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(Ainda) a capacidade contributiva e a progressividade tributária

(Ainda) a capacidade contributiva e a progressividade tributária

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Apesar de a redistribuição de renda ser uma finalidade do Direito Tributário, existem certos limites doutrinários e pragmáticos à utilização da progressividade.

SUMÁRIO: I. A evolução histórica do princípio da igualdade no Direito Tributário. II. Considerações sobre o princípio da capacidade contributiva: II.1. O viés quantitativo da capacidade contributiva. II.2. O viés qualitativo da capacidade contributiva. III. A progressividade e a graduação dos tributos: III.1. Teorias de justificação da progressividade; III.2. Limites à progressividade: algumas linhas sobre arbitrariedade, confisco, direito ao exercício de atividades lícitas; III.3. Progressividade no Imposto de Renda. III.4. A progressividade nos impostos reais: a) Progressão de alíquotas com fins extrafiscais: o ordenamento constitucional antes da EC nº 29/2000; b) O entendimento do STF a respeito do tema: leading case RE 153771/MG; c) Poder constituinte derivado e EC 29/2000: reforma legislativa de decisão judicial. IV. Conclusões.


I. A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO PRINCÍPIO IGUALDADE NO DIREITO TRIBUTÁRIO.

Qualquer estudo sobre capacidade contributiva deve ser precedido por uma análise do princípio da igualdade [01]. O tema, no entanto, não comporta exaustão, devido a sua amplitude. Nada obstante, alguns destaques merecem ser feitos, a propósito do melhor desenvolvimento e compreensão deste trabalho.

O reconhecimento inicial da lógica da igualdade remonta à Grécia Antiga. O pensamento aristotélico elegeu a justiça como medida de virtude, de perfeição, e, a seu turno, a justiça mantinha laços fortes com a igualdade. Dois grandes modelos de justiça surgiram: a justiça comutativa e a justiça distributiva. Resumidamente, a justiça comutativa exigia que todos fossem tratados da mesma maneira; em outras palavras, casos semelhantes demandavam soluções semelhantes e, desta forma, a igualdade estaria resguardada. A justiça distributiva – não ao contrário, mas complementarmente – pode ser definida tendo em conta a recorrente fórmula segundo a qual deve-se tratar os iguais de maneira igual e os desiguais de maneira desigual (ou seja, aplicação da justiça comutativa), na medida de sua desigualdade. A primeira parte da fórmula da distributividade já podia ser inferida com a simples aplicação da comutatividade, e, por isso, é preciso reconhecer que a justiça distributiva não prescinde da justiça comutativa, antes a complementa. A desigualdade como medida da diferença de tratamentos – segunda parte da fórmula – é que consagra verdadeiramente o caráter distributivo da justiça [02].

Com o advento do Estado Liberal, as construções teóricas sobre o princípio da igualdade incorporaram em grande parte a idéia grega da justiça comutativa. Explica-se melhor. Durante muito tempo acreditou-se que era bastante para garantir a igualdade que as prescrições legais fossem aplicadas indistintamente a todos os indivíduos. Assim, a lei, fruto da vontade geral, deveria prescrever condutas, criar direitos e atribuir deveres de modo abstrato e genérico a todos os sujeitos e, se assim acontecesse, o Estado teria prestigiado a igualdade [03]. De forma objetiva, este aspecto formal da igualdade encontra apoio substancial na justiça comutativa, vez que os indivíduos eram compreendidos como iguais entre si e, via de conseqüência, a extensão do âmbito de aplicação da lei a todos eles já garantiria por si só o resguardo da igualdade.

É possível perceber que a justiça distributiva não deixou de ser aplicada (ou, pelo menos, não ganhou tanto espaço como a comutativa) propositalmente. É que a premissa do Estado Liberal era a de que os indivíduos são eminentemente iguais. O mesmo status político de cada cidadão frente ao Estado lhes conferia, de per se, franca semelhança. Além dessa premissa, é preciso destacar que o papel do Estado revelava-se muito distante da sua atual missão: tratava-se de um Estado contemplativo, o L’État Gendarme, com nenhuma ou pouca possibilidade de interferir na sociedade [04], que era guiada amplamente pelos "desejos" do mercado. O artigo 1º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão [05] pode ser apontado como a consagração positivada dessa igualdade perante a lei.

A mudança de postura do Estado possibilitou um novo enfoque para a igualdade, mais baseada na justiça distributiva. Mas não é só. A igualdade na lei é, em grande parte, contribuição da teoria marxista, a qual foi capaz de perceber que a sociedade estava dividida em classes e que, portanto, os homens não poderiam ser considerados todos iguais perante o Estado. O marxismo prova de uma vez por todas que os indivíduos têm diferentes necessidades e que a aplicação irrestrita dos mesmos ditames para todos eles não tem aptidão para garantir o aspecto material da igualdade – ao contrário, maximiza as desigualdades.

Em resposta, portanto, à consagração do aspecto formal da igualdade (igualdade perante a lei), a partir do marxismo e, definitivamente, com o Estado Social, passou-se a realçar o substrato material da igualdade (igualdade na lei). Assim, as próprias normas deveriam veicular preceitos diferentes para pessoas diferentes. A dessemelhança, contudo, não poderia dar lugar à arbitrariedade e, por isso, deveria ser racional, vale dizer, o critério de discriminação deveria ser legítimo [06]. Essa legitimidade estaria diretamente relacionada com três "testes": (i) o da razoabilidade do critério de discriminação escolhido, (ii) o da adequação entre o fator discriminatório adotado e a disparidade no tratamento adotado e (iii) o da promoção dos valores constitucionais de determinada ordem jurídica.

Modernamente, no Estado Democrático de Direito, a discussão a respeito do princípio da igualdade ganha novos contornos. Diversas são as teorias que procuram trabalhar com a igualdade. Discute-se sobre igualdade de chances e igualdade de resultados, sobre a igualdade a partir de critérios de distribuição de bens justos, entre outras formulações. No âmbito do Direito Tributário, não há grandes inovações nesse percurso traçado até agora, e nem poderia ser de outra maneira.

O Estado Patrimonial foi marcado pelo regime de imunidades e privilégios das classes altas da sociedade (Nobreza e Clero). A liberdade dos estamentos foi, então, valorizada em detrimento da igualdade. É importante destacar, contudo, que o regime de imunidades e privilégios não é, por si só, uma violação à igualdade, afinal, como se sabe, hoje em dia, algumas das Constituições que consagram expressamente o princípio da igualdade convivem com um sistema de imunidades. A Constituição brasileira de 1988 é um exemplo disso. Mas a verdade é que, naquela época, os Reis governavam para si, para a Nobreza e para o Clero e, destarte, as imunidades restavam atreladas a esse tipo de política – estavam, portanto, muito longe de representar um abrandamento da tributação em prol de direitos fundamentais –, cabendo ao povo subsidiar as vontades do governo [07]. Havia, desta forma, real inversão da lógica das imunidades (pelo menos como ela é hoje concebida e estruturada) com aprofundamento das desigualdades políticas, econômicas e sociais [08]. A insustentabilidade desse modelo fez com que lentamente o príncipe fosse centralizando a política e as finanças do Estado e a burguesia assumisse um papel de destaque no Estado. Trata-se do Estado de Polícia, caracterizado pelo fim das imunidades estamentais da Nobreza e do Clero [09].

Até então, como se observa, a tributação não era uma prática generalizada, senão que guardava relação com eventos esporádicos (tais como as Cruzadas, por exemplo) e, mesmo assim, a igualdade passava longe de contribuir com fundamentação e/ou justificação da imposição tributária. Com a ascensão do liberalismo e o crescimento dos Estados, cresceu a necessidade de a população subsidiar os gastos do Estado (que não era mais auto-sustentável) e a exação se revelou o meio mais eficaz. Para tanto, a atividade tributária aumentou, abrangendo mais e mais indivíduos. Teorias de justificação foram desenvolvidas para dar aporte doutrinário a essa ampla utilização dos tributos como instrumentos de custeio do Estado; em outras palavras, para que se evitasse uma crise sócio-política por causa da tributação, fazia-se mister convencer os cidadãos a respeito da legitimidade das exações.

Dois foram os pontos usados pelo Estado Fiscal Liberal para sustentar a tributação: (i) a compreensão desta como garantidora da liberdade e (ii) o desenvolvimento do princípio da capacidade contributiva. No que toca ao primeiro ponto, houve toda uma movimentação doutrinária no sentido de justificar a tributação como preço da liberdade [10]. Assim, cada um contribuía com pequena parcela do patrimônio para garantir o núcleo de sua liberdade. O tributo era visto como um pedaço marginal de liberdade do qual se podia abrir mão em prol da proteção de um pedaço maior e essencial da liberdade. Paralelamente a essa construção, depois da Revolução Francesa, o princípio da capacidade contributiva começou a ser aplicado contidamente, representando a transposição da igualdade para o campo tributário através da constatação de que cada um deveria contribuir de acordo com sua capacidade econômica. O estabelecimento de imunidades e privilégios para resguardar o mínimo de liberdade de um determinado indivíduo reforça a incipiente idealização da capacidade contributiva [11]. Com o Estado Social Fiscal deu-se uma aproximação entre a liberdade e a justiça e, só então, passaram a existir posições que defendiam uma maior igualdade em sentido material. A capacidade contributiva ganhou contornos mais firmes e passou a ser efetivamente aplicada como concretização da igualdade em matéria tributária (igualitarismo tributário). Por fim, com o Estado Democrático Fiscal, as doutrinas igualitaristas, que aproximavam igualdade de capacidade contributiva foram perdendo força (notadamente na Alemanha), dando lugar às teorias neoliberais sobre igualdade, tais como as de Dworkin e Walzer. Curiosamente, no Brasil, ainda hoje a capacidade contributiva é entendida e aplicada como corolário da igualdade, sem que, por conta disso, comprometa-se sua eficácia e sua efetividade. A bem da verdade, em relação à igualdade no campo do Direito Tributário, é pouca a diferença entre o Estado Social Fiscal e o Estado Democrático Fiscal [12]. As teorias sobre liberdade [13] é que efetivamente sofreram radical transformação de um período para o outro.

Em suma, como destaca Griziotti, o princípio da igualdade no ambiente fiscal pode ser resumido nos seguintes postulados:

"1) Los sujetos a la soberania fiscal deben ser sometidos a las cargas públicas proporcionalmente a su capacidad contributiva y a paridad de capacidad deben corresponder iguales tributos.

2) Las exenciones y atenuaciones de gravamen deben establecerse por la ley.

3) No se deben conceder privilégios fiscales.

4) No debe darse lugar a doble imposición ni a excesos fiscales" [14].

Colocadas essas linhas gerais sobre igualdade, alguns desses postulados serão clarificados a seguir, com o estudo do princípio da capacidade contributiva.


II. CONSIDERAÇÕES SOBRE O PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA.

Conforme se destacou anteriormente, o princípio da igualdade no seu aspecto material impõe que a dessemelhança fática apurada entre indivíduos seja convertida em tratamentos estatais potencialmente diferentes entre eles. Já foi visto também que um problema que deriva dessa concepção é saber se um critério de desigualdade é justo, bem como se a eleição desse critério guarda pertinência lógica com os resultados que se pretende alcançar, além da conformidade deste com o sistema constitucional.

Nada obstante essa dificuldade prática, o princípio da igualdade material é uma premissa de justiça e, por assim ser, foi recepcionado em todo o ordenamento [15]. No Direito Tributário, a igualdade material se realiza mais concretamente por meio do princípio da capacidade contributiva [16]. O texto constitucional brasileiro de 1998 alude à capacidade contributiva no seu art. 145, §1º, assim redigido: "Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte". A partir daí, definiu-se capacidade contributiva como o dever colocado a cada um de contribuir para o gasto público na medida de suas possibilidades econômicas. Como se verá em seguida, esse, no entanto, é apenas um dos dois vieses do princípio.

II.1. O viés quantitativo da capacidade contributiva.

O primeiro sentido da capacidade pode ser chamado de quantitativo, pois remonta essencialmente aos elementos quantitativos dos tributos [17]. Trata-se do senso comum [18], ou seja, pela capacidade contributiva o cidadão contribui em razão de sua riqueza. Como assevera José Marcos Domingues de Oliveira, neste caso, a capacidade contributiva funciona como "critério de graduação e limite do tributo" [19].

Vê-se, pois, que, aí, a riqueza foi eleita como discrímen entre os indivíduos no plano fiscal. Ora, tendo em conta a lição de Karl Larenz, o fator de discriminação deve ser razoável / proporcional para efeitos da igualdade. A riqueza é, sem dúvida, o principal critério diferenciador no âmbito do Direito Tributário [20] e, portanto, revela-se discrímen juridicamente apto a servir de base para eventuais tratamentos desiguais de contribuintes perante o Fisco. É esse aspecto da capacidade contributiva que justificará em grande parte a adoção de alíquotas progressivas nos impostos, conforme adiante se tentará demonstrar.

Apesar de a riqueza ser hoje considerada o discrímen básico para ordem tributária (em total atenção à capacidade contributiva), não foi ela o critério desenvolvido a priori para justificar a imposição diferenciada entre os indivíduos [21].

Durante muito tempo acreditou-se que o contribuinte deveria arcar com os gastos públicos tendo em conta a utilidade que lhe derivava das prestações do Estado (teoria da equivalência) [22]. Portanto, quem recebesse mais pagaria mais.

"Tal afirmación refleja claramente el ideario económico liberal o individualista al que responde. El tributo trata de asimilarse a la imagem del precio pagado libremente entre indivíduos libres en un mercado de libre concurrencia. En este mercado cada individuo paga el precio de un bien porque de él deriva una utilidad. Porque con él satisface una necesidad. El cambio del bien por el precio se hace en tanto sea vantajoso para las dos partes" [23].

Duas foram as críticas lançadas a essa teoria. Em primeiro lugar, é factível que certos serviços são fornecidos a título universal, não sendo possível avaliar qual o proveito tirado por um determinado contribuinte em específico. Destarte, a teoria só funcionaria bem para os tributos vinculados – como as taxas e as contribuições de melhoria, por exemplo –, nos quais os serviços são prestados uti singuli, mas não ajudaria, por outro lado, a diferenciação entre pessoas no campo dos tributos não vinculados – notadamente os impostos [24]. Em segundo lugar, é difícil definir com precisão (ou, pelo menos, a ponto de justificar uma diferença de tratamento tributário) qual o grau de benefício auferido em razão de um ato do Poder Público. Isso ocorre pelo simples motivo de que as pessoas têm gostos e necessidades diversos e, portanto, a utilidade para um pode ser a inutilidade para outro. Seguindo este raciocínio, o valor do benefício seria atribuído pelo Estado, ad hoc, e poderia não encontrar paralelo na realidade, afastando-se, portanto, da justiça (valor que lhe deveria ser originalmente informador) [25].

