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A filiação socioafetiva no direito brasileiro e a impossibilidade de sua desconstituição posterior

A filiação socioafetiva no direito brasileiro e a impossibilidade de sua desconstituição posterior

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Se afetividade e convivência são elementos essencialmente fáticos, é natural cogitar da possibilidade de seu desaparecimento "a posteriori".

Sumário. Introdução; 1. Notas para uma reconstrução histórica: a formação do paradigma do biologismo na filiação; 2. O surgimento do paradigma da socioafetividade; 3. O estágio atual: a prevalência da filiação socioafetiva; 4. A impossibilidade de desconstituição posterior da filiação socioafetiva; 4.1. Colocação do problema e sua importância; 4.2. Enfrentando o problema: a impossibilidade de desconstituição e seu fundamento; 4.3. Perspectivas concretas; Conclusão; Referências Bibliográficas.


Não basta que o ente procriado saiba, à luz da natureza, quem concorreu, pela cópula, para o seu aparecimento à face da Terra, é necessário que a relação natural ou real surja com valor e eficácia perante o ordenamento jurídico, na vida das relações sociais, alcance foros ou dignidade de vínculo jurídico. (SILVEIRA, 1971, p. 11)


Introdução

É de se reconhecer que o excerto escolhido para fazer as vezes de epígrafe ao presente trabalho se revela um tanto deselegante, na crua sinceridade da escolha sem rodeios de palavras que hoje não constariam com tanta desenvoltura de um texto científico de direito de família.

Também não devemos nos furtar a admitir que, vindo a lume em um escrito como este, ele se mostra propositalmente fora de seu contexto original. É dever relembrar que o parágrafo acima reproduzido foi escrito em 1971, em um Portugal ainda extremamente conservador em matéria de filiação, no corpo de um ensaio que se destinava a examinar a disciplina legal da investigação de paternidade então correntemente adjetivada ilegítima. E que pretendia, sobremodo, deixar claro que seria necessária a intervenção estatal, com todas as suas restrições de acessibilidade, para que aquela relação de filiação pudesse produzir efeitos, ainda que os limitados efeitos condicionados pela irremovível nódoa da bastardia.

Mas, feitas estas ressalvas, é preciso salientar que, paradoxalmente, estas linhas soam, hoje, mais atuais que nunca.

Se é inquestionável que o direito de família tradicional, fulcrado na ideologia liberal, tomou para si como parâmetro um conceito de filiação que se alicerça na ascendência biológica, hoje não constitui novidade afirmar que o direito de família contemporâneo abraçou a filiação de ordem socioafetiva como o seu principal referencial (ainda que não o único, por certo).

Em um sistema jurídico como o brasileiro, que incorporou, mormente após a Carta Constitucional de 1988, essa intensa onda de renovação da disciplina das situações familiares, ganha significativo relevo o estudo detido da paternidade e maternidade socioafetivas. Impõe-se aos juristas, pois, abandonar velhas concepções e admitir que o feixe de relações jurídicas entre pais e filhos não há de se estabelecer apenas mediante a determinação da concorrência, pela cópula, para o aparecimento à face da terra, assumindo um caráter bem mais complexo e desafiador.

Como conseqüência imediata, ao assumir-se um novo fundamento para a filiação, todo o seu sistema tem de ser revisto. Afinal, "se a família patriarcal e autoritária é uma estrutura perempta, a lei deve organizá-la sem que o seu estatuto rescenda a passado" (GOMES, 1984, p. 9).

A opção por reedificar o direito de família com base na tábua axiológica constitucional, rejeitando o caminho mais fácil de uma simples adaptação ou ajuste, tendente a conservar resquícios remanescentes das estruturas anteriores, conduz assim a novos problemas, a cuja solução tem de se dedicar a doutrina. E em matéria de filiação socioafetiva, apresenta-se como questão delicada e fundamental a que concerne à possibilidade de revogação do estado de filho socioafetivo, após estabelecido.

