto é, não há texto explícito que os sustentem. Porém, todos os textos e julgados não os proíbem. As normas de direitos individuais não são fontes, são conseqüências dos direitos individuais (cf. GARCÍA-PELAYO, 1984).

Adam Smith vinculava o governo, prioritariamente, à defesa da propriedade (cf. SMITH, 2003, p. 901). David Ricardo explicitava que impostos eram porções do produzido nas terras, somadas com o resultado do trabalho, valores que eram colocados à disposição do governo (cf. RICARDO, 1996, p. 105). John Stuart Mill preocupara-se com a liberdade civil, isto é, com a natureza e com os limites que poderiam ser exercidos pela sociedade em desfavor dos indivíduos (cf. MILL, 2002, p.3). Herbert Spencer desconfiava de governos muito fortes e imputava pecados a legisladores eloqüentes (cf. SPENCER, 1993, p. 106). Bentham lembra-nos recorrentemente que o interesse de uma comunidade é uma das expressões mais gerais que possa surgir na fraseologia da moral (cf. BENTHAM, 1988, p. 3). E a imagem certamente sugere a diferença presentemente indicada entre interesses públicos primários e secundários. E todas essas percepções são acomodadas em entorno constitucional não escrito.

Trata-se de constituição que o costume projetou adesão à autoridade do direito, o rule of law. Paradoxalmente, é constituição abstrata que plasma a supremacia do direito ordinário, como revelado no common law e na statute law. A separação de poderes que Montesquieu teria elogiado entre os ingleses não se parece muito concreta do ponto de vista mais pragmático. O Parlamento consiste efetivamente na convergência das forças políticas do Rei, da Câmara dos Lordes e da Câmara dos Comuns. O governo, centrado no Primeiro-Ministro, é responsável perante o Parlamento e somente permanece no poder enquanto detenha apoio e confiança desse. O que se entende por Estado no direito constitucional continental europeu pode-se indicar por Coroa no modelo inglês (cf. GARCÍA-PELAYO, 1984).

De acordo com secular princípio indicativo da neutralidade da Coroa tem-se a ordem dinástica acima das alterações políticas e constitucionais, bem como das variações de opinião, não obstante a fúria dos folhetins maldosos, que vasculham as intimidades dos ocupantes do Castelo de Windsor. Decorre daí vetusta idéia referente à irresponsabilidade do Rei, justificativa do adágio the King can do no wrong, recorrente nos manuais de direito administrativo, em momento que antecede ao estudo da responsabilidade do Estado pelos danos causados por seus prepostos, em seus planisférios objetivos e subjetivos. Se os tribunais são do Rei, não se pode falar em ações contra o Rei. O que se tem, são súplicas, que legislação da década de 1970 apressou em organizar, formalizando as queixas contra gravames causados pelo Estado. O Rei é o parens partriae, o pai dos órfãos e abandonados. O Rei é o espelho das famílias, e deve ordenar sua vida pessoal nesse sentido (cf. GARCÍA-PELAYO, 1984).

O Gabinete tem como missão fundamental a direção política do país. Os ministros são nomeados e destituídos pelo Rei, de acordo com proposta do Primeiro-Ministro; de tal modo, o Rei nomeia, ele não escolhe. E mais amplamente ainda, ele reina, não governa. No modelo inglês não há distinção entre formal entre leis constitucionais e leis ordinárias. E assim não existe, conseqüentemente, controle de constitucionalidade, como cogitado em outras tradições jurídicas, marcadas por modelos de controle difusos e concentrados. No exemplo de célebre autor, aqui tantas vezes citado, o Parlamento pode mudar a religião do Estado, regular a sucessão do trono, limitar os poderes do Rei, entre outras competências (cf. GARCÍA-PELAYO, 1984). O Gabinete identifica o chamado governo responsável, talvez a mais peculiar contribuição da constituição britânica à ciência política (cf. JENNINGS, 1981, p. 105).

A Câmara dos Lordes conta presentemente com cerca de 1290 membros. Há os pares espirituais, arcebispos e bispos. Há os pares temporais, duques, marqueses, condes, viscondes e barões. A Câmara dos Comuns é composta atualmente por 659 membros. Seus representantes são eleitos por sufrágio universal. Excluem-se funcionários ou aqueles que mantenham relações contratuais com a Coroa. Há um speaker, que exerce função de liderança, atuando como porta-voz da Casa. Há vários comitês, que apreciam matérias financeiras, orçamentárias, bem como revisão de legislação ordinária (cf. GARCÍA-PELAYO, 1984). Na Câmara dos Lordes a maioria, historicamente, é do partido conservador (cf. JENNINGS, 1981, p. 67).