A prestação de serviços divisíveis já estava devidamente justificada pelo princípio da equivalência. Considerando a dificuldade da aplicação desta teoria aos tributos não vinculados, buscou-se uma nova construção teórica que pudesse dar aporte à constatação singela de que os cidadãos deveriam contribuir diferentemente [26]. Só então a riqueza foi eleita como fator de discriminação (ainda que de forma distante da configuração atual). Passou-se a defender que, quando da prestação de serviços indivisíveis, os indivíduos contribuiriam em quantidades proporcionais a sua capacidade econômica, não se devendo ter em consideração, para fins de graduação do tributo, os benefícios advindos da atividade do Poder Público [27]. Assim, começou-se a crer que, ao menos hipoteticamente, o descompasso entre as situações financeiras poderia indicar um parâmetro hábil a desigualar os contribuintes de impostos (ou de qualquer outro tributo não vinculado), porque os mais ricos se utilizariam mais de algumas prestações estatais, tais como as desenvolvidas em favor da proteção da propriedade privada e do acesso à justiça. Como se observa, a idéia de capacidade contributiva ainda estava bastante atrelada ao conceito de utilidade auferida pela prestação de serviços públicos. Com o tempo, entretanto, esse enlace foi sendo desfeito.

Para tanto, desenvolveram-se as teorias do sacrifício [28]. A idéia geral dessas construções doutrinárias se sustenta no fato de que a igualdade dos homens deve se refletir na intensidade do sacrifício sofrido no momento do custeio do Estado. Isso significa dizer que cada um suportará não a mesma soma numérica (que se expressaria por um valor fixo do tributo, como, por exemplo, mil reais) – pois isto importaria necessariamente que quem detivesse maior capacidade econômica suportasse uma carga menor do que aquela suportada por quem detivesse menos patrimônio –, mas, ao contrário, que determinada pessoa pagaria tributo em quantidade proporcional à sua capacidade, de modo que, ao final, o sacrifício suportado por cada membro da coletividade fosse rigorosamente o mesmo. Tendo em conta esta mesma abstração teórica, formularam-se a teoria do sacrifício igual e do sacrifício proporcional.

"De acuerdo con la teoría del sacrifício igual, los impuestos deben repartirse de forma que todos los individuos sufran, en términos de utilidad detraída por el tributo, un sacrificio igual. (...)

La teoría del sacrificio proporcional puede entenderse como una simple variante, perfeccionada, de la expuesta. Según ella, cada individuo ha de desprenderse al pagar el impuesto de una dosis de utilidad igual, en proporción a la dosis total de utilidad que él detenta, a aquélla de la que se ven privados los demás miembros de la comunidad" [29].

Deixando de tomar o indivíduo como ponto de referência e passando a considerar a comunidade como um todo, desenvolveu-se, ainda, a teoria do sacrifício mínimo, segundo a qual a repartição da carga tributária dos impostos deveria importar, como um todo, o menor sacrifício possível (daí, inclusive, o nome que se deu à teoria). Neste sentido, tanto melhor seria quanto menor fosse o número de indivíduos instados a participar da subvenção aos gastos públicos. A melhor maneira para atingir este fim seria tributar somente os mais ricos, pois a mesma quantidade de tributo seria custeada pelo menor número de pessoas possível e, portanto, a sociedade sofreria, em conjunto, um sacrifício mínimo.

Contra essas teorias não se pode opor, por certo, a impossibilidade de aplicação aos tributos não vinculados (aliás, elas foram desenvolvidas exatamente para dar cabo da dificuldade que adveio da aplicação da teoria da equivalência aos impostos), mas permanece a crítica já feita à teoria da equivalência no que tange à dificuldade de pontuar, na prática, o conceito e o valor do benefício, por conta da diversidade de necessidades, sensações e gostos [30]. Apesar da imprecisão, essas teorias ainda têm considerável eco na doutrina e na jurisprudência e ajudaram a solidificar a obrigatoriedade da imposição progressiva como conseqüência dos princípios da igualdade e da capacidade contributiva [31].

Além das teorias da equivalência e do sacrifício, eminentemente econômicas (ou objetivas), existe pelo menos um outro argumento, de cunho jurídico e sociológico (ou subjetivo), para a eleição da riqueza como discrímen principal do sistema tributário, que é a solidariedade. O segundo pós-guerra foi marcado por intensa aproximação entre a Moral e o Direito, movimento denominado de virada kantiana. Depois que Hitler subiu ao poder e promoveu todo o Holocausto dentro dos estritos ditames legais, a comunidade jurídica percebeu que os ordenamentos precisavam ser algo mais do que apenas um sistema formal de normas, carecendo de fatores de legitimação que os tornariam verdadeiramente uma tábua axiológica das sociedades (vulgarmente, os direitos fundamentais). Quer dizer, tornou-se imperioso que os valores maiores de cada grupo social servissem de elemento informativo, conformativo e interpretativo de todo o arcabouço normativo [32]. Os horrores do nazi-fascismo trouxeram a compreensão posterior de que o Direito persegue a proteção do homem e que, em sendo assim, não eram as relações patrimoniais (entre elas, destaque-se, a relação tributária), mas, ao revés, as situações existenciais, que deveriam ser a pedra de toque do Direito. Esse câmbio de perspectiva elevou a dignidade da pessoa humana ao centro dos ordenamentos.

Em consonância com essa nova concepção, a Constituição brasileira de 1988 consagrou a dignidade humana como fundamento da República e, como seu objetivo fundamental, formar uma sociedade solidária (CF/88, art. 3º, I). É legítimo admitir que a solidariedade é, portanto, um meio para consecução da dignidade da pessoa humana. De forma geral, o dever de solidariedade decorre da conscientização de que a pessoa não é um ser descontextualizado, mas, ao contrário, sua existência é influenciada pelo todo e, em particular, por aqueles que a rodeiam, tornando-se relevante conceber o outro como um igual e perseguir a realização do interesse comum [33].

O Direito Tributário não ficou imune a essa releitura existencial do Direito [34]. No que tange mais especificamente à imposição segundo à capacidade, em última instância, é possível reconduzir a ela o dever de contribuir genericamente para os gastos públicos em razão de sua riqueza [35]. Em outras palavras, aqueles com mais recursos financeiros tributáveis, em atenção às impossibilidades e contingências dos seus pares e ao interesse comum, deveriam assumir uma carga de exação maior.

A teoria da solidariedade, justificando a riqueza como critério de diferenciação no campo tributário, foge às críticas formuladas tanto à teoria da equivalência como às teorias do sacrifício, porque não depende de qualquer premissa econômico-objetiva para constatar que as condutas estatais, em prol da preservação da coletividade, não podem deixar de observar as peculiaridades de cada pessoa. Trata-se, como já se afirmou, de teoria com substrato sociológico.

Mas sua maior vantagem talvez seja também seu maior problema: a abstração do conceito de solidariedade não ajudará o legislador ou o intérprete a definir exatamente qual a técnica de diferenciação mais adequada, ou seja, se a proporcionalidade ou a progressividade, por exemplo. De qualquer maneira, mais do que uma construção de fundamentação ou de justificação, tem-se na teoria da solidariedade uma fonte de legitimação para a cobrança diferenciada.

II.2. O viés qualitativo [36] da capacidade contributiva.

Além de servir como parâmetro para a definição dos elementos quantitativos dos tributos, o princípio da capacidade contributiva também é pressuposto da tributação [37]. Por isso alguns autores falam em capacidade contributiva absoluta, para se referir às hipóteses em que exista de fato manifestação de riqueza apta a ser tributada, ou, em outras palavras, em que exista efetiva capacidade para contribuir [38]. Não se tratar de apurar em qual medida cada indivíduo vai contribuir, mas se determinada pessoa ou grupo de pessoas pode contribuir.

Outra também é a conotação dada à expressão "capacidade contributiva absoluta", qual seja, a de causa do tributo. Em outras palavras: surge para o legislador o dever de só escolher como fatos geradores de tributos aqueles que revelem capacidade econômica (daí ser ela tida como causa) [39]. Como se vê, é uma faceta que decorre de considerar a capacidade contributiva como pressuposto do tributo e, por isso, ao lado da perspectiva anterior, será tratada neste tópico.

A fundamentação deste viés da capacidade contributiva repousa na tutela do mínimo existencial. Os fatores para apurar capacidade econômica são muitos: renda percebida, renda acumulada, número de imóveis que se possui etc. No entanto, é perceptível que parcela destes bens que compõe no todo a riqueza de um cidadão são empregados para seu próprio sustento e, em havendo, o de sua família. Tal parcela não pode ser alvo de tributação, sob pena de se infringir o mínimo existencial, e, com isto, a dignidade humana. Assim, é correto postular que a atividade impositiva só poderá recair legitimamente sobre um cidadão a partir de determinado ponto de sua riqueza [40].

Alem da tutela do mínimo existencial, pode-se destacar como fundamento do aspecto qualitativo do princípio da capacidade contributiva a supremacia e indisponibilidade do interesse público. Explica-se. A Administração tributária (como de resto toda a Administração Pública) deve atuar em prol da coletividade, em prol da proteção e da concretização dos direitos fundamentais dos indivíduos [41]. Essa é, em última análise, a finalidade do Estado. Para desempenhar corretamente o seu papel, o Poder Público precisa de meios, sejam materiais (recursos, estruturas físicas, aparelhagens, pessoal etc.), sejam jurídicos (poderes, prerrogativas, faculdades etc.). Tem-se, pois, de um lado, o que se convencionou chamar de interesse público primário – isto é, promoção dos direitos fundamentais pelo Poder Público – e, de outro, o interesse público secundário – quer dizer, a proteção da situação jurídica do Estado em si (notadamente do erário). Quando se afirma a supremacia e a indisponibilidade do interesse público tem-se em mente não o interesse público secundário (interesse da pessoa jurídica de direito público), mas sim o interesse público primário, porque, ocorrendo o inverso, estar-se-ia priorizando os meios em detrimento dos fins [42].

Pois bem. É evidente que a arrecadação de recursos por conta do poder impositivo é um meio para a implementação dos direitos fundamentais e, por isso, caracteriza-se como interesse público secundário. A dignidade da pessoa humana – valor guarnecido pela tutela do mínimo existencial – foi alçada, com a edição da Constituição Federal de 1988, a fundamento da República (CF/88, art. 1º, III), constituindo-se em interesse público primário [43]. Não faz sentido, pois, que se pretenda tributar sem levar em conta exatamente aquilo que se considera como valor informativo de todo o sistema [44]. Em suma: onde não houver riqueza tributável (por necessária observância dos padrões mínimos de sobrevivência) não há indícios de capacidade econômica e, conseqüentemente, não poderá haver manifestação do poder aquisitivo (daí se falar em capacidade contributiva também como pressuposto ou causa da atividade tributária).

Esse viés da capacidade contributiva ganha maior relevância ainda quando se conclui que o Poder Judiciário tem o dever de anular disposições normativas que tenham tomado com fato imponível um fato ou ato jurídico que não revele substrato econômico, i.e., que não tenha em conta a capacidade contributiva [45].


III. A PROGRESSIVIDADE E A GRADUAÇÃO DOS TRIBUTOS.

Observando tanto o aspecto quantitativo como o aspecto qualitativo da capacidade contributiva, os economistas e também os doutrinadores do Direito Financeiro desenvolveram um conjunto de técnicas que ajudam a materializar o princípio da capacidade contributiva. Entre elas pode-se citar a proporcionalidade e a progressividade [46].

Ter-se-á tributo proporcional quando for aplicada a mesma alíquota indistintamente a todos os contribuintes, independente da base de cálculo. Assim, a proporcionalidade será conseqüência do aumento do valor da base de cálculo, e não da diferença entre alíquotas. O tributo será progressivo quando as alíquotas variarem em razão da flutuação da base de cálculo, tornando o valor a ser pago pelo contribuinte a título de exação progressivamente maior conforme aumentar a base de cálculo.

E por que se disse que a progressividade é uma técnica de densificação da capacidade contributiva? Porque a progressividade contempla a necessidade de graduar a tributação de acordo com a capacidade econômica dos cidadãos e, a um só tempo, permite que sejam levadas em consideração detalhes subjetivos do contribuinte que justificam a não incidência do poder impositivo.

Todavia, como se viu anteriormente, para que as pessoas sejam legitimamente discriminadas é preciso que o fator de discriminação escolhido para apartá-las seja considerado de pe se racional. Já foi demonstrado à exaustão que a riqueza é um critério justo para desigualar os indivíduos no campo fiscal (ainda que, por vezes, não se possa determinar com precisão como esse fator vai atuar). Mas, além disso, faz-se cogente que esse critério possa ser correlacionado lógica e abstratamente com a disparidade que produz a partir da aplicação do discrímen, devendo-se respeitar, adicionalmente, todos os demais valores constitucionais (que não a igualdade). Adiante tentar-se-á demonstrar que existe uma correlação lógica entre a riqueza como fator de discriminação e a progressividade como conseqüência dessa diferenciação, bem como a harmonia in concreto da aplicação da progressividade com a tábua axiológica do sistema normativo.

III.1. Teorias de justificação da progressividade.

Dizer que a progressividade tem fundamentação no princípio da capacidade contributiva não é suficiente, porque a própria capacidade contributiva enfrenta problemas de justificação. Nada obstante, mesmo as construções destinadas a dar aporte doutrinário à progressividade partem da percepção da disparidade entre capacidades econômicas como pedra de toque da discussão. É bom lembrar que, por si só, a proporcionalidade já garantiria que contribuintes financeiramente diferentes respondessem a cargas tributárias diferentes, efetivando-se, pois, o princípio da capacidade contributiva (tanto se considerada absoluta como relativamente); então, resta entender por que é necessário adotar a progressividade, ou seja, compreender a razão pela qual não é suficiente para a satisfação da justiça, como valor, e da igualdade, como princípio – e, mais especificamente, da capacidade contributiva – a aplicação da técnica da proporcionalidade.

A maioria da doutrina aponta as teorias do sacrifício igual e proporcional como justificadores da progressividade [47]. Na verdade, se bem compreendidas, elas não explicam por que os tributos precisam ser cobrados progressivamente mais daqueles com riquezas maiores, mas tão-somente por que a riqueza se justifica como critério de diferenciação entre os indivíduos para fins de Direito Financeiro e Tributário. Em outros termos: elas embasariam tanto a proporcionalidade como a progressividade [48]. É por esse motivo que elas foram topograficamente analisadas quando se tratou do princípio da capacidade contributiva [49]. A confusão, no entanto, é aceitável – embora tenha conseqüências práticas (v. notas de rodapé 38 e 39) –, visto que a teoria da utilidade marginal – usada para justificar especificamente a progressividade – também parte de algumas premissas tomadas pelas teorias do sacrifício, sendo a recíproca igualmente verdadeira [50].