Com efeito, se afetividade e convivência são elementos essencialmente fáticos, é natural cogitar da possibilidade de seu desaparecimento a posteriori. As vicissitudes das relações interpessoais, em sua imprevisibilidade, não raro contemplam situações de desentendimento, e o que era afeição se converte em indiferença ou desafeto. Também não são exíguos os exemplos em que cessa de todo a convivência, e os laços entre os indivíduos, que eram estreitos, tornam-se cada vez mais rarefeitos, até o virtual desaparecimento.

Nada mais comum, nada mais humano. Mas em que medida a cessação dos elementos fáticos que constituíram a relação jurídica de filiação socioafetiva produz efeitos jurídicos? Existe desconstituição posterior do estado de filho em decorrência da interrupção da convivência e do afeto?

Trata-se, como se vê diante de um rápido exame introdutório, de um ponto crucial da teoria da filiação socioafetiva, ainda insuficientemente explorado e discutido. Este trabalho se propõe, portanto, a abraçar o debate e analisar a questão, bem como tangenciar os seus principais desdobramentos e conseqüências práticas.

Cindir-se-á a exposição textual em quatro partes. Na primeira, empreende-se digressão histórica a respeito do paradigma biológico da filiação e sua formação; na segunda, ingressa-se no tema do surgimento do paradigma socioafetivo; na terceira, visita-se o estado da arte da filiação socioafetiva no direito brasileiro contemporâneo, perquirindo o seu atual significado e suas potencialidades; por fim, na quarta parte, descortinadas as premissas básicas sobre as quais nos apoiaremos, poderemos enfrentar o problema específico da possibilidade de desconstituição do vínculo filial socioafetivo.


1.Notas para uma rápida reconstrução histórica: o estabelecimento do paradigma do biologismo na filiação

Para a geração que formou sua consciência jurídica em meio ao direito civil tradicional, [01] vivenciando a sua transição para o direito civil contemporâneo, chega a ser intuitivo associar o instituto da filiação ao paradigma [02] do biologismo. Nesse âmbito, determina-se a filiação pela origem biológica, com o auxílio de presunções legais tendentes a facilitar a sua identificação prática, adotadas em razão das limitações científicas que impediam, antes do advento dos testes de DNA, a certeza a respeito da origem genética. [03]

Essa vinculação da relação jurídica de filiação à origem genética não pode, porém, ser tomada como um dado histórico perene.

É preciso enxergar o biologismo como apenas um dos critérios utilizados ao longo do tempo para determinação da filiação, ainda que tenha experimentado uma longa fase de predominância. [04] Há de se ter em conta a exata medida da relatividade de sua importância para o instituto, e uma breve recapitulação histórica nos ajuda a perceber tal necessária contextualização.

Numa Denis Fustel de Coulanges, em seu tantas vezes lembrado estudo histórico sobre os costumes greco-romanos, aponta o parentesco, na idade antiga, como intimamente ligado aos laços religiosos (2001, p. 43). Assim, dois homens seriam parentes quando partilhassem o culto aos mesmos antepassados, sendo importante observar que inexistia parentesco por ascendência exclusivamente feminina, ou seja, o compartilhamento de uma mesma antepassada mulher não ligava dois homens por parentesco, posto que cada um estaria vinculado ao culto doméstico de seus antepassados masculinos (COULANGES, 2001, p. 43-44).

A isso some-se a emancipação, que desligava o indivíduo de seu culto doméstico, e a adoção, que o vinculava plenamente a outro, e a idéia de filiação para os antigos pode ser resumida nos termos seguintes (COULANGES, 2001, p. 46):

We can now understand why, in the eyes of the Roman Law, two consanguineous brothers were agnates, while two uterine brothers were not. Still we cannot say that descent by males was the immutable principle on which relationship was founded. It was not by birth, it was by worship alone, that the agnates were recognized. The son whom emancipation had detached from the worship was no longer the agnate of his father. The stranger who had been adopted, that is to say, who has been admitted to the worship, became the agnate of the one adopting him, and even of the whole family. So true is it that it was the religion that established relationship.