O judiciário centra-se em uma Supreme Court of Judicature, que revisa matérias julgadas em segunda instância, por uma Court of Appeal. Em juízo de cognição de primeira instância uma High Court of Justice aprecia matérias cíveis e uma Crown of Court cuida de matérias penais, embora infrações menores sejam julgadas pelas Magistrates Courts (cf. DAVID, 1997). O judiciário é independente, os juízes são recrutados entre os advogados bem sucedidos e mantêm-se nos cargos, historicamente, por aquiescência do Rei, during the King´s pleasure (cf. KEMPIN, JR., 1990, p. 91).

As fontes do direito constitucional inglês, a margem dos costumes e dos referencias históricos aqui alavancados, são a Petição de Direitos (1628), a Declaração de Direitos (1689), o Ato de União, com a Escócia (1707) e com a Irlanda (1800), além do Estatuto de Westminster (1931). A partir de 1979 percebeu-se avanço de tendências neoliberais, sustentadas no governo de Margareth Thatcher (cf. REITAN, 2002). O partido trabalhador, presentemente no poder, sob a liderança de Tony Blair, oscila entre o incondicional apoio ao ideário norte-americano e um compromisso com uma terceira via (cf. GIDDENS, 2000), que transcenda posições de direita e de esquerda (cf. GIDDENS, 1994), isto é, se essa denominação pode algum dia alcançar conservadores e liberais, tal como historicamente se alinham as forças na liça do direito constitucional inglês.


BIBLIOGRAFIA

ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado Absolutista. São Paulo: Brasiliense, 1998.

ARRUDA, José Jobson. Nova História. Bauru: EDUSC, 2004.

BENTHAM, Jeremy. The Principles of Morals and Legislation. New York: Prometheus Books, 1988.

BERMAN, Harold J. Law and Revolution- The Formation of the Western Legal Tradition. Cambridge: Harvard University Press, 1983.

BOBBIO, Norberto. Thomas Hobbes. Rio de Janeiro: Campus, 1991.

CHEVALLIER, Jean-Jacques. Les Grandes Ouevres Politiques de Machiavel à nos Jours. Paris: Armand-Collin, 1996.

DAVID, René. O Direito Inglês. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

GARCÍA-PELAYO, Manuel. Derecho Constitucional Comparado. Madrid: Alianza Editorial, 1984.

GIDDENS, Anthony. Beyond Left and Right. Stanford: Stanford University Press, 1994.

GRANSTON, Maurice. John Locke- a Biography. New York: Oxford University Press, 1985.

GROSSMAN, George S. (ed.). The Spirit of American Law. Boulder: Westview, 2002.

HESPANHA, Antonio M. Panorama Histórico da Cultura Jurídica Européia. Mira-Sintra: Europa-América, 1998.

HILL, Cristopher. O Eleito de Deus- Oliver Cromwell e a Revolução Inglesa. São Paulo:Cia. das Letras, 2001.

HILL, Cristopher. O Mundo de Ponta Cabeça- Idéias Radicais durante a Revolução Inglesa de 1640. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

HILL, Cristopher. Origens Intelectuais da Revolução Inglesa. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

HOBBES, Thomas. Do Cidadão. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

HOBBES, Thomas. Elementos do Direito Natural e Político. Porto: Res Jurídica, s.d.

HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

HOBSBAWN, Eric. The Age of Empire. New York: Vintage Books, 1989.

JENNINGS, Ivor. A Constituição Britânica. Brasília: UnB, 1981.

KELLY, J.M. A Short History of Western Legal Theory. New York: Oxford University Press, 1992.

KEMPIN JR., Frederick. Historical Introduction to Anglo-American Law. St. Paul: Westpublishing, 1990.

LOCKE, John. Dois Tratados sobre o Governo. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

LUTZ, Donald S. The Origins of American Constitutionalism. Baton Rouge: Louisiana State University Press, 1988.

MILL, John Stuart. Autobiography. London: Penguin Books, 1989.

MILL, John Stuart. Basic Writtings. New York: Random House, 2003.

MILTON, John. Aeropagítica- Discurso pela Liberdade de Imprensa ao Parlamento da Inglaterra. São Paulo: Topbooks, 1999.

MILTON, John. Escritos Políticos. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

PARRY, Geraint. John Locke. Boston: George Allen, 1978.

REITAN, Earl A. The Thatcher Revolution. New York: Rowman & Littlefield Publishers, 2003.

RICARDO, David. Principles of Political Economy and Taxation. New York: Prometheus Books, 1996.

SMITH, Adam. The Wealth of Nations. New York: Bantam Books, 2003.

TAMANAHA, Brian Z. A General Jurisprudence of Law and Society. New York: Oxford University Press, 2001.

THOMPSON, Edward Palmer. Senhores & Caçadores. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

TREVELYAN, G.M. A Shortened History of England. London: Penguin Books, 1987.


Autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito comparado. Notas sobre os costumes constitucionais da Inglaterra. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1543, 22 set. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10394. Acesso em: 28 mar. 2024.