Pragmaticamente a teoria da utilidade marginal pode ser resumida na seguinte proposição: o valor de determinada fração de riqueza será sempre menor que o valor dado à fração de riqueza imediatamente anterior [51]. Exemplificando: o valor reputado pelo contribuinte à ultima nota de um real que compõe seu patrimônio de mil reais é inferior ao valor da penúltima nota de um real; por sua vez, a penúltima nota tem valor inferior à antepenúltima e assim por diante. Logicamente, quando se fala em valor, não se trata do poder de compra, pois este será sempre o mesmo. Tem-se, assim, um conceito relacional.

As críticas à teoria da utilidade marginal são enfadonhamente repetitivas quando comparadas às formuladas ante as teorias fundamentadoras da riqueza como discrímen legítimo na seara da tributação: o elevado nível de subjetividade que permeia a construção dificulta sua aplicabilidade.

"Porém, apesar de serem desconhecidas as intensidades das sensações, não é absolutamente impossível chegar a algumas ‘induções’ sobre a estrutura da curva de utilidade: é fora de discussão que o andamento normal da curva coletiva da utilidade da riqueza é decrescente, dado que as sucessivas doses de riqueza oferecem uma utilidade menor relativamente às precedentes" [52].

Para evitar a repetição, faz-se remissão, aqui, ao item II.a.

Aceitando-se como verdadeira – pelo menos sob a óptica da Economia e independentemente de considerações subjetivas – a curva de utilidade da riqueza, a progressividade é justificada. Mas ainda resta uma última indagação: por que escolher a progressividade em detrimento da proporcionalidade?

A resposta é simples e objetiva. É forçoso reconhecer que, a despeito da já referida função arrecadatória – responsável por subsidiar a implementação e a garantia dos direitos fundamentais –, o Direito Tributário tem mais um papel importante aos olhos do Estado Democrático de Direito tal como hoje concebido, que é a eliminação das desigualdades sociais através da redistribuição de rendas [53]. Ou seja, também ao Direito Tributário é reservada parcela significativa da realização da justiça, um valor informador de qualquer sistema jurídico, ao lado da segurança. Não é bastante, portanto, que o Direito Tributário busque arrecadar sem intervir na ordem social e no comportamento dos indivíduos. Vale ressaltar que parte da doutrina qualifica um sistema fiscal como mais ou menos eficiente tendo em conta justamente essa função de ingerência [54]. Apesar de a redistribuição de renda ser uma finalidade do Direito Tributário, existem certos limites doutrinários e pragmáticos à utilização indiscriminada da progressividade. No entanto, é certo que a necessidade de redistribuição de renda e a eliminação da pobreza justificam um sistema tributário progressivo [55].

Pontue-se mais uma vez, em resumo das idéias até aqui apresentadas: não é a capacidade contributiva que legitima a opção pela progressividade, porque, como já dito, ela também fundamenta a proporcionalidade. A contribuição na razão das possibilidades individuais – seja sob os auspícios da teoria da equivalência, seja sob os auspícios das teorias do sacrifício – apenas legitima a eleição da riqueza como critério de discriminação para fins tributários. Por outro lado, o que justifica a progressividade como técnica de densificação da diferenciação com base na riqueza é a teoria da utilidade marginal e a escolha entre progressividade e proporcionalidade passa a ser questão de política legislativa de redistribuição de renda, respeitando, no entanto, algumas características ontológicas dos tributos.

III.2. Limites à progressividade: algumas linhas sobre arbitrariedade, confisco, direito ao exercício de atividades lícitas.

Contribuir para os gastos públicos é um dever fundamental de todos os indivíduos. Por outro lado, o poder impositivo é limitado pela capacidade contributiva de cada um. Tem-se, assim, um verdadeiro campo de conflito entre a necessidade de contribuir para os gastos públicos e a intensidade dessa contribuição. Qual é o limite do exercício legítimo da tributação? Até onde vai a garantia constitucional do contribuinte?

Um primeiro limite às alíquotas progressivas é a vedação à arbitrariedade. Valem, aqui, os mesmos argumentos sustentados na proibição de estabelecimento de privilégios odiosos, ou seja, a progressividade não pode ser aplicada em desacordo com o princípio da igualdade. Assim, para instituir alíquotas progressivas o legislador ordinário só poderá ter como fator de discriminação elementos que indiquem a presença de riqueza tributável, e nada mais. Destarte, deverá ser declarada inconstitucional uma lei que introduza alíquotas progressivas tendo em conta a cor da pele do contribuinte – por ferir a vedação constitucional à discriminação racial.

Para ser legítima, a progressividade não pode, ainda, ser tão elevada a ponto de imputar ao contribuinte a perda de seu patrimônio (aqui compreendido em sentido comum, e não técnico). Assim, as alíquotas não podem ser tão altas a ponto de configurar o confisco da propriedade privada, malferindo o disposto no art. 150, IV, da Constituição Federal [56]. Apesar de esse limite decorrer de determinação expressa da Lei Maior, não há parâmetros seguros para indicar a partir de onde a tributação dá lugar ao confisco [57], motivo pelo qual a aplicação desse limite como controle à progressividade é problemática [58].

Além de ser difícil aferir quando uma alíquota é confiscatória em relação a um tributo, é também pragmaticamente complicado pontuar em que ocasiões a soma das exações praticadas em face de um contribuinte é confiscatória, isto é, quando a carga contributiva geral suportada por um indivíduo é lesiva ao seu direito de propriedade [59]. Para evitar esse tipo de acontecimento, o Tribunal Constitucional alemão considera que a inserção de "cláusulas de eqüidade" é mecanismo apto a evitar que, no caso concreto, o confisco se produza [60].

Por fim, deve ser tido como limite à progressividade o direito ao exercício de atividades lícitas [61]. Não é legítimo que o poder impositivo, ao instituir alíquotas progressivas em determinado caso, proíba ou inviabilize a consecução de dois pilares da ordem econômica: o trabalho e a livre iniciativa, sob pena de se violar os arts. 1º, III, e 170, caput, da Constituição [62].

III.3. Progressividade no Imposto de Renda.

Em caráter preliminar à discussão da progressividade no Imposto de Renda, cumpre fazer uma distinção entre impostos pessoais e impostos reais.

De acordo com Griziotti,

"Desde el punto de vista de la distribución de la carga, es real el impuesto cuando grava en una cuantía fija y uniforme la capacidad contributiva sin considerar la riqueza total que el contribuyente gana o gasta y las demás circunstancias que manifestan más completamente la capacidad, según la apreciación política que de ellas haga el legislador. Es personal el impuesto en el caso contrario" [63].

Fica claro, pois, que o imposto sobre a renda é tipicamente pessoal. Aliás, é o próprio conceito de renda que ajuda a compreender esse enquadramento. Vejamos. A Constituição Federal, por meio do seu art. 153, III, comete à União o poder para instituir imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza. Portanto, o fato gerador desse imposto é a renda e/ou os proventos de qualquer natureza. Diante disso, parece conveniente analisar o conceito de "rendas e proventos de qualquer natureza" que esclarece a sistemática tributária.

Uma análise casuística do texto constitucional vigente demonstra que a expressão "renda e proveitos de qualquer natureza" é utilizada nos mais diversos sentidos possíveis, até em decorrência de ser um conceito jurídico indeterminado [64]. A falta de técnica do constituinte (originário e derivado) não pode, no entanto, afastar o esforço de tentar precisar o que, para fins tributários, a Constituição pretende tratar como fato gerador e base tributável do imposto sobre a renda. Partindo de premissas de hermenêutica constitucional diversas, foram construídas três grandes teorias sobre o conceito de renda: tem-se a teoria da renda-produto em sentido amplo, a teoria da renda-produto em sentido estrito e a teoria da renda-acréscimo.

Considerando o escopo deste trabalho, é suficiente afirmar que a doutrina majoritária é a que entende, sob à luz da Carta de 1988, que renda é acréscimo patrimonial (teoria da renda-acréscimo), ou seja, o conceito de renda abrangeria também o conceito de provento, formando um conceito único. Essa posição é a que melhor se harmoniza com (i) o sistema de competências tributárias e (ii) as demais disposições constitucionais que reverenciam os termos "renda" e "proventos". O uso da palavra "acréscimo" não é despropositado; acréscimo indica o resultado positivo entre o que se obteve durante determinado tempo e o que se tinha antes [65], e, desta feita, tem em conta não só a natureza das receitas, mas também a natureza das despesas. No mais, é importante ressaltar que a abrangência do conceito é intencional. A Constituição determina que, sempre que for possível, os impostos tenham caráter pessoal, ou seja, a Constituição obriga que todo imposto deva ter conta o maior número possível de manifestações de riqueza que possam ajudar o Estado a inferir que determinado indivíduo possui aptidão contributiva (capacidade contributiva global). Assim, o conceito de "renda" deve ser o mais abrangente possível, em prol da personalização constitucional dos impostos [66].

O conceito de renda, pois, por si só, já é uma concretização da capacidade contributiva (e, assim, cumprimento do que dispõe o art. 145, §2º, da CF/88). Mas é mandamento constitucional adicional que o imposto sobre a renda seja graduado de acordo com a técnica da progressividade (CF/88, art. 153, §2º, I [67]), vale dizer, além do comando dirigido ao legislador infraconstitucional no sentido de que tanto o fato gerador como a base de cálculo do imposto sobre a renda devam contemplar o maior número de aspectos da vida do indivíduo que demonstrem riqueza – a fim de apurar a sua capacidade contributiva global –, o texto constitucional impõe complementarmente que o princípio da capacidade contributiva seja concretizado através da aplicação da progressividade, ou seja, estabelecendo-se alíquotas progressivamente maiores para base de cálculos maiores. O legislador ordinário deveria, pois, dar cumprimento a esses dois ditames constitucionais (personalização dos imposto, sempre que possível, e progressividade), tendo em conta a máxima efetividade possível do princípio da capacidade contributiva. Deveria; contudo, não o fez.

Em primeiro lugar, com a edição da Lei nº 7.713/88, a pretexto de simplificar o tratamento normativo da matéria, o legislador infraconstitucional, em desatenção à sistemática constitucional do imposto de renda, aproximou o conceito de renda ao de rendimento, retirando o grau de personalização devido ao referido tributo (realicização), na medida em que ficou definido que o imposto sobre a renda incidiria sobre o rendimento bruto, sem qualquer redução – ou seja, substituição das deduções específicas (como as de educação, saúde e moradia) por um desconto-padrão genérico (que não tem em conta, por evidente, as situações individuais de cada contribuinte) –, e, além disso, revogaram-se todos os outros diplomas normativos que tivessem concedido isenções ou exclusão de rendimentos, qualquer que fosse sua natureza [68]. Portanto, a inconstitucionalidade dessa Lei é sustentável com base em três argumentos: a) o aspecto qualitativo do princípio da capacidade contributiva, que bastaria para justificar que as receitas necessárias à subvenção do mínimo existencial não fossem alvo da tributação; b) a compulsoriedade da personalização dos impostos, desde que cabível e c) a vedação constitucional ao confisco [69]. Isso porque a receita que foi somada ao patrimônio do contribuinte e, depois, convertidas em gastos destinados à subsistência não podem ser considerada acréscimo patrimonial e, assim, não foram abarcadas pelo constituinte quando este limitou os contornos gerais do fato gerador e da base de cálculo do imposto sobre a renda. Tem-se uma despesa indispensável e inevitável, que não é fruto de escolha, mas da necessidade de suprir um padrão mínimo de sobrevivência, e, portanto, não deve ser considerada [70].

Em segundo lugar, quanto à progressividade, o legislador poderia tê-la implementado de três modos diferentes, que constituem os tipos de progressividade conhecidos pela doutrina. São eles: a progressividade por escala, em que se divide a riqueza tributável em porções e a cada uma dessas porções é aplicada uma cota determinada, sempre maior em relação à cota equivalente à porção imediatamente anterior, até que, a partir de determinada porção de riqueza, o imposto passa a ser proporcional (dada a impossibilidade de se preverem alíquotas que contemplem todas as situações de riqueza total existentes); a progressividade por classes, segundo a qual se aplica a toda a riqueza uma alíquota correspondente; e a progressividade contínua, pela qual são fixadas cotas máximas e mínimas e as frações intermediárias de riqueza são tributadas por uma alíquota a que se chega a partir de uma fórmula que tem em conta aqueles limites máximo e mínimo.

Pois bem. No Brasil, o legislador optou pela progressividade por classes, subdividindo as riquezas tributáveis em três grandes faixas, de acordo com os rendimentos do trabalho. Ora, é factível que a existência de apenas três classes contribui irrisoriamente para a efetivação do princípio da capacidade contributiva ou mesmo para a concretização do objetivo constitucional de redistribuição de renda. Em aplicação da progressividade, por si só, não é suficiente para concretizar a justiça tributária já que a diversidade de condições financeiras do país não é atendida com a classificação dos contribuintes em três classes, notadamente quando a última faixa de riqueza não extrapola os dez salários-mínimos. Não há redistribuição de renda (um dos objetivos da instituição da progressividade) quando aqueles que ganham dez, cem ou mil salários-mínimos são enquadrados sob a mesma classe, aplicando-se-lhes, pois, a mesma alíquota para fins de cálculo do imposto de renda devido; da mesma forma, não há redistribuição quando apenas um salário-mínimo é bastante para produzir uma diferença de mais de 10% (dez por cento) nas alíquotas. Faz-se necessária a criação de faixas intermediárias.

Ademais, ainda que se entenda a progressividade como princípio, resta inconstitucional o arcabouço normativo atual do imposto sobre a renda. Como princípio, a progressividade coloca como estado ideal de coisas o exercício do poder impositivo de forma que os contribuintes mais ricos arquem com os gastos público de maneira progressivamente maior do que os contribuintes menos abastados. Fato é que isso não significa que todos os impostos devam ser progressivos – até porque, como será demonstrado, a própria natureza das coisas impede que isso ocorra [71] –, mas que, cabendo a progressividade, ela deve ser aplicada. Em tese, a aplicação da progressividade aos impostos pessoais compensaria a impossibilidade de aplicação desta técnica aos impostos reais, formando um sistema, no todo, progressivo [72]. Mas, quando a progressividade é maltratada em sede de impostos pessoais, dados à aplicação daquela técnica, há comprometimento da progressividade do todo: com a existência de apenas duas faixas de contribuintes e tendo em conta a proximidade entre elas, o imposto de renda deixa de ser progressivo e passa a ser regressivo; por tabela, o sistema deixa de ser tão progressivo quanto possível, maculando um princípio constitucional-tributário.

III.4. A progressividade nos impostos reais.

a) Progressão de alíquotas com fins extrafiscais: o ordenamento constitucional antes da EC nº 29/2000.

Na redação original da Constituição de 1988, a técnica da progressividade aplicada aos impostos reais tinha fins meramente extrafiscais, vale dizer, possuía uma finalidade não-arrecadatória, regulatória, indutora do comportamento dos indivíduos. Uma análise sistemática dos arts. 153, §4º, caput [73], 156, §1º, caput [74] e 182, §2º e §4º, II [75], fazia concluir que o legislador só poderia se servir de alíquotas progressivas para promover a função social da propriedade, tanto rural quanto urbana. O proprietário que não der destinação social adequada à sua terra sofreria uma sanção através da aplicação da progressividade no tempo. Cabe aqui um registro.