Veja-se que o liame de parentesco está fora do paradigma biológico, obedecendo a regras diversas. É a esse parentesco (agnatio) que a Lei das XII Tábuas se refere, [05] refletindo a posição do direito romano pré-clássico. [06]

Posteriormente, a partir da República e nos princípios do Império, ganha força um parentesco baseado em laços de sangue (cognatio), independente da agnatio (KASER, 1999, p. 348-349).

Passaram a coexistir os dois fundamentos da filiação: de um lado, a agnação, parentesco de direito civil fundado na autoridade formal do pater famílias, e, de outro, a cognação, regida por laços naturais e que permitia, inclusive, a vinculação por ancestralidade feminina (PETIT, 2003, p. 120).

No direito pós-clássico, percebe-se com clareza a duplicidade de fundamentos da filiação, conforme as Institutas de Justiniano (2001, p. 42 e 43), de acordo com o texto constante do título XV, §§ 1º e 3º, já na tradução brasileira:

§1º. São agnados os cognados associativamente por cognação do sexo masculino, uns na condição daqueles que tem parentesco por parte de pai, v.g., o irmão nascido do mesmo pai, o filho do irmão ou o neto nascido deste filho; e igualmente o tio paterno, seu filho e o filho nascido deste último. Mas os aparentados (ligados) pela cognação de pessoas do sexo feminino não são agnados mas sim cognados por direito natural. Assim, o filho de tua tia materna não é teu agnado, mas sim teu cognado. (...)

§3º. Mas o direito de agnação é rompido quase sempre por meio de todos os modos de diminuição da capacidade pois a agnação designa um direito. O direito de cognação, contudo, não se altera mediante todos esses modos, visto que seguramente pode a lei civil extinguir os direitos civis, mas certamente não os direitos naturais.

O direito romano, como se vê, conheceu a filiação biológica (cognatio), mas também uma filiação que, ligada ao critério do culto religoso, desvinculava-se do laço do biologismo (agnatio), e é relevante observar que esta não apenas foi anterior àquela, como ainda foi a única vigente durante o período pré-clássico.

Na Idade Média, já sob influência da canonística, adota-se o critério da legitimidade, ou seja, legítimo é o filho nascido na constância do casamento, enquanto que os demais são considerados bastardos e sofrem uma série de limitações jurídicas (GILISSEN, 2003, p. 612 e p. 614).

É interessante observar que, de acordo com John Gilissen (2003, p. 614) o direito costumeiro da Europa ocidental, durante o medievo e mesmo em parte da época moderna, desconhecia a filiação por adoção, salvo algumas exceções localizadas em áreas específicas.

O direito brasileiro abraçou esta concepção de filiação, biologizada e marcada por classificações de legitimidade, mas secundada pela adoção, enquanto vínculo de parentesco sem origem genética.

Daí a classificação tradicional, exposta por Pontes de Miranda (1955, p. 3), para quem o parentesco poderia ser consangüíneo, quando fundado em laço de sangue; afim, quando formado entre um indivíduo e a família de outro; e meramente civil, quando emanado da adoção. O parentesco consagüíneo e afim seriam ainda divididos de acordo com o pré-mencionado critério da legitimidade, sendo legítimos os filhos concebidos em meio a casamento válido ou putativo, e ilegítima a filiação que "dimana de ajuntamento sexual ilícito" (MIRANDA, 1955, p. 3).

No direito pré-codificado, os filhos ilegítimos, nascidos fora do casamento, dividiam-se em (a) naturais, [07] aqueles cujos pais não tinham impedimentos entre si ao tempo da concepção, e (b) espúrios, assim considerados os filhos nascidos de "coito danado e punível", a saber, os sacrílegos (filhos de religiosos), adulterinos e incestuosos. [08]

A classe dos filhos sacrílegos desapareceria de nosso direito, bem como do direito português, ainda antes da instituição do casamento civil (ESPÍNOLA, 2001, p. 507), e assim tivemos delineado o quadro que foi acolhido pelo Código Civil de 1916.

A grande revolução na matéria viria bem depois, com a Constituição de 05 de outubro de 1988, que, em seu art. 227, §6º, proibiu quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação e concedeu a todos os filhos, inclusive os adotivos, os mesmos direitos.