O art. 3º do CTN (anterior à Constituição de 1988) exclui a possibilidade de emprego da tributação como instrumento de punição do indivíduo [76]. Somado a isso, também a doutrina, sem dissidências, sustentava que o tributo não poderia ter cunho sancionatório. O art. 182, §4º, II, se vale da expressão "sob pena de" para se referir à cobrança do IPTU com alíquotas progressivas no tempo, subvertendo essa lógica acadêmica, ou seja, o proprietário de terreno não aproveitado ou mal aproveitado, tendo em conta o que dispõe o plano diretor, arcará, a título de tributação, com uma quantia que engloba o valor do IPTU na razão do valor venal do imóvel e, adicionalmente, a multa pela violação à função social da propriedade (resultado da progressão de alíquotas sobre o valor venal daquele imóvel, apurada em razão do tempo). Diante disso, é preciso reconhecer que a Constituição Federal, cujas normas são hierarquicamente superiores às demais normas do ordenamento, criou uma exceção à regra contida no CTN e admitiu, expressamente, a possibilidade de punição por meio de tributo, mas somente nesse caso [77]. Como explicar isso?

A promoção da função social da propriedade pelo Direito Tributário não é descontextualizada. Sem dúvida alguma, a proteção da pessoa humana e o amparo ao mínimo existencial fizeram com que o Direito Civil desenvolvesse a teoria da funcionalização, promovendo-se uma verdadeira releitura de institutos nucleares, tais como a propriedade, o contrato e a empresa. Aqui, cumpre analisarmos a função social da propriedade.

Essa perspectiva atual de compreensão do Direito decorre em grande parte da postura que os Estados precisaram assumir diante das crises econômicas e sociais por que passaram os povos: não era mais cabível o absenteísmo do Estado-observador, que só interviria em caráter de urgência e de maneira mínima. Fez-se mister o Estado-garantidor, que regulasse não somente para os momentos patológicos, mas primordialmente para garantir a sustentabilidade da harmonia social. Romper a barreira do individualismo significou, entre tantas circunstâncias, não haver mais espaço para os direitos absolutos: a propriedade sofreu um duro golpe.

Sempre existiram normas que comprimiam a atuação do proprietário, notadamente em face do Estado. Mediante indenização, por exemplo, o Poder Público poderia retirar um imóvel de um particular, acabando mesmo por suprimir, neste caso, o direito de propriedade. Havia ainda as constrições de menor porte, tais como as servidões administrativas ou os tombamentos. No campo das relações privadas não era diferente: as normas sobre passagem forçada e sobre árvores limítrofes, enfim, todos os direitos de vizinhança expõem bem estas limitações. São todos vieses do que se identifica como limites externos ao direito de propriedade, típicos do posicionamento contemplativo do Estado nos séculos XVII e em parte do XVIII, que correspondem à máxima de que o proprietário tudo pode até esbarrar em alguma previsão legal.

A partir do século XIX e XX, criaram-se métodos de limitação interna ao domínio, entre as quais se enquadra a função social da propriedade [78]. Lado a lado com as constrições legais, foram instituídos objetivos que deveriam ser alcançados pelo exercício do domínio [79]; tudo quanto fosse feito em contrário a eles deveria ser tomado como abusivo, ilícito ou ilegítimo.

Claro que o conteúdo do direito de propriedade é tão elástico que não comportaria previsão normativa exaustiva: a criatividade humana sempre superará as expectativas do legislador. Por isto, tratou-se de formular este núcleo inafastável de normas de concretização do senhorio em conformidade com os demais direitos. Tem-se menos uma fórmula estrutural exigida e mais um real substrato, essência, sem o qual, embora não deixa de existir, o direito de propriedade não permanece digno do dever de proteção do Estado.

O Direito Tributário acompanhou a evolução: o poder impositivo passou a ser empregado para resguardar a função social da propriedade, em caráter evidentemente extrafiscal. Porém, mais do que isso, a função social da propriedade se alia à solidariedade como fundamento da progressão de alíquotas com finalidade não-arrecadatória.

"El principio de solidariedad fundamenta el principio de capacidad económica desde una perspectiva "subjetiva", basada en último término en el carácter social de la naturaleza humana. Otras construcciones teóricas llegan a un resultado similar con un planteamiento "objetivo"; es decir, atendiendo a la función que debe representar la riqueza" [80].

Assim, a função social da propriedade é elemento constitutivo do próprio dever de contribuir e serve também como parâmetro para graduação dos impostos reais para induzir o comportamento do contribuinte. E só.

b) O entendimento do STF a respeito do tema: leading case RE 153771/MG.

O Supremo Tribunal Federal apreciou a questão da progressividade nos impostos reais em atenção à proliferação de leis municipais que pretenderam utilizar a progressão de alíquotas em razão do valor venal do imóvel, da localização e/ou do uso. Não se tratava, assim, de progressividade no tempo, extrafiscal, mas de progressividade fiscal [81]. Nessa oportunidade, a Corte Constitucional entendeu que tais leis municipais eram inconstitucionais com base em dois argumentos.

O primeiro deles versava sobre a inexistência de autorização constitucional expressa para a adoção da progressividade como técnica de graduação do IPTU em caráter fiscal. O Relator do acórdão, Min. Moreira Alves, seguido pela maioria, afirmou que quando o constituinte desejou que a progressividade fosse aplicada, seja em caráter fiscal ou extrafiscal, manifestou-se de modo inequívoco. Não foi este o caso do IPTU, hipótese em que o constituinte só discriminou o uso da progressividade tendo em conta o fator tempo e para fins de cumprimento da função social e de implementação efetiva do plano diretor dos municípios.

"Portanto, é inconstitucional qualquer progressividade, em se tratando de IPTU, que não atenda exclusivamente ao disposto no art. 156, § 1º, aplicado com as limitações expressamente constantes dos §§ 2º e 4º do artigo 182, ambos da Constituição Federal" [82].

Havia, portanto, dois requisitos cumulativos para a instituição da progressividade em sede de IPTU: que a progressão fosse temporal e que, além disso, ela fosse usada para a promoção da função social da propriedade urbana.

A segunda consideração do Tribunal para julgar inválida lei municipal que previsse alíquotas diferenciadas progressivamente não em razão do tempo, mas baseada em outro critério qualquer, foi a incompatibilidade dessa forma de graduação com as características ontológicas dos impostos reais. Duas foram as premissas adotadas pelo STF para concluir desse modo. Compreendeu-se que a expressão "sempre que possível" que figura no art. 145, §1º, da CF/88 não se refere apenas à obrigatoriedade de que o legislador infraconstitucional adote medidas de personalização dos tributos quando cabível, mas é extensível também à observância do princípio da capacidade contributiva, vale dizer, tal princípio será aplicado se, e somente se, a disciplina do tributo comportar tal incidência. E, como conseqüência direta dessa primeira ponderação, o Relator, seguido pela maioria dos outros Ministros, indicou que os impostos reais não são dados à aplicação da capacidade contributiva, visto que o fato gerador desse tipo de imposto contempla uma manifestação isolada de riqueza, não atentando para as manifestações complementares, que, juntas, formariam a capacidade contributiva global. Confira-se:

"De feito, a parte final do dispositivo em causa repele essa conclusão, porque a Constituição atribui à administração tributária a faculdade de identificar o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte, "especialmente para conferir efetividade a ESSES OBJETIVOS", ou seja, ao objetivo de que os impostos, se possível, tenham caráter pessoal e ao de que esses impostos com caráter pessoal sejam graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, certo é como essa faculdade de identificação só tem sentido quando se trata de imposto de caráter pessoal (...)" [83].

Quanto à inexistência de autorização constitucional expressa para a adoção da progressividade como técnica de graduação do IPTU em caráter fiscal, a decisão do STF pareceu acertada, afinal, como foi destacado, o art. 156, §1º, da CF/88, na redação original, restringia a aplicação de alíquotas progressivas à finalidade extrafiscal. Quanto à incompatibilidade dessa forma de graduação com as características ontológicas dos impostos reais, no entanto, parece que uma das premissas argumentativas adotada é incorreta. Trata-se daquela que afirma que o princípio da capacidade contributiva pode não ser aplicado à determinada espécie tributária, de acordo com suas limitações. A bem da verdade, esse princípio é compatível com todos os tributos previstos na Constituição Federal, desde os impostos reais até as contribuições. Isso porque, como foi visto, a capacidade contributiva tem fundamento tanto na teoria da equivalência – sendo possível, pois, sua aplicação aos tributos vinculados às atividades estatais –, bem como nas teorias do sacrifício e no princípio da solidariedade – permitindo sua incidência nos tributos não vinculados e também nas contribuições.

Mesmo no caso do IPTU, um imposto real, que não leva em consideração a capacidade contributiva global do indivíduo, é necessário reconhecer que o princípio da capacidade contributiva está presente na apuração da base de cálculo. Explica-se. De acordo com o que dispõe o art. 33 do CTN, a base de cálculo do IPTU é o valor venal do imóvel. Este valor, no entanto, é basicamente o resultado da soma do valor venal do terreno e do valor venal da construção [84]. O valor venal do terreno, para ser calculado, leva em consideração os seguintes elementos: tamanho, localização, infra-estrutura existente no local, apenas a título de exemplificação. A seu turno, o valor venal da construção tem como quesitos de formação o padrão da construção (se se trata de edifício de luxo ou popular, por exemplo) e o estado de conservação do imóvel [85].

É um erro acreditar que esses elementos tenham sido escolhidos ao acaso. Todos eles indicam uma possível expressão da riqueza do contribuinte. Pensar de modo diferente levaria à declaração de inconstitucionalidade do próprio IPTU, pois a consagração do princípio da capacidade contributiva na Lei Maior constrange a adoção da riqueza como critério de desnivelamento entre os indivíduos ante o Fisco. Então, não é correto afirmar, como fez o STF, que o princípio da capacidade contributiva é inoperável na sistemática dos impostos reais. Apesar de ser possível que determinado tributo não leve em conta a capacidade contributiva global de determinada pessoa, todos os fatos geradores, em menor ou maior grau, indicam expressões de fortuna. Isso também acontece com os impostos reais. Prova disso são os impostos ditos indiretos, os quais, por tabela, podem ser também enquadrados como impostos reais, considerando que também são levadas em conta apenas manifestações isoladas de fortuna. A melhor técnica de graduação desses impostos em função da capacidade contributiva pode não ser a progressividade – no caso dos impostos indiretos, é a seletividade –, mas isso não significa que neles a capacidade contributiva não incida.

c) Poder constituinte derivado e EC 29/2000: reforma legislativa de decisão judicial [86].

Após reiteradas decisões do STF contrárias à constitucionalidade das leis municipais que pretendiam instituir a progressividade do IPTU em razão do valor venal do imóvel, do seu uso e/ou de sua localização, o Congresso Nacional, investido na condição de Poder Constituinte Derivado, deu nova redação ao art. 156, §1º, da Lei Maior, exatamente para permitir a a progressividade nesses casos. Aqui cabe uma breve digressão sobre o papel e as limitações do Poder Constituinte Derivado.

Tradicionalmente, refere-se ao Poder Constituinte Derivado em contraposição ao Poder Constituinte Originário. Contra a este não seriam oponíveis limites de qualquer ordem, até porque sua atuação seria fundante de uma nova ordem jurídica, não havendo por que e nem como opor limites às novas decisões políticas fundamentais, pois esse era exatamente o objetivo de um Poder Constituinte Originário: inaugurar uma nova ordem, em que a estrutura normativa reflita uma nova axiologia, diferente da anterior, ou apenas represente uma ruptura com a ordem precedente. Por outro lado, a partir do momento em que essas novas decisões políticas são reunidas em um texto constitucional e, em caráter de normalidade, nasce uma vontade social de que a Carta seja revestida de perpetuidade, ou seja, que aqueles sejam os valores pautadores da vida dali em diante. É algo natural, que decorre do próprio anseio geral por segurança jurídica.

Nada obstante, a idéia de perpetuidade não se confunde com a idéia de imutabilidade, e pode acabar ocorrendo que, em determinado ponto de sua vigência, seja necessário rever alguns dispositivos constitucionais por questões de justiça. Tem-se um verdadeiro embate entre segurança e justiça: em uma ponta, o desejo de perenidade da Constituição; em outra ponta, a necessidade de revisão de algumas normas que, mantidas como estão, levariam a um resultado injusto, de todo indesejável. Entra em cena o Poder Constituinte Derivado. Enquanto o Poder Constituinte Originário é um poder de fato, e, por isso, ilimitado, o Poder Constituinte Derivado revela-se uma poder de direito e, ontologicamente, já nasce vinculado às limitações colocadas por uma ordem jurídica que o reconhece e o regula. É, pois, poder condicionado e subordinado, visto que, deve obediência, ao mesmo tempo, aos óbices formais (condicionado) e às normas de fundo (subordinado ou limitado) previstas no sistema [87].

Em razão dessa constante dialética entre a segurança jurídica e a justiça, entre os anseios pela perpetuidade e a necessidade de implementação de mudanças, com vistas a resguardar um conteúdo constitucional mínimo que seja responsável pela essência das decisões políticas fundamentais veiculadas pelas normas constitucionais, formulou-se a teoria das cláusulas pétreas. Trata-se de eleger conceitos, elementos ou formas constitucionais sem os quais a vontade do Poder Constituinte Originário restaria desconfigurada a tal ponto que o conjunto de sua obra seria ofendido ilegitimamente. Desde o surgimento, apontaram-se os prós e os contras dessas cláusulas [88], mas é fato que quase em todo o mundo se reconhece a existência desse núcleo de decisões políticas que caracterizam uma Constituição e que, via de conseqüência, não pode sofrer emenda. Algumas dessas decisões sequer estão positivadas nos textos constitucionais, e, a despeito disso, ainda são marcadas de tamanha fundamentalidade que passam a integrar esse núcleo – é o que se convencionou chamar de limitações implícitas ao poder de emenda.

No Brasil, o Poder Constituinte Originário condensou em um dispositivo constitucional aquilo que deveria ser entendido como cláusula pétrea (CF/88, art. 60, §4º e incisos [89]). De todos os incisos, chama a atenção para esse estudo a vedação à votação de proposta de emenda tendente a abolir os direitos e as garantias fundamentais. É preciso destacar que, além de incidir sobre todos os tributos – e não só sobre os impostos, conforme deixou entender o STF –, o princípio da capacidade contributiva consubstancia um direito fundamental. Em primeiro lugar, é direito fundamental porque nada mais é do que uma roupagem que veste o princípio da igualdade no Direito Tributário. Em segundo lugar, contribuir de acordo com as possibilidades financeiras de cada um é uma manifestação da justiça, um dos valores condutores do sistema, revestindo-se, portanto, de essencialidade. O art. 145, §1º, por tudo que já foi dito, é cláusula pétrea do ordenamento jurídico brasileiro. Quanto a isso, não há maiores divergências. A questão, portanto é saber se a EC nº 29/2000, ao permitir a progressividade do IPTU progressivo, macula o princípio da capacidade contributiva.

Em razão do exposto até então, já se pode afirmar com certo conforto que a resposta é positiva, afinal, os impostos reais não comportam essa técnica de graduação. Alguns motivos são arrolados pela doutrina nesse sentido. O primeiro deles é de cunho pragmático e se relaciona com a própria característica dos impostos reais de não terem em conta a capacidade contributiva global da pessoa, podendo a progressividade, se aplicada a eles, levar a sérias distorções impositivas [90]. O segundo é de cunho doutrinário, mas igualmente relevante: se a progressividade é justificada pela teoria da utilidade marginal é necessário que possa ser vislumbrada a adequação da curva de utilidade aos impostos reais, o que não ocorre. Simplesmente não é possível fazer isso, pois os imóveis só representam satisfação na vida dos indivíduos se considerados como um todo. Explica-se: cada metro quadrado de um apartamento só existe em função dos demais e, por isso, só a satisfação trazida pelo imóvel como um todo pode ser valorada. Não é possível dizer que um ou outro cômodo vale mais do que o outro e que, em razão disso, os últimos metros quadrados, agregam subjetivamente menos valor ao patrimônio do contribuinte do que os primeiros [91]. Trata-se, portanto, de hipótese de emenda constitucional inconstitucional, visto que, tanto em concreto como em tese, a aplicação da progressividade fiscal aos impostos reais pode malferir a capacidade contributiva.

Após a edição da EC nº 29/2000, o assunto foi novamente ventilado junto ao STF. Por enquanto, não houve a finalização do julgamento, tendo sido proferidos cinco votos e o entendimento do Relator, Ministro Marco Aurélio, tem conduzido o voto dos demais:

"Ora, a Emenda Constitucional nº 29/2000 não afastou direito ou garantia individual. E não o fez porquanto texto primitivo da Carta já versava a progressividade dos impostos, a consideração da capacidade econômica do contribuinte, não se cuidando, portanto, de inovação a afastar algo que pudesse ser tido como integrado a patrimônio. (...) Nem se diga que esta Corte, apreciando texto da Carta anterior a Emenda nº 29/2000, assentou a impossibilidade de se ter, no tocante ao instituto da progressão do IPTU, a consideração do valor venal do imóvel, apenas indicando a possibilidade de haver a progressão no tempo de que cogita o inciso II do § 4º do artigo 182 da Constituição Federal. Atuou o Colegiado, em primeiro lugar, interpretando o todo constitucional, e, em segundo, diante da ausência de explicitação quanto a se levar em conta, para social distribuição da carga tributária, outros elementos, como são o valor do imóvel, a localização e o uso" [92].

Como se observa, deixou-se de levar em conta que, no texto original da CF/88, a progressividade sobre impostos reais tinha caráter meramente extrafiscal, o que, por si só, não autorizaria a extensão dessa técnica à fiscalidade. Além disso, a eventual contraposição entre progressividade fiscal aplicada a impostos reais e princípio da capacidade contributiva foi pouco explorada. O tema, tão complexo, merecia análise mais detida do Tribunal Constitucional.


IV. CONCLUSÕES.

É possível resumir as idéias expostas nas seguintes proposições objetivas:

1. O princípio da igualdade pode ser observado tanto em sua óptica formal como em sua óptica material. Em resposta à consagração do aspecto formal da igualdade (igualdade perante a lei), a partir do marxismo e, definitivamente, com o Estado Social, passou-se a realçar o substrato material da igualdade (igualdade na lei). Assim, as próprias normas deveriam veicular preceitos diferentes para pessoas diferentes. A dessemelhança, contudo, não poderia dar lugar à arbitrariedade e, por isso, deveria ser racional, vale dizer, o critério de discriminação deveria ser legítimo. Essa legitimidade estaria diretamente relacionada com três "testes": (i) o da razoabilidade do critério de discriminação escolhido, (ii) o da adequação entre o fator discriminatório adotado e a disparidade no tratamento adotado e (iii) o da promoção dos valores constitucionais de determinada ordem jurídica.

2. Com a ascensão do liberalismo e o crescimento dos Estados, intensificou-se a necessidade de a população subsidiar os gastos do Estado (que não era mais auto-sustentável) e a exação se revelou o meio mais eficaz. Para tanto, a atividade tributária aumentou, abrangendo mais e mais indivíduos. Teorias de justificação foram desenvolvidas para dar aporte doutrinário a essa ampla utilização dos tributos como instrumentos de custeio do Estado; em outras palavras, para que se evitasse uma crise sócio-política por causa da tributação, fazia-se mister convencer os cidadãos a respeito da legitimidade das exações. As teorias que elegeram a igualdade como critério de imposição justo foram crescendo e, até hoje, continuam influenciando o Direito Tributário, campo no qual a igualdade material se consubstancia no princípio da capacidade contributiva.

3. O primeiro sentido da capacidade pode ser chamado de quantitativo, pois remonta essencialmente aos elementos quantitativos dos tributos. Trata-se do senso comum, ou seja, pela capacidade contributiva o cidadão contribui em razão de sua riqueza. Apesar de a riqueza ser hoje considerada o discrímen básico para a ordem tributária (em total atenção à capacidade contributiva), não foi ela o critério desenvolvido a priori para justificar a imposição diferenciada entre os indivíduos.

4. Durante muito tempo acreditou-se que o contribuinte deveria arcar com os gastos públicos tendo em conta a utilidade que lhe derivava das prestações do Estado (teoria da equivalência). Essa teoria recebeu críticas, porque não justificava a tributação dos impostos não vinculados. Além disso, tomava como base um grau de benefício auferido, que é conceito extremamente subjetivo. Considerando a dificuldade da aplicação desta teoria aos tributos não vinculados, buscou-se uma nova construção teórica que pudesse dar aporte à constatação singela de que os cidadãos deveriam contribuir diferentemente. Só então a riqueza foi eleita como fator de discriminação (ainda que de forma distante da configuração atual). Passou-se a defender que, quando da prestação de serviços indivisíveis, os indivíduos contribuiriam em quantidades proporcionais a sua capacidade econômica, não se devendo ter em consideração, para fins de graduação do tributo, os benefícios advindos da atividade do Poder Público. Nesse sentido, foram desenvolvidas as teorias do sacrifício e a teoria da solidariedade.

5. Além de servir como parâmetro para a definição dos elementos quantitativos dos tributos, o princípio da capacidade contributiva também é pressuposto da tributação. Por isso alguns autores falam em capacidade contributiva absoluta, para se referir às hipóteses em que exista de fato manifestação de riqueza apta a ser tributada, ou, em outras palavras, em que exista efetiva capacidade para contribuir. Não se tratar de apurar em qual medida cada indivíduo vai contribuir, mas se determinada pessoa ou grupo de pessoas pode contribuir. Outra também é a conotação dada à expressão "capacidade contributiva absoluta", qual seja, a de causa do tributo. Em outras palavras: surge para o legislador o dever de só escolher como fatos geradores de tributos aqueles que revelem capacidade econômica (daí ser ela tida como causa). Como se vê, é uma faceta que decorre de considerar a capacidade contributiva como pressuposto do tributo.

6. Observando tanto o aspecto quantitativo como o aspecto qualitativo da capacidade contributiva, os economistas e também os doutrinadores do Direito Financeiro desenvolveram um conjunto de técnicas que ajudam a materializar o princípio da capacidade contributiva. Entre elas pode-se citar a proporcionalidade e a progressividade, porque ambas contemplam a necessidade de graduar a tributação de acordo com a capacidade econômica dos cidadãos e, a um só tempo, permitem que sejam levadas em consideração detalhes subjetivos do contribuinte que justificam a não incidência do poder impositivo.

7. Dizer que a progressividade tem fundamentação no princípio da capacidade contributiva não é suficiente, porque a própria capacidade contributiva enfrenta problemas de justificação. Nem mesmo as teorias do sacrifício igual e proporcional são aptas a justificar a progressividade, porque elas também embasam a proporcionalidade. Assim, a única teoria que pode fundamentar plenamente e com exclusividade a progressividade é a teoria da utilidade marginal. Pragmaticamente a teoria da utilidade marginal pode ser resumida na seguinte proposição: o valor de determinada fração de riqueza será sempre menor que o valor dado à fração de riqueza imediatamente anterior. No entanto, essa teoria também foi alvo de críticas, enfadonhamente repetitivas quando comparadas às formuladas ante as teorias fundamentadoras da riqueza como discrímen legítimo na seara da tributação e que podem ser bem resumidas no reconhecimento do elevado nível de subjetividade que permeia a construção dificulta sua aplicabilidade.

8. O Direito Tributário tem mais um papel importante aos olhos do Estado Democrático de Direito tal como hoje concebido, que é a eliminação das desigualdades sociais através da redistribuição de rendas. Esse é um dos motivos adicionais (além da teoria da utilidade marginal, que, apesar de criticada, é objetivamente útil) para que o legislador escolha a progressividade em detrimento da proporcionalidade.

9. Apesar de a redistribuição de renda ser uma finalidade do Direito Tributário, existem certos limites doutrinários e pragmáticos à utilização da progressividade. São eles: a vedação à arbitrariedade (para instituir alíquotas progressivas o legislador ordinário só poderá ter como fator de discriminação elementos que indiquem a presença de riqueza tributável, e nada mais), ao confisco (para ser legítima, a progressividade não pode, ainda, ser tão elevada a ponto de imputar ao contribuinte a perda de seu patrimônio), e ao impedimento do exercício do direito às atividades ilícitas (não é legítimo que o poder impositivo, ao instituir alíquotas progressivas em determinado caso, proíba ou inviabilize a consecução de dois pilares da ordem econômica: o trabalho e a livre iniciativa).

10. Os impostos pessoais, como o imposto sobre a renda, por exemplo, são os que melhor comportam a progressividade como técnica de graduação. Isto porque eles têm em conta a capacidade contributiva global do indivíduo. Nada obstante, no Brasil, o tratamento legislativo da matéria é o pior possível: uma progressividade maltratada com a instituição de poucas faixas de diferenciação e uma limitação desarrazoada das deduções possíveis, caminhando-se, portanto, para uma realicização desse imposto.

11. Na redação original da Constituição de 1988, a técnica da progressividade aplicada aos impostos reais tinha fins meramente extrafiscais, vale dizer, possuía uma finalidade não-arrecadatória, regulatória, indutora do comportamento dos indivíduos. Uma análise sistemática dos arts. 153, §4º, caput, 156, §1º, caput e 182, §2º e §4º, II, fazia concluir que o legislador só poderia se servir de alíquotas progressivas para promover a função social da propriedade, tanto rural quanto urbana. O proprietário que não der destinação social adequada à sua terra sofreria uma sanção através da aplicação da progressividade no tempo.

12. O Supremo Tribunal Federal apreciou a questão da progressividade nos impostos reais em atenção à proliferação de leis municipais que pretenderam utilizar a progressão de alíquotas em razão do valor venal do imóvel, da localização e/ou do uso. Não se tratava, assim, de progressividade no tempo, extrafiscal, mas de progressividade fiscal. Nessa oportunidade, a Corte Constitucional entendeu que tais leis municipais eram inconstitucionais com base em dois argumentos: (a) inexistência de autorização constitucional expressa para a adoção da progressividade como técnica de graduação do IPTU em caráter fiscal e (b) incompatibilidade dessa forma de graduação com as características ontológicas dos impostos reais.

13. Para explicar a incompatibilidade da progressividade como forma de graduação de impostos reais, o STF afirmou que o princípio da capacidade contributiva pode não ser aplicado à determinada espécie tributária, em observância de suas limitações. A bem da verdade, esse princípio é compatível com todos os tributos previstos na Constituição Federal, desde os impostos reais até as contribuições. Mesmo no caso do IPTU, um imposto real, que não leva em consideração a capacidade contributiva global do indivíduo, é necessário reconhecer que o princípio da capacidade contributiva está presente na apuração da base de cálculo, pois, de acordo com o que dispõe o art. 33 do CTN, a base de cálculo do IPTU é o valor venal do imóvel. O valor venal do terreno, para ser calculado, leva em consideração os seguintes elementos: tamanho, localização, infra-estrutura existente no local, apenas a título de exemplificação. A seu turno, o valor venal da construção tem como quesitos de formação o padrão da construção (se se trata de edifício de luxo ou popular, por exemplo) e o estado de conservação do imóvel. É um erro acreditar que esses elementos tenham sido escolhidos ao acaso. Todos eles indicam uma possível expressão da riqueza do contribuinte. Pensar de modo diferente levaria à declaração de inconstitucionalidade do próprio IPTU, pois a consagração do princípio da capacidade contributiva na Lei Maior constrange a adoção da riqueza como critério de desnivelamento entre os indivíduos ante o Fisco.

14. Após reiteradas decisões do STF contrárias à constitucionalidade das leis municipais que pretendiam instituir a progressividade do IPTU em razão do valor venal do imóvel, do seu uso e/ou de sua localização, o Congresso Nacional, investido na condição de Poder Constituinte Derivado, deu nova redação ao art. 156, §1º, da Lei Maior, exatamente para permitir a progressividade nesses casos. Trata-se de hipótese de emenda constitucional inconstitucional, violadora que é do direito fundamental veiculado pelo art. 145, §1º, da CF/88, visto que (a) os impostos reais de não têm em conta a capacidade contributiva global da pessoa, podendo a progressividade, se aplicada a eles, levar a sérias distorções impositivas e (b) a progressividade é justificada pela teoria da utilidade marginal, sendo necessário, portanto, que possa ser vislumbrada a adequação da curva de utilidade aos impostos reais, o que não ocorre.

15. Após a edição da EC nº 29/2000, o assunto foi novamente ventilado junto ao STF. Por enquanto, não houve a finalização do julgamento, tendo sido proferidos cinco votos e o entendimento do Relator, Ministro Marco Aurélio, que tem conduzido o voto dos demais, deixou de levar em conta que, no texto original da CF/88, a progressividade sobre impostos reais tinha caráter meramente extrafiscal, o que, por si só, não autorizaria a extensão dessa técnica à fiscalidade e, além disso, não atentou para o fato de que a eventual contraposição entre progressividade fiscal aplicada a impostos reais e princípio da capacidade contributiva.


NOTAS

01 Sabe-se que não há consenso doutrinário a respeito da classificação da igualdade como valor ou princípio. As discussões acerca desse assunto não terão espaço neste trabalho, no qual se partirá da igualdade como princípio concretizador do valor justiça.

02 VILLEY, Michel. Filosofia do Direito. Trad. Márcia Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 76-78.

03 Kelsen sustentava que a igualdade perante a lei não apresentava nenhum abono àquilo que já era papel do Direito como um todo. Confira-se KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. Trad. Ch. Einsenmann. Paris: Dalloz, 1962, p. 190.