Consolidou-se, assim, no direito civil brasileiro tradicional, a filiação por origem biológica, através da procriação, e a filiação por origem socioafetiva mediante adoção, a todas conferindo-se os mesmos direitos. Aquilo que chamamos de filiação socioafetiva propriamente dita engloba, mas vai além da adoção, e examinaremos seu surgimento no tópico seguinte.

O que resta de importante a ser destacado deste breve escorço histórico sobre a filiação é a percepção de que o critério biológico, apesar de sua enorme importância, não foi ao longo do tempo o único utilizado para definir-se a relação de filiação, e experimentou momentos de efetivo desprestígio.

Por outro lado, é imprescindível observar que, inobstante o crescimento da importância da filiação de ordem socioafetiva, nada impede que, no futuro, tenhamos um outro critério de determinação da paternidade. A própria linha evolutiva ora traçada, com a predominância do critério não-biológico da agnatio, seguida do surgimento da cognatio, com o descrédito da adoção na Idade Média e seu ressurgimento na era moderna, claramente aponta para a alternância de padrões e a inexistência de um critério único e definitivo.


2.O surgimento do paradigma da socioafetividade

Verificou-se, no tópico anterior,que a filiação no direito civil tradicional experimentou um longo evolver histórico, até desembocar no chamado paradigma do biologismo, bem resumido nas palavras de Diogo Leite de Campos: "O regime do estabelecimento da maternidade e da paternidade assenta no respeito da ´verdade´ biológica da filiação. A lei quer que os pais ´jurídicos´ sejam os pais naturais. A mãe será aquela de cujo ventre o filho nasceu; o pai será aquele cujo espermatozóide fecundou o óvulo" (CAMPOS, 1997, p. 321).

Como observado, a prevalência da paternidade como conceito biológico se explica pela precedência histórica da natureza sobre a cultura (VILLELA, 1979, p. 402), que fez com que o critério natural da consagüinidade se sobrepusesse ao critério cultural espelhado na convivência e no afeto.

Esse paradigma do biologismo passou a ser contestado a partir do momento em que a doutrina volveu os olhos para a existência de um outro fundamento para a filiação, verdadeiramente de ordem cultural e desde sempre radicalmente presente na adoção: a socioafetividade.

Estrema-se, assim, a ascendência puramente genética, biológica, do exercício concreto da parentalidade, que nem sempre coincidem. O direito torna-se capaz de perceber, através da construção doutrinária então emergente, que paternidade e maternidade não são geração, mas sim afetividade e serviço (VILLELA, 1979, p. 409).

O desempenho perene da função de pai ou de mãe, com a criação de laços afetivos recíprocos com a criança e o desempenho das atividades de educação e cuidado passa a ser visto como suporte fático da filiação, concepção esta que ganharia força após a Constituição de 1988 e sua regulamentação das relações familiares com especial atenção aos princípios da liberdade, da igualdade e da afetividade.

Na palavra de Luiz Edson Fachin, a verdade sociológica da filiação é construída, não dependendo da descendência genética (1996, p. 37), e a partir do momento em que essa concepção de parentalidade ganhou contornos jurídicos claros e se afirmou a viabilidade de sua aplicação no âmbito da dogmática civilista, nasceu um novo paradigma da filiação.

Naturalmente, o reconhecimento da eficácia jurídica da paternidade despida de ascendência genética não exclui a possibilidade, mesmo concomitante, de vir a origem biológica a produzir efeitos.

Aí reside um ponto de intensa importância na discussão da paternidade socioafetiva, vislumbrado desde o princípio da discussão da matéria entre nós: a consciência de que da origem genética que não coincide com efetivo exercício de paternidade decorrem deveres jurídicos de responsabilidade patrimonial para com a criança gerada (VILLELA, 1979, p. 404; FACHIN, 1996, p. 38).