04 BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1972. p. 2-3.

05 Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, art. 1º: "Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum".

06 V. LARENZ, Karl. Derecho justo. Trad. espanhola por Luis Diez-Picazo. Madrid: Civitas, 1985. p. 142. A questão já foi submetida ao Tribunal Constitucional alemão, que chegou à mesma conclusão, de acordo com as anotações de HERRERA MOLINA, Pedro Manuel. Capacidad económica y sistema fiscal: análisis del ordenamiento español a la luz del Derecho alemán. Madrid-Barcelona: Marcial Pons, 1998. p. 28.

07 "Em alguns Estados, apesar de se acolher o princípio da igualdade perante a lei fiscal e, pois, da generalidade da imposição, considerou-se oportuno estatuir, com normas de caráter constitucional, isenções a favor de determinados bens e atividades; e isto pela busca de fins de interesse superior (por exemplo religioso ou de cultura) ou para evitar que, sob a aparência de gravames fiscais, fossem realizadas perseguições (por exemplo, por motivos políticos)" (UCKMAR, Victor. Princípios comuns de Direito Constitucional Tributário. Trad. Marco Aurélio Greco. São Paulo: RT, 1976. p. 56).

08 "Estos principios constituyen una reación a las reglas políticas, económicas y sociales anteriores a la Revolución Francesa, cuando privilégios derivados antaño de situaciones históricas excepcionales se cristalizaron en favor de las clases de los nobles y del clero, de forma que resultó una desigualdad e situación contributiva entre los ciudadanos que se encontraban en las mismas condiciones objetivas de capacidad de prestación" (GRIZIOTTI, Benevenuto. Principios de Política, Derecho y Ciencia de la Hacienda. Trad. espanhola por Enrique R. Mata. Madrid: Instituto Editorial Reus, 1958. p. 178).

09 Neste sentido, v. GIULIANI FONROUGE, Carlos M.. Derecho Financiero. Vol. I: Actividad financiera, presupuesto, poder tributario e obligación tributaria. Buenos Aires: Depalma, 2001. p. 371.

10 "Para o cidadão o imposto é o preço para sua liberdade econômica" (ISENSEE, Joseph, apud TORRES, Ricardo Lobo. A fiscalidade dos serviços públicos no Estado da Sociedade de Risco. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Serviços públicos e Direito Tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 122, nota 3.

11 Nesse caso buscava-se proteger não a igualdade, mas a liberdade, que era supervalorizada pelo liberalismo individualista. É por isso que se costuma dizer que, nessa época, o princípio da capacidade contributiva ainda era timidamente desenvolvido.

12 Conforme destaca Victor Uckmar: "A igualdade perante os gravames fiscais pode ser entendida em dois sentidos: a) em sentido jurídico, como paridade de posição, com exclusão de qualquer privilégio de classe, religião e raça, de modo que os contribuintes, que se encontrem em idênticas situações, sejam submetidos a idêntico regime fiscal; b) em sentido econômico, como dever de contribuir aos encargos públicos em igual medida, entendida em termos de sacrifício, isto é, como melhor será visto a seguir, em relação à capacidade contributiva dos indivíduos" (UCKMAR, Victor. Princípios comuns de Direito Constitucional Tributário. Trad. Marco Aurélio Greco. São Paulo: RT, 1976. p. 54). Ora, a igualdade em sentido estrito já vinha sendo defendida desde a passagem do Estado Patrimonial para o Estado de Polícia – não se tratava, portanto, de algo novo. Também a igualdade concebida juridicamente (leia-se, capacidade contributiva) tinha suas bases doutrinárias no Estado Fiscal Liberal e, da mesma forma, não era teoria nova. São conceitos, no entanto, que foram trabalhados ao longo do tempo, aprimorados no Estado Social Fiscal e no Estado Democrático de Direito, mas de criação antiga. Daí caracterizar-se como uma evolução tímida do princípio da igualdade a ocorrida entre o Estado Social Fiscal e o Estado Democrático Fiscal.

13 Tax as a premium (de Dworkin), princípio do maximin (de Rawls) e liberty tax (de Buchanan) são exemplos dessa avalanche de teorias sobre a liberdade criadas no âmbito do Estado Democrático Fiscal. Para uma visão melhor, v. TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional, Financeiro e Tributário. Vol. II: Valores e princípios constitucionais tributários. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 58-111.

14 GRIZIOTTI, Benevenuto. Principios de Política, Derecho y Ciencia de la Hacienda. Trad. espanhola por Enrique R. Mata. Madrid: Instituto Editorial Reus, 1958. p. 181.

15 Isso não significa que a igualdade formal não tenha sido prestigiada. O alcance de todos que estejam em situações semelhantes pela lei é também uma característica do Estado Democrático de Direito e, no campo do Direito Tributário, essa proposição vem recebendo outro nome: princípio da generalidade. No fundo, trata-se da igualdade no seu aspecto formal. Sobre este ponto, v. PEREZ ROYO, Fernando. Derecho Financiero y Tributario. Madrid: Civitas, 1994. p. 38. Um caso emblemático de aplicação do princípio da generalidade é a manifestação do poder impositivo sobre estrangeiro quando da cobrança de impostos indiretos sobre o consumo.

16 Como se realçou no fim do tópico anterior, parte da doutrina – principalmente a estrangeira – vem tentando distanciar os conceitos de capacidade contributiva e igualdade, para construir uma teoria da capacidade contributiva autônoma. No entanto, a doutrina majoritária – inclusive no Brasil – continua mantendo uma aproximação entre os dois princípios. Na verdade, para países como o Brasil, em que a Constituição Federal erigiu expressamente o princípio da capacidade contributiva a status constitucional, a discussão perde a importância (talvez até por isso a doutrina nacional não tenha se preocupado em fazer uma distinção teórica aprofundada). Mas em muitos países em que a Lei Maior é silente, a doutrina e a jurisprudência construíram a capacidade contributiva com base no princípio da igualdade. Neste sentido, v. NABAIS, José Casalta. Estudos de Direito Fiscal – Por um Estado Fiscal suportável. Coimbra: Almedina, 2005. p. 221. Para uma análise compilativa da doutrina estrangeira que analisa a capacidade contributiva com base nos cânones da igualdade, v. OLIVEIRA, José Marcos Domingues de. Direito Tributário – Capacidade contributiva. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 51-53. Para compreender as razões daqueles que defendem a separação entre os princípioS, v. RÜFNER, W., para quem "El principio de capacidad económica es una consecuencia adicional del derecho a la igualdad, pues éste no agota su contenido en la interdicción de la arbitrariedad" (apud HERRERA MOLINA, Pedro Manuel. Capacidad económica y sistema fiscal: análisis del ordenamiento español a la luz del Derecho alemán. Madrid-Barcelona: Marcial Pons, 1998. p. 29).

17 VALDÉS COSTA, Ramón. Instituciones de Derecho Tributario. Buenos Aires: Depalma, 1992. p. 447: "El criterio de la C.C. tiene dos posibilidades de aplicación. (...) La segunda posibilidad se relaciona con la cuantificación de la obligación impositiva a los efectos de mejor adecuarla al principio de la igualdad em la ley". V. tb. PEREZ DE AYALA, José Luis e EUSEBIO GONZÁLEZ. Curso de Derecho Tributario. Tomo I. Madrid: Editorial de Derecho Financiero, 1978. p. 169.

18 Assim também o reputa Victor Uckmar, reportando as conclusões da Corte Constitucional italiana acerca da matéria: "Este foi o primeiro e importante passo [refere-se ao reconhecimento pela Corte da função de garantia do princípio contido no art. 53 da Constituição italiana – o princípio da capacidade contributiva] para esclarecer que se, no momento em que se fala de capacidade contributiva, faz-se referência de acordo com a acepção comum deste termo, a uma capacidade econômica que revela uma atitude à contribuição aos encargos públicos, o jurista, que tem perante si um sistema fiscal articulado em numerosos tributos – cada um dos quais tem um diverso objeto imponível – não pode eximir-se de estabelecer de que modo o dever que foi colocado a cargo do legislador ordinário de não exorbitar, no exercício do poder impositivo, dos limites expressos dos recursos econômicos dos contribuintes (...)" (UCKMAR, Victor. As orientações da Corte Constitucional italiana em matéria tributária. Trad. Marco Aurélio Greco e Francisco Antônio Fragata Jr.. In: XAVIER, Alberto et alli. VI Curso de Especialização em Direito Tributário (aulas e debates). Vol. 1. São Paulo: Resenha Tributária, 1978. p. 297).

19 OLIVEIRA, José Marcos Domingues de. Direito Tributário – Capacidade contributiva. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 51-53. Ainda, alguns autores atribuem à capacidade contributiva a característica de relativa para tratar do mesmo fenômeno. Por todos, v. FERREIRO LAPATZA, José Juan. Curso de Derecho Financiero español. Madrid: Macial Pons, 1992. p. 324.

20 Reputou-se como principal ante os (corretos) aportes de Herrera Molina, para quem "la justicia tributaria es fruto de una multitud de factores" (HERRERA MOLINA, Pedro Manuel. Capacidad económica y sistema fiscal: análisis del ordenamiento español a la luz del Derecho alemán. Madrid-Barcelona: Marcial Pons, 1998. p. 26).

21 A necessidade de justificação deriva sobretudo do dever de, em um Estado Democrático de Direito, submeter as condutas do Poder Público a princípios éticos e jurídicos (entre elas, o poder de exação). V. VALDÉS COSTA, Ramón. Instituciones de Derecho Tributario. Buenos Aires: Depalma, 1992. p. 445-446. Sobre a obrigatoriedade de justificação teórica da capacidade contributiva, v. também HERRERA MOLINA, Pedro Manuel. Capacidad económica y sistema fiscal: análisis del ordenamiento español a la luz del Derecho alemán. Madrid-Barcelona: Marcial Pons, 1998. p. 81. É curioso notar que no atual estágio da discussão, alguns autores já não mais conseguem conceber outro critério para diferenciar pessoas à luz da atividade de exação. Por todos, v. UCKMAR, Victor. Princípios comuns de Direito Constitucional e Tributário. Trad. Marco Aurélio Greco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976. p. 69-70: "Ademais o dimensionamento à capacidade contributiva exclui ‘graduações da carga tributária que não sejam relacionadas a diferenças na condição econômica dos indivíduos’. Único elemento para diferenciar as cargas tributárias entre as várias pessoas é a sua capacidade econômica (...)". Em relação a esta colocação, vale destacar um ponto. É prática recorrente a eleição de critérios outros para servir de fator de discriminação tributária. Entre eles, por exemplo, a localização do imóvel ou o número de aposentos do mesmo, ambos para fins de imposição do IPTU. Note-se que esses critérios são eleitos porque o legislador considera que, ainda que indiretamente, eles revelam capacidade econômica. Portanto, não se deve pensar que, além da riqueza, outros fatores podem ser eleitos licitamente para fins de exação. Todos eles, necessariamente, devem guardar relação com a capacidade contributiva. Ressalvam-se, contudo, os fins extrafiscais da tributação.

22 Griziotti, um autor paradigmático quando se trata do princípio da capacidade contributiva, menciona de modo inequívoco que o benefício desfrutado pelos contribuintes por conta da atuação estatal é ponto de referência e também limite para aplicação de impostos fundados na capacidade contributiva de cada um dos indivíduos. Daí estende a aplicação do princípio da capacidade contributiva às pessoas jurídicas, posto que elas também usufruem da "dádivas estatais". V. GRIZIOTTI, Benevenuto. Principios de Política, Derecho y Ciencia de la Hacienda. Trad. espanhola por Enrique R. Mata. Madrid: Instituto Editorial Reus, 1958. p. 143. E tb. BUCHANAN, James M. e FLOWERS, Marilyn R.. Introducción a la Ciencia de la Hacienda Pública. Madrid: Editorial de Derecho Financiero, s/d. p. 108: "El sistema fiscal neutral o «eficiente» ideal es aquel que tiene la simples finalidad de proporcionar bienes y servicios públicos a los individuos. Este sistema hace que el proceso de gastos públicos positivos sea lo más análogo posível al mecanismo del mercado. Pero debido a la indivisibilidad de los beneficios proporcionados por los bienes y servicios públicos, el sistema de fijación directa de «precios» no puede utilizarse. De aquí que la estructura tributaria debe realizarse de tal manera que refleje las evaluaciones individuales de los beneficios marginales proporcionados por los servicios del Gobierno, y la cantidad total de los servicios colectivos proporcionados debe basarse en algún tipo de agregación o de suma de estas evaluaciones individuales. En cierta medida, el principio «ideal» de la tributación consiste en el principio del beneficio".

23 FERREIRO LAPATZA, José Juan. Curso de Derecho Financiero español. Madrid: Macial Pons, 1992. p. 319.

24 VALDÉS COSTA, Ramón. Instituciones de Derecho Tributario. Buenos Aires: Depalma, 1992. p. 441: "Desde el punto de vista de la ciencia de la hacienda, cabe recordar el principio de la equivalencia, según el cual hay un equilibrio económico, directo o indirecto, según los casos, entre las sumas que percibe el Estado y las que éste emplea en el desarrollo de sus actividades. Algunas veces esa equivalencia se concreta en un cambio económico entre el Estado y el beneficiario del servicio, otras veces con un grupo o una región y otras, finalmente, con la sociedad considerada en conjunto. En estos últimos casos la equivalencia pierde los caracteres de cambio económico privado, pues el Estado tiene plena liberdad para organizar el servicio en la forma que estime más conveniente y los particulares carecen de derecho para exigir prestaciones por el solo hecho de contribuir a los gastos. Desde el punto de vista jurídico la diferencia tiene gran importancia. En los precios, la reciprocidad de las prestaciones es elemento esencial, sirviéndose mutuamente de causa; en las tasas, la prestación del servicio es también elemento esencial para el nacimiento de la obligación, aunque con distintas características; en cambio, en los impuestos la equivalencia carece de relevancia jurídica, pues aunque los contribuyentes disfruten en mayor o menor grado de los servicios organizados con sus aportes, ello sucede por su condición de integrantes de la sociedad, y no de contribuyentes".

25 FERREIRO LAPATZA, José Juan. Curso de Derecho Financiero español. Madrid: Macial Pons, 1992. p. 319.

26 Existe parte da doutrina que considera possível destacar o valor da utilidade mesmo nos casos de necessidades indivisíveis. Parece que José Casalta Nabais apóia a este entendimento, pois considera possível que os proprietários de prédios beneficiados por obras e serviços efetuados pelo Poder Público paguem um plus por isso no imposto predial. Confira-se: "Mas a tributação predial encontra especial justificação na lógica do princípio do benefício, correspondendo o seu pagamento à contrapartida dos benefícios que os proprietários recebem com as obras e serviços que a colectividade lhes proporciona" (NABAIS, José Casalta. Estudos de Direito Fiscal – Por um Estado Fiscal suportável. Coimbra: Almedina, 2005. p. 239).

27 Em sentido contrário, v. GRIZIOTTI, Benevenuto. Principios de Política, Derecho y Ciencia de la Hacienda. Trad. espanhola por Enrique R. Mata. Madrid: Instituto Editorial Reus, 1958. p. 144: "Las manifestaciones de la capacidad contributiva, en relación con los beneficios producidos a los contribuyentes por la actividad del Estado y de la Sociedad, consisten en la riqueza que se gana, en la riqueza que se gasta y en los beneficios que derivan al contribuyente de una obra de interés público. (...) La riqueza ganada, la riqueza gastada y los beneficios obtenidos de las obras del Estado y de la actividad de la Sociedad son tres manifestaciones complementarias de la capacidad contributiva". Assim sendo, para o autor, o benefício auferido com a atividade estatal ainda permaneceria sendo um parâmetro da capacidade contributiva.

28 De forma geral, a doutrina aponta Stuart Mill como o sistematizador da teoria do sacrifício igual. V. UCKMAR, Victor. Princípios comuns de Direito Constitucional Tributário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976. p. 77.

29 FERREIRO LAPATZA, José Juan. Curso de Derecho Financiero español. Madrid: Macial Pons, 1992. p. 320-321.

30 VALDÉS COSTA, Ramón. Instituciones de Derecho Tributario. Buenos Aires: Depalma, 1992. p. 446.

31 O ponto será melhor explorado no tópico seguinte, mas, sem dúvida, a capacidade contributiva vem se distanciando cada vez mais de índices meramente numéricos ou objetivos, passando a englobar também índices subjetivos ou mesmo políticos. Cf. MOSCHETTI, Francesco. El principio de capacidad contributiva. Madrid: Instituto de Estudos Fiscales, 1980. p. 110.

32 Essa percepção foi a base da teoria da dimensão objetiva dos direitos fundamentais. Para um aprofundamento da temática, veja-se SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004. p. 133-173.

33 Recomenda-se a leitura de MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 108-117.

34 É interessante as considerações formuladas por James Buchanan e Marilyn Flowers no sentido de que a eliminação da pobreza – objetivo que bem pode ser associado à solidariedade – deve ser encarada como um bem ou serviço público coletivo: "Un planteamiento más completo del proceso fiscal aconseja que la redistribuición de la renta y de la riqueza sea analizada como un bien o servicio público o colectivo. La observación empírica sugiere que los individuos se encuentran íntimamente relacionados con la situación y bienestar de otros, y que también se encuentran bien dispuestos a que se realicen los ajustes necesarios de impuestos y gastos para que se alivie el problema de la pobreza". É a consagração da solidariedade.

35 V. MOSCHETTI, Francesco. El principio de la capacidad contributiva. Madrid: Instituto de Estudios Fiscales, 1980. pp. 122-123 e 124.

36 Mais uma vez frisa-se que o termo "qualitativo" foi escolhido com base nos ensinamentos de Perez de Ayala e Eusébio González, em contraposição ao termo "quantitativo", também cunhado pelos autores (V. PEREZ DE AYALA, José Luis e EUSEBIO GONZÁLEZ. Curso de Derecho Tributario. Tomo I. Madrid: Editorial de Derecho Financiero, 1978. p. 169).

37 V. MOSCHETTI, Francesco. El principio de capacidad contributiva. Madrid: Instituto de Estudios Fiscales, 1980. p. 108: "Destacar que el principio de capacidad contributiva expresa una exigencia de justicia fiscal y que presupone necesariamente una capacidad económica superior a un cierto mínimo, constituye sin duda una observación exacta (...)".

38 V. FERREIRO LAPATZA, José Juan. Curso de Derecho Financiero español. Madrid: Marcial Pons, 1992. p. 323.

39 PEREZ DE AYALA, José Luis e EUSEBIO GONZÁLEZ. Curso de Derecho Tributario. Tomo I. Madrid: Editorial de Derecho Financiero, 1978. pp. 166 e 167: "Si buscamos la causa en el sentido común y no en el técnico-jurídico del tributo, podemos remontarnos hasta la causa primera de todo: se paga un tributo porque se verifican los supuestos de hecho que la ley ha previsto; se paga, pues, porque la ley así lo ha querido, y la ley manda porque el Estado tiene el poder de imperio que le permite, mediante la ley, hacerlo y porque tiene necesidad de procurarse medios pecuniarios para satisfacer sus necesidades y cumplir los fines que tiene asignados. Pero más correctamente, la causa técnico-jurídica del tributo no puede ser buscada sino en la circunstancia o el criterio que la ley asume como razón necesaria y suficiente para justificar el que, de verificarse un determinado supuesto de hecho, se derive la obligación tributaria. (...) Esta es, en efecto, la razón que explica la existencia, como presupuesto de una obligación tributaria, de hechos muy diferentes, pero todos con un cierto contenido económico implícito; (...)". V. tb. PEREZ ROYO, Fernando. Derecho Financiero y Tributario. Madrid: Civitas, 1994. p. 36-37.

40 É neste sentido que José Casalta Nabais defende que os imóveis destinados à habitação não podem ser usados na contabilidade total de imóveis com propósito de imposição progressiva: "De um lado, tendo em conta que os principais bens objeto da tributação do património são imóveis, e que uma parte muito significativa destes está destinada à satisfação de um importante direito fundamental, o direito à habitação, não podemos deixar de convocar aqui o preceito que consagra o direito fundamental à habitação, ou seja, o art. 65.º, nº.1. (...) O que para nós significa que há que fazer uma importante distinção neste domínio entre os imóveis destinados à satisfação do direito fundamental a habitação, mormente dos que satisfazem esse direito através da propriedade dos respectivos imóveis, e os restantes bens imóveis" (NABAIS, José Casalta. Estudos de Direito Fiscal – Por um Estado Fiscal suportável. Coimbra: Almedina, 2005. p. 225).

41 Para fins deste trabalho, incluem-se entre os direitos fundamentais também os direitos sociais.

42 Para maior detalhamento dessa dicotomia, ver o prefácio escrito por Luís Roberto Barroso a SARMENTO, Daniel (org.). Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio de supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. vii-xviii.

43 Não se pode esquecer que a Lei Maior também determina que um dos objetivos da República Federativa brasileira é a erradicação da pobreza (CF/88, art. 3º, III). Desse modo, é inadmissível que o Estado atuasse contrariamente àquilo que dispõe a própria Constituição.

44 Maria Celina Bodin de Moraes divide o princípio da dignidade da pessoa humana em quatro sub-princípios: o princípio da liberdade, o princípio da igualdade, o princípio da tutela da integridade psicofísica e o princípio da solidariedade. Mais à frente o ponto será retomado sob a perspectiva da solidariedade. Nada obstante, remetemos o leitor a MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro-São Paulo: Renovar, 2003.

45 PEREZ DE AYALA, José Luis e EUSEBIO GONZÁLEZ. Curso de Derecho Tributario. Tomo I. Madrid: Editorial de Derecho Financiero, 1978. p. 168. E tb. CANTO, Gilberto de Ulhôa. Princípios gerais tributários. Cadernos de Pesquisas Tributárias, São Paulo, n. 18, 1993. p. 36: "Penso que, na sua presente formulação, o contribuinte pode invocar o princípio da capacidade contributiva perante o Judiciário, e obter deste decisão excludente de qualquer responsabilidade tributária, se puder demonstrar que a exigência da Fazenda Pública evidentemente desconsidera sua capacidade econômica".

46 Nem todos os doutrinadores, no entanto, parecem retirar a progressividade da capacidade contributiva. Fernando Perez Royo salienta que a doutrina antiga pontuava que o princípio da capacidade contributiva geralmente impunha a proporcionalidade, derivando a imposição progressiva de outra norma do sistema. Inclusive, para essa parte dos teóricos, a progressividade era incongruente com a capacidade contributiva. Confira-se: "En la doctrina más antigua se había planteado la cuestión de la congruencia entre la existencia de impuestos con tarifas progresivas y el criterio de contribuición en proporción a los haberes o a la capacidad económica, establecido generalmente en los textos constitucionales y que se identificaba como mandato de proporcionalidad, opuesto al de progresividad" (PEREZ ROYO, Fernando. Derecho Financiero y Tributario. Madrid: Civitas, 1994. p. 39).

47 Por todos, v. FERREIRO LAPATZA, José Juan. Curso de Derecho Financiero español. Madrid: Marcial Pons, 1992. p. 321: "Expuestas así brevemente las teorías del sacrificio, interesa resaltar lo que sigue. En general, en cualquiera de sus formas, la teoría del sacrificio desemboca, en definitiva, en la defensa de un impuesto progresivo". A afirmação é sedutora, mas, data venia, não parece ser exata. A teoria do sacrifício justifica também a proporcionalidade, porque o simples fato de as bases de cálculos serem diferentes já traz como conseqüência que indivíduos economicamente mais abastados contribuirão com mais. Essa diferença entre as somas aportadas para fins de contribuição já igualaria o nível dos sacrifícios. Portanto, a progressividade não se impõe, senão que é técnica possível, tal como a proporcionalidade e a seletividade.

48 Neste sentido, v. UCKMAR, Victor. Princípios comuns de Direito Constitucional Tributário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976. p. 77-78.

49 Alguns autores chegam a declarar a inafastabilidade da progressividade como consectário direto do princípio da capacidade contributiva, vale dizer, a capacidade contributiva como causa e como critério para graduação dos tributos obriga o legislador a prever impostos progressivos. Mas a progressividade não é a única forma de realização da igualdade e, em último grau, da capacidade contributiva. Por isso, estamos com José Casalta Nabais, para quem a progressividade só é obrigatória se houver comando expresso neste sentido, caso contrário, ela pode ser – e não deve ser – aplicada. V. NABAIS, José Casalta. Estudos de Direito Fiscal – Por um Estado Fiscal suportável. Coimbra: Almedina, 2005. p. 224: "De outro lado, embora se tenha mantido a exigência, agora reportada à tributação do património, de contribuir para a igualdade entre os cidadãos, deixou de se fazer qualquer referência à progressividade. Significa isto que não tem agora o legislador que estabelecer qualquer imposto sobre o património com taxa progressiva, muito embora, como é óbvio, também não esteja impedido de manter ou instituir imposto(s) progressivo(s) nesse sector". Também procede a ponderação de José Eduardo Soares de Melo, para quem o princípio da capacidade contributiva só veda a adoção pelo legislador de impostos fixos (MELO, José Eduardo Soares de. Em face do princípio da capacidade contributiva, é possível criar tributo fixo?. V Congresso brasileiro de Direito Tributário – princípios constitucionais tributários: aspectos práticos e aplicações concretas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. p. 143). Em sentido contrário, v. JARACH, Dino. Finanzas públicas y Derecho Tributario. Buenos Aires: Alfredo Perrot, 1996. p. 295.

50 UCKMAR, Victor. Princípios comuns de Direito Constitucional Tributário. Trad. Marco Aurélio Greco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976. p. 77: "Numerosas teorias foram desenvolvidas para demonstrar o fundamento científico do imposto progressivo que, particularmente da parte dos políticos, diz-se ser o único que realiza a distribuição dos impostos segundo a capacidade contributiva. Tais teorias podem, porém, em síntese reconduzir-se a três tipos: do sacrifício igual, do sacrifício proporcional e do sacrifício mínimo, todas ligadas ao conceito da decrescente utilidade marginal da riqueza".

51 VALDÉS COSTA, Ramón. Instituciones de Derecho Tributario. Buenos Aires: Depalma, 1992. p. 456.

52 UCKMAR, Victor. Princípios comuns de Direito Constitucional Tributário. Trad. Marco Aurélio Greco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976. p. 77.

53 PEREZ ROYO, Fernando. Derecho Financiero y Tributario – Parte general. Madrid: Civitas, 1994. p. 37. E tb. BUCHANAN, James M. e FLOWERS, Marilyn R.. Introducción a la Ciencia de la Hacienda Pública. Madrid: Editorial de Derecho Financiero, s/d. p. 111: após analisar os meios não-fiscais, os autores concluem que a redistribuição de rendas melhor se realiza através do processo fiscal (Ibid., p. 125-126).

54 BUCHANAN, James M. e FLOWERS, Marilyn R.. Introducción a la Ciencia de la Hacienda Pública. Madrid: Editorial de Derecho Financiero, s/d. p. 100.

55 Misabel Derzi qualifica a proporcionalidade na tributação como um princípio neutro, na medida em que não tem pretensões de modificar a dura realidade econômica nacional ("leave them as you find them"), o que imporia a escolha pela progressividade (DERZI, Misabel Abreu Machado. Princípio da igualdade no Direito Tributário e suas manifestações. V Congresso brasileiro de Direito Tributário – princípios constitucionais tributários: aspectos práticos e aplicações concretas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. p. 176).

56 CF/88, art. 150, IV: "Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (...) IV - utilizar tributo com efeito de confisco;".

57 Na Argentina, na Sentença Compañia Santafecina de Inmuebles y Constituiciones c. Provincia de Córdoba, a Suprema Corte fixou em 33% (trinta e três por cento) o limite legítimo das alíquotas sobre a renda imobiliária. No Brasil, o STF não se manifestou sobre o tema de maneira contundente: o princípio da vedação ao confisco é usado muito mais como argumento de reforço, e, por isso, é pouco explorado.

58 JARACH, Dino. Finanzas públicas y Derecho Tributario. Buenos Aires: Alfredo Perrot, 1996. p. 331: "Se entra así en un terreno donde el criterio de la confiscatoriedad es relativo y se transforma, en muchos casos, en una mera cuestión de hecho, o sea, saber si existe o no una explotación racional".

59 No Brasil, o STF se trilhou um caminho para tentar conceituar confiscatoriedade na ADIn-MC 2010/DF, de cuja ementa se extrai o seguinte trecho: "A proibição constitucional do confisco em matéria tributária nada mais representa senão a interdição, pela Carta Política, de qualquer pretensão governamental que possa conduzir, no campo da fiscalidade, à injusta apropriação estatal, no todo ou em parte, do patrimônio ou dos rendimentos dos contribuintes, comprometendo-lhes, pela insuportabilidade da carga tributária, o exercício do direito a uma existência digna, ou a prática de atividade profissional lícita ou, ainda, a regular satisfação de suas necessidades vitais (educação, saúde e habitação, por exemplo). A identificação do efeito confiscatório deve ser feita em função da totalidade da carga tributária, mediante verificação da capacidade de que dispõe o contribuinte - considerado o montante de sua riqueza (renda e capital) - para suportar e sofrer a incidência de todos os tributos que ele deverá pagar, dentro de determinado período, à mesma pessoa política que os houver instituído (a União Federal, no caso), condicionando-se, ainda, a aferição do grau de insuportabilidade econômico-financeira, à observância, pelo legislador, de padrões de razoabilidade destinados a neutralizar excessos de ordem fiscal eventualmente praticados pelo Poder Público (...)" (STF, j. 30.set.1999, Pleno, ADIn-MC 2010/DF, Rel. Min. Celso de Mello).