Separa-se, portanto, o papel daquele que gerou, e pode por isso ser chamado à responsabilidade, e aquele que efetivamente exerce a paternidade, em todo o seu complexo de direitos, deveres e diversas relações intersubjetivas. O resumo do pioneiro trabalho citado de João Baptista Villela assenta em termos precisos a questão: "Embora a coabitação sexual, de que possa resultar gravidez, seja fonte de responsabilidade civil, a paternidade, enquanto tal, só nasce de uma decisão espontânea" (1979, p. 402).

Podemos, assim, situar o marco inicial da afirmação da paternidade socioafetiva no direito civil brasileiro com o artigo de Villela, em 1979, e o seu maior impulso a partir de 1988, com a nova Constituição, bem identificada como o novo estatuto da filiação (SEREJO, 2004, p. 58).

Entretanto, após este surgimento e afirmação da socioafetividade como um verdadeiro paradigma da parentalidade, experimentou a teoria da filiação socioafetiva um forte abalo devido à evolução dos meios de averiguação da origem genética, sob a forma dos testes de DNA e sua probabilidade quase ínfima de erro.

Nossa doutrina, que vinha evoluindo as idéias de juridicização da afetividade e desbiologização da paternidade passou subitamente a um certo estado de deslumbre com as possibilidades científicas advindas do uso da referida prova pericial.

Assim é que, em textos científicos recentes, afirmou-se que "os progressos da medicina permitem que, com a realização dos exames de DNA, chegue-se a uma conclusão absolutamente segura acerca da paternidade de alguém" (BOSCARO, 2002, p. 83) e que a "utilização desse marcador genético como meio de prova, analisando-se a estrutura genética dos supostos pai e filho, obtendo-se respostas definitivas sobre a alegada relação de parentesco, revolucionou o tema" (VELOSO, 1997, p. 109).

Este posicionamento reflete uma confusão pouco desejável entre paternidade e vínculo genético, que se revela nociva à construção da filiação por ligação afetiva. Recorde-se a distinção essencial: pai é aquele que cria, sendo, o que gera, meramente genitor (entre outros, LÔBO, 2003a, p. 42; CHINELATO, 2004, p. 98). E entre os dois conceitos medeia larga diferença, cuja inobservância representa inequívoco retrocesso.

Neste ensejo, o Superior Tribunal de Justiça forneceu combustível à polêmica ao editar a Súmula 301 de sua jurisprudência predominante, em 2004, que confere à recusa paterna de submissão à prova de DNA o condão de erigir presunção juris tantum de paternidade, súmula esta criticada com contudência pela doutrina. [09]

Afigura-se esta, porém, uma tendência já em franca superação, simples decorrência do espanto causado pela quebra da redoma de sigilo que recobria a origem genética e que deu causa a toda uma construção do paradigma biológico da filiação em meio a vias oblíquas de sua determinação concreta. [10]

Assim, em que pese a força que a recém-editada súmula haverá de exercer na prática judiciária, nota-se o repúdio da doutrina mais atual à deificação do DNA, buscando-se um equilíbrio entre as tendências e o fortalecimento da socioafetividade (ALMEIDA, 2001, 157-163).

Em síntese, a origem genética deve ser buscada apenas quando em prol do princípio-chave do melhor interesse da criança, e deve ser sacrificada quando não o favorecer (TEPEDINO, 2004a, p. 474).

A precisão dos testes genéticos deve ser vista, portanto, de forma relativa e sem exageros, como uma ferramenta útil, mas que não pode conduzir a sobrepujar o parentesco constituído com base na afetividade, que deve sempre prevalecer sobre laço puramente sanguíneo. [11]

Postas estas considerações, passemos, pois, à análise específica da disciplina da filiação socioafetiva no direito brasileiro atual, com o intuito de traçar as linhas gerais de sua aplicação, antes de ingressar no tema da possibilidade de sua revogação.


3.O estágio atual: a prevalência da filiação socioafetiva

A filiação socioafetiva, que, como vimos, encontra sólido apoio nas normas constitucionais sobre direito de família, passa a ter a assento infraconstitucional no art. 1.593 do Código Civil, que menciona a possibilidade de embasar-se o parentesco na consagüinidade ou em "outra origem", locução que engloba a origem afetiva (neste sentido, FACHIN, 2003, p. 17).

Decerto não constitui exagero algum dizer-se que, no direito civil brasileiro contemporâneo, vige mesmo a prevalência do paradigma da socioafetividade, como regra geral do sistema. [12]

Esta a opinião, por exemplo, de Paulo Lôbo, para quem houve uma clara opção da ordem jurídica brasileira pela família socioafetiva; neste contexto, a própria filiação de ordem biológica se legitima e se consolida pelo afeto, na medida em que "o filho biológico é também adotado pelos pais, no cotidiano de suas vidas" (LÔBO, 2003a, p. 144).

Reconhece-se, pois, que o parentesco psicológico "prevalece sobre a verdade biológica e a realidade legal" (DIAS, 2004, p. 66).

Deve ser fixada a linha evolutiva: quando da consolidação do sistema de filiação típico do direito civil tradicional, vivia-se quase que sob a exclusividade do paradigma do biologismo, ressalvado apenas o papel da adoção, tornado secundário pelo fato de ter o filho adotivo, antes das reformas no direito de família, um status prejudicado e menos direitos que o filho consagüíneo dito legítimo; em seguida, já como uma manifestação do direito civil contemporâneo, estabelece-se um novo paradigma, o da socioafetividade, convivendo lado a lado com o parentesco biológico; e, por fim, no estágio atual, chega-se à prevalência do paradigma socioafetivo, como meio de privilegiar as diretrizes constitucionais principiológicas que regem o direito de família, notadamente a afetividade, o melhor interesse da criança, a liberdade e a igualdade.

Posta a noção de que não se confunde pai e genitor, e de que prevalece o vínculo de filiação construído através da convivência e do afeto sobre aquele meramente biológico, é fundamental diferenciar-se o direito ao pai (para tomar de empréstimo a expressão cunhada por HIRONAKA, 2000, p. 71) e o direito de personalidade ao conhecimento da origem genética, com ele inconfundível.

Toda pessoa humana tem direito ao estado de filiação, como prerrogativa contida no âmbito da disciplina jurídica das relações familiares, e essa constituição do estado de filiação pode se dar inclusive através do conhecimento da origem genética, se os laços de paternidade não se constituíram por via da afetividade (LÔBO, 2003b, p. 153).

Diferentemente ocorre quando há uma relação de paternidade socioafetiva pré-constituída. Nestes casos, existe sim o direito à investigação da origem genética, mas ela tem seu fundamento deslocado do direito de família para a seara dos direitos de personalidade; vindica-se a origem genética, não a paternidade (LÔBO, 2003b, p. 153).

São dois, portanto, os fundamentos básicos da teoria da paternidade socioafetiva: as distinções entre genitor e pai e entre direito à filiação e ao conhecimento da origem genética, ambas entrelaçadas.

Partindo dos princípios anteriormente analisados e sem perder de vista que a origem da filiação não pode mais ser questionada (DIAS, 2004, p. 66), uma vez que, independentemente da forma de constituição do vínculo de parentalidade, os direitos dele advindos serão os mesmos, em vista do imperativo constitucional da igualdade entre os filhos (CF, 227, §6º), é útil enumerar as diversas formas de se obter o estado de filho. [13]

A filiação pode ser constituída ope legis ou pela posse de estado, o que significa dizer que ou ocorre a incidência direta de uma norma que regula a atribuição do estado de filho, ou se tem uma situação fática prolongada de convivência e afetividade que conduz à parentalidade.

A primeira espécie comporta três hipóteses, a saber: (a) filiação biológica em face de ambos os pais, no casamento ou na união estável, ou em face do pai ou mãe biológicos na família monoparental; [14] (b) filiação não-biológica por adoção, feita por ambos ou somente por um dos cônjuges; [15] (c) filiação não-biológica por inseminação artificial heteróloga, em face do pai que concedeu sua autorização. [16]

Por serem estas situações direta e expressamente disciplinadas na lei, refletindo modos formalizados e pré-definidos de constituição de filiação, tem-se que nelas existe uma presunção de que efetivamente há a convivência familiar e a afetividade (LÔBO, 2003b, p. 137).