60 V. HERRERA MOLINA, Pedro Manuel. Capacidad económica y sistema fiscal: análisis del ordenamiento español a la luz del Derecho alemán. Madrid-Barcelona: Marcial Pons, 1998. p. 132-133.

61 Aliomar Baleeiro enquadrava a proibição de comprometer o exercício livre das atividades lícitas como parte da vedação ao confisco. V. BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 564: "Dentre os efeitos jurídicos dos arts. 153, §§1º, 11 e 22 [da Constituição Federal de 1969], se inclui o da proibição de tributos confiscatórios, como tais entendidos os que absorvem parte considerável do valor da propriedade, aniquilam a empresa ou impedem exercício de atividade lícita e moral".

62 CF/88, art. 1º, III: "A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;". Art. 170, caput: "A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...)" (negrito acrescentado).

63 GRIZIOTTI, Benevenuto. Principios de Política, Derecho y Ciencia de la Hacienda. Trad. espanhola por Enrique R. Mata. Madrid: Instituto Editorial Reus, 1958. p. 352.

64 V. QUEIROZ, Luís Cesar de Souza. Imposto sobre a renda. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 211-216.

65 Alguns autores destacam que a renda é sempre receita líquida, enquanto o rendimento é receita bruta; aí residiria a principal diferença entre os dois conceitos. Por todos, v. OLIVEIRA, José Marcos Domingues de. Imposto de renda e capacidade contributiva (Leis 7713/88 e 8134/90). Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n. 46, p.130, 1993.

66 "A expressão ‘sempre que possível’ permite que a capacidade contributiva e os seus subprincípios se ajustem às várias espécies de impostos, mas não admite que deixem de ser aplicados quando isso for possível : o IR não será regressivo, pois atua sob a orientação do subprincípio da progressividade (...)" (TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. Rio de Janeiro-São Paulo-Recife: Renovar, 2006. p. 96).

67 CF/88, art. 153, III e §2º, I: "Compete à União instituir impostos sobre: (...) III - renda e proventos de qualquer natureza; (...) §2º. O imposto previsto no inciso III: I - será informado pelos critérios da generalidade, da universalidade e da progressividade, na forma da lei;".

68 Lei nº 7.713/88, art. 3º, caput e §5º: "O imposto incidirá sobre o rendimento bruto, sem qualquer dedução, ressalvado o disposto nos arts. 9º a 14 desta Lei. (...) §5º. Ficam revogados todos os dispositivos legais concessivos de isenção ou exclusão, da base de cálculo do imposto de renda das pessoas físicas, de rendimentos e proventos de qualquer natureza, bem como os que autorizam redução do imposto por investimento de interesse econômico ou social. §6º. Ficam revogados todos os dispositivos legais que autorizam deduções cedulares ou abatimentos da renda bruta do contribuinte, para efeito de incidência do imposto de renda" (negrito acrescentado).

69 "Importa, ainda, destacar que uma tributação por meio de IR que não considerar os fatos-decréscimos necessariamente dedutíveis (o que por si só já desnatura o fato Renda [e, por ricochete, viola a obrigatoriedade personalização dos impostos quando esta for cabível]), mesmo que não afronte os limites do mínimo existencial, pode representar uma tributação excessiva (que denote uma ofensa ao direito de propriedade em sentido amplo – isto é, qualquer direito subjetivo patrimonial avaliável em moeda – ou viole a liberdade de se exercer uma atividade produtiva lícita, por inviabilizar a prática da mesma), que implicaria uma ofensa aos Princípios da Capacidade Contributiva Subjetiva e da Vedação da Utilização de Tributo com efeito de Confisco" (QUEIROZ, Luís Cesar Souza de. Imposto sobre a renda. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 272 – comentários acrescentados).

70 Neste sentido, v. HERRERA MOLINA, Pedro Manuel. Capacidad económica y sistema fiscal: análisis del ordenamiento español a la luz del Derecho alemán. Madrid-Barcelona: Marcial Pons, 1998.

71 Em sentido contrário, v. ATALIBA, Geraldo. IPTU – Progressividade. Revista de Direito Público, n. 93, p. 233, jan./mar.-1990.

72 Contundente é a lição de Aliomar Baleeiro: "Em regra geral, só os impostos pessoais se ajustam adequadamente à aplicação de critérios progressivos medidos pela capacidade contributiva, (...)" (BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 745).

73 CF/88, art. 153, §4º, caput (na redação original): "§4º. O imposto previsto no inciso VI [ITR] terá suas alíquotas fixadas de forma a desestimular a manutenção de propriedades improdutivas e não incidirá sobre pequenas glebas rurais, definidas em lei, quando as explore, só ou com sua família, o proprietário que não possua outro imóvel" (negrito e comentário acrescentados).

74 CF/88, art. 156, §1º, caput (na redação original): "O imposto previsto no inciso I [IPTU] poderá ser progressivo, nos termos de lei municipal, de forma a assegurar o cumprimento da função social da propriedade" (negrito e comentário acrescentados).

75 CF/88, art. 182, §2º e §4º, II: "§2º. A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor. (...) §4º. É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de: (...) II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;" (negrito acrescentado).

76 CTN, art. 3º: "Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada" (negrito acrescentado).

77 MACHADO, Hugo de Brito. Princípios constitucionais tributários. valoración una actividad jurídica". E tb. CANTO, Gilberto de Ulhôa. Princípios gerais tributários. Cadernos de Pesquisas Tributárias, São Paulo, n. 18, 1993. p. 81.

78 Aponte-se, a título de ilustração, a teoria dos atos emulativos e, modernamente, a do abuso de direito.

79 Concretização da moradia, do trabalho, enfim, do mínimo existencial. Exemplos disso são os arts. 183 e 191 da CF/88.

80 HERRERA MOLINA, Pedro Manuel. Capacidad económica y sistema fiscal: análisis del ordenamiento español a la luz del Derecho alemán. Madrid-Barcelona: Marcial Pons, 1998. p. 94.

81 STF, Pleno, RE 153.771/MG, Rel. p/ acórdão Min. Moreira Alves, DJU 5.set.1997, p. 41.892, ementado da forma que se segue: "IPTU. Progressividade. - No sistema tributário nacional é o IPTU inequivocamente um imposto real. - Sob o império da atual Constituição, não é admitida a progressividade fiscal do IPTU, quer com base exclusivamente no seu artigo 145, § 1º, porque esse imposto tem caráter real que é incompatível com a progressividade decorrente da capacidade econômica do contribuinte, quer com arrimo na conjugação desse dispositivo constitucional (genérico) com o artigo 156, § 1º (específico). - A interpretação sistemática da Constituição conduz inequivocamente à conclusão de que o IPTU com finalidade extrafiscal a que alude o inciso II do § 4º do artigo 182 é a explicitação especificada, inclusive com limitação temporal, do IPTU com finalidade extrafiscal aludido no artigo 156, I, § 1º. - Portanto, é inconstitucional qualquer progressividade, em se tratando de IPTU, que não atenda exclusivamente ao disposto no artigo 156, § 1º, aplicado com as limitações expressamente constantes dos §§ 2º e 4º do artigo 182, ambos da Constituição Federal. Recurso extraordinário conhecido e provido, declarando-se inconstitucional o sub-item 2.2.3 do setor II da Tabela III da Lei 5.641, de 22.12.89, no município de Belo Horizonte".

82 Trecho retirado do voto do Relator (p. 11).

83 Trecho retirado do voto do Min. Moreira Alves, Relator para acórdão (p. 3).

84 São incluídas também taxas de limpeza pública e de urbanização.

85 A base de cálculo do ITBI e do IPVA também é o valor venal do bem (ou do direito, no caso do ITBI) transferido, motivo pelo qual as considerações aqui feitas a eles se aplicam. Deve ser ressaltado, no entanto, que a Corte Constitucional tem um verbete de sua Súmula dedicado exclusivamente à incidência da progressividade no ITBI. Diz o verbete nº 656: "É inconstitucional a lei que estabelece alíquotas progressivas para o imposto de transmissão inter vivos de bens imóveis - ITBI com base no valor venal do imóvel". Analisando os precedentes que levaram à edição desse verbete, destaca-se o leading case RE 234105/SP, cuja ementa recebeu a redação que ora se transcreve: "CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE TRANSMISSÃO DE IMÓVEIS, INTER VIVOS - ITBI. ALÍQUOTAS PROGRESSIVAS. C.F., art. 156, II, § 2º. Lei nº 11.154, de 30.12.91, do Município de São Paulo, SP. I. - Imposto de transmissão de imóveis, inter vivos - ITBI: alíquotas progressivas: a Constituição Federal não autoriza a progressividade das alíquotas, realizando-se o princípio da capacidade contributiva proporcionalmente ao preço da venda. II. - R.E. conhecido e provido" (STF, Pleno, RE 234105/SP, Rel. Min. Carlos Velloso, DJU 31.mar.2000, p. 61). No voto do Relator é recorrente a alusão ao RE 153771/MG, o leading case do IPTU. O Min. Carlos Velloso chega a firmar que o art. 145, §1º, CF/88 consagra expressamente a progressividade, citando, em apoio a essa tese, os ensinamentos de Misabel Derzi. Esta autora, todavia, separa a técnica da progressividade ao imposto de transmissão de bens causa mortis, aplicando-se ao imposto de transmissão de bens inter vivos a proporcionalidade. Não há motivo para qualquer das afirmações feitas: o art. 145, §1º, CF/88 tão-só consagra o princípio da capacidade contributiva e o da personalização dos impostos (quando estes a suportarem); ademais, não há qualquer imposição da adoção da progressividade como técnica de graduação. Por fim, mesmo que à luz do direito comparado haja a diferenciação de técnicas a serem adotadas em sede de imposto de transmissão de bens causa mortis ou de imposto de transmissão de bens inter vivos, o inverso funcionaria perfeitamente (isto é, adotar a proporcionalidade para o primeiro e a progressividade para o segundo). Parece que há outros motivos, muito mais convincentes, para sustentar a impossibilidade de aplicação da progressividade fiscal aos impostos reais. Esses argumentos serão expostos em momento próprio.

86 O fenômeno da reforma legislativa de decisão judicial foi bem conceituado por William N. Eskridge, Jr., em artigo paradigmático no assunto: "This article will use the term ‘override’ to mean any time Congress reacts consciously to, and modifies a statutory interpretation decision. A congressional ‘override’ includes a statute that: (1) completely overrules the holding of a statutory interpretation decision, just as a subsequent Court would overrule an unsatisfactory precedent; (2) modifies the result of a decision in some material way, such that the same case would have been decided differently; or (3) modifies the consequences of the decision, such that the same case would have been decided in the same way but subsequent cases would be decided differently" (ESKRIDGE, JR., William N.. Overriding Supreme Court statutory interpretation decisions. The Yale Law Journal, v. 101, n. 1, p. 332, out./1991). A expressão foi utilizada aqui com esse mesmo sentido.

87 V. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O Poder Constituinte. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 124.

88 Em resumo, são tidos como argumentos favoráveis o reconhecimento a uma proteção das decisões políticas fundamentais (e.g., SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 371-382), a garantia mínima de imutabilidade e a deferência de garantias oferecidas pela constituição formal à constituição material (para ambos os argumentos, v. MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 414-417). Em sentido oposto, os argumento desfavoráveis, melhor sistematizados por Vanossi (VANOSSI, Jorge Reinaldo A.. Teoría constitucional. Vol. I – Teoría constituyente: Poder Constituyente fundacional, revolucionario, reformador. Buenos Aires: Depalma, 1975, p. 188-190), versam sobre a privação do Poder Constituinte Reformador da sua função essencial, a constatação de que a vocação para a perenidade somente se dá em tempos de normalidade / estabilidade, o constante tratamento das cláusulas pétreas como resposta do direito natural ao positivismo jurídico, a incompatibilidade com a idéia de que o Estado pode decidir, até mesmo, sua própria extinção, mas não mudanças substanciais nas leis fundamentais; e, por fim, o reconhecimento de que uma vedação de reformação desse porte acaba se revelando um convite à revolução, justamente aquilo que se gostaria de evitar.

89 CF/88, art. 60, §4º: "§ 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I - a forma federativa de Estado; II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes; IV - os direitos e garantias individuais".

90 Gustavo Miguez de Mello traz um exemplo: "Como discute-se uma reforma constitucional, convém lembrar que no caso do imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana e territorial rural, não se admitindo a dedução das dívidas referentes aos imóveis sobre os quais eles incidem, são tributos que, se vier a ser autorizada a cobrança deles sob alíquotas progressivas, poderão afrontar o princípio da capacidade contributiva: o contribuinte pode ter assumido dívida de valor igual ao do imóvel comprado; o imóvel pode até mesmo ter seu valor venal reduzido no mercado e o débito tributário aumentado com a fluência de juros, superando este o valor daquele. Na verdade o imposto predial e territorial urbano cobrado sob alíquotas progressivas pode, portanto, se tornar regressivo em relação à renda e à capacidade contributiva, como poderá ocorrer se o contribuinte se endividar muito para adquirir o imóvel. Imóvel e dívida no valor dele não são índices de capacidade contributiva" (MELLO, Gustavo Miguez de. Princípios gerais tributários. Cadernos de Pesquisas Tributárias, São Paulo, n. 18, 1993. p. 124). V. tb. MARTINS, Ives Gandra da Silva e BARRETO, Aires F.. IPTU: por ofensa a cláusulas pétreas, a progressividade prevista na Emenda 29/2000 é inconstitucional. Revista Tributária e de Finanças Públicas, n. 44, mai.-jun./2002. p. 282.

91 Por isso Leonardo P. Antonelli assume que a proporcionalidade é a técnica de graduação aplicada aos impostos reais: "Não fosse pelas características apontadas pelo ilustre tributarista, o IPTU, imposto notoriamente real, já atenderia em tese ao princípio da capacidade contributiva, uma vez que, havendo alíquotas uniformes, a imposição fiscal seria, naturalmente, automaticamente, proporcional à riqueza. Em outras palavras, quanto mais valioso for determinado imóvel, proporcionalmente maior será o IPTU devido. A proporcionalidade é da natureza dos impostos reais sobre o patrimônio (IPTU, ITBI, IPVA), cuja base de cálculo seja o valor de mercado do bem" (ANTONELLI, Leonardo Pietro. Emenda Constitucional 29/2000 – Progressividade do IPTU: inconstitucional correção legislativa da jurisprudência do STF. Revista Tributária e de Finanças Públicas, n. 39, jul.-ago./2001. p. 98).

92 STF, RE 423768/SP, voto do Ministro Marco Aurélio, ainda pendente de publicação, sujeito à revisão e gentilmente cedido pelo Gabinete do Ministro para fins exclusivamente acadêmicos.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BAPTISTA, Renata Ribeiro. (Ainda) a capacidade contributiva e a progressividade tributária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1538, 17 set. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10419. Acesso em: 28 mar. 2024.