Podemos traçar aqui uma linha comparativa com o matrimônio, meio formal de se constituir uma entidade familiar; após contraídas as núpcias, com o atendimento dos ritos legais, presume-se a convivência e a formação dos laços familiares.

Já a posse de estado é a filiação tipicamente socioafetiva, construída independentemente dos caminhos acima articulados, através de contínua relação de convivência e afeto, desempenhando-se no plano fático os papéis de pai e filho.

Aqui a analogia imediata seria com a união estável, situação de fato desprovida de maiores formalidades constitutivas e na qual inexiste presunção de convivência, devendo ser ela comprovada para que se tenha como existente a entidade familiar. [17]

Neste sentido, o artigo 1.605 do Código Civil prescreve a possibilidade de provar-se a relação de filiação por qualquer modo admissível em direito, mencionando expressamente a existência de "veementes presunções resultantes de fatos já certos".

Deve-se, pois, fazer prova "di una serie di fatti che, nel loro complesso, valgano a dimostrare le relazioni di filiazione e di parentela fra una persona e la famiglia a cui essa pretende di appartenere" (GAZZONI, 1998, p. 391).

Quais seriam esses fatos que demonstram a posse do estado de filiação? Trata-se de situação nem sempre fácil de ser caracterizada, e que demanda análise casuística e flexível, sujeita à ponderação in concreto do julgador (PIMENTA, 1986, p. 161-162), mas para a qual concorrem alguns critérios de sólida construção doutrinária.

Lembrem-se os três postulados tradicionais: nomen, tractatus e fama (MIRANDA, 2001, p. 71).

O nomen consiste no uso do nome da família. Não é, porém, um requisito dos mais essenciais (GONÇALVES, 1955, p. 269), uma vez que, como é óbvio, a informalidade da situação pode fazer com que o filho não porte o nome dos pais.

O tractatus é, a nosso ver, o ponto fundamental, posto que espelha o exercício fático da paternidade, construída na afetividade e na convivência. É o tratamento filial, correspondendo à educação, fornecimento dos meios de subsistência (MIRANDA, 2001, p. 71), carinho, atenção, assunção de responsabilidade.

Por fim, a fama, que nada mais é que a exposição pública da relação de convivência paterno-filial. Essa publicidade não precisa se estender a todos os que conhecem os pais e o filho, mas também não existe quando do conhecimento quase que secreto de apenas alguns íntimos (SILVEIRA, 1971, p. 76).

A posse de estado pressupõe, como é natural, o trato sucessivo, uma duração "suficiente", embora não seja abalada por interrupções que não gerem efetiva descontinuidade na filiação sócio-afetiva (PIMENTA, 1986, p. 165).

Assente-se com clareza, porém, que esses requisitos são meramente exemplificativos e devem ser analisados com temperança, sem excessiva rigidez, com a atenção de tentar delinear sem formalismos o exercício fático da paternidade, que é o que importa ao melhor interesse da criança.

A esse respeito, Cunha Gonçalves já apontava com boa dose de precisão que "as pessoas agem diferentemente em relação aos filhos, uns sendo mais emotivos e sentimentais, e outros mais fechados" (1955, p. 276). Essas diferenças não elidem a natureza da relação, que é paternal, e por isso não se pode trabalhar com conceitos fechados ou situações pré-modeladas: as vicissitudes do caso concreto ditarão a qualificação da relação fática e sua juridicização enquanto filiação socioafetiva.

Por fim, é de se lembrar que se insere na temática da posse de estado a chamada "adoção à brasileira", consistente no registro de uma criança por aqueles que não são seus pais biológicos e o conseqüente estabelecimento de uma relação paterno-filial afetiva (LÔBO, 2003b, p. 140). [18]

Estas as linhas gerais da filiação socioafetiva no direito brasileiro contemporâneo. Podemos, então, passar ao âmago de nosso trabalho, investigando acerca da possibilidade de sua desconstituição a posteriori.


4.A impossibilidade de desconstituição posterior da filiação socioafetiva

4.1.Colocação do problema e sua importância

Observamos, no tópico anterior, que existem diversas formas de se constituir uma relação de filiação socioafetiva, independente de consangüinidade. Algumas são atuantes ope legis, como ocorre com a adoção e a inseminação artificial, e por isso gozam de uma presunção legal de existência de convivência e afetividade. Outras constroem-se sem atender a específicas formalidades normadas, e por isso dependem de prova da relação socioafetiva, plasmada no serviço e no afeto (notadamente, a posse de estado e a adoção à brasileira).

No que toca às primeiras, como se desenvolvem sob abrigo de critérios formais delineados, já é assentado na doutrina que não podem ser reversíveis (LÔBO, 2003b, p. 137). Consumado o processo de adoção, ou dado o consentimento para a inseminação, tem-se uma consolidação inequívoca do liame de filiação, que não pode vir a ser desfeito.

Não se verifica, contudo, semelhante pacificidade doutrinária quanto à filiação socioafetiva, o que se agrava ante a percepção de que a mesma não se desenvolve através de previsíveis esquemas formais, mas em meio à incerteza típica das relações de fato.

Vale analisar brevemente o mecanismo da juridicização da filiação socioafetiva para que nos façamos mais claros.

A afetividade, de per si, foi por longo tempo considerada pelo direito de família como um mero aspecto meta-jurídico. Nunca se negou sua existência, nem a relevância de seu papel para a família. Negava-se, isto sim, a possibilidade de que viesse a produzir efeitos no mundo jurídico, estruturando-se a disciplina legal das relações de família sem levá-la em consideração.

A constitucionalização do direito civil, da qual é corolário a repersonalização das relações de família,veio cambiar esta situação, tornando a afetividade um princípio fundamental da filiação, fulcrado na Carta Magna (LÔBO, 2000, p. 1).

Na expressão de Fachin, passou a ser reconhecido pela jurisprudência o "valor jurídico do afeto", como elemento primordial para o estabelecimento da filiação (2003, p. 28).

O afeto torna-se, então, elemento componente do suporte fático da filiação socioafetiva. Isto significa dizer que temos filiação socioafetiva quando o estado fático trazido à apreciação conjuga afeto, convivência, tratamento recíproco paterno-filial e razoável duração. [19]

Esta relação de fato passa a ser reconhecida juridicamente, gestando um vínculo que produz todos os efeitos de qualquer outro vínculo de filiação, tendo em conta a previsão do art. 227, §6º, da Constituição Federal.

Sucede que, como relação fática, pode ocorrer sua interrupção, ou modificação, conforme ocorra a retirada ou a transmutação de um desses pressupostos. Isto significa questionar: desaparecendo posteriormente aqueles elementos do suporte fático, cessando a convivência, a afetividade, o tratamento paterno-filial, como comportar-se-á o direito de família? Construída uma relação de filiação socioafetiva, se a ela sobrevier a alteração das condições fáticas que lhe deram nascimento, existe possibilidade de sua desconstituição perante o direito?

Despiciendo alertar que se trata de problema da maior importância, posto que, da solução que lhe for emprestada, dependerá grande sorte de conseqüências jurídicas, como a desvinculação do indivíduo de seus pais e dos parentes colaterais, a possibilidade de mudança de seu nome, o parentesco gerado com os netos, que seriam desligados dos avós socioafetivos, a obrigação alimentar, a herança, e tantos outros.

Cumpre, portanto, analisar detidamente tal questão.

4.2.Enfrentando o problema: a impossibilidade de desconstituição e seu fundamento

Expusemos, no tópico anterior, um breve esquema de como se opera a juridicização da filiação socioafetiva, como situação essencialmente fática, despida de formalidades legalmente previstas, que se converte em relação jurídica de eficácia idêntica àquela das constituídas sob o pálio das estruturas formalizadas pelo ordenamento.

Cumpre observar, em seguida, qual a conseqüência deste reconhecimento jurídico da relação fática de paternidade fundada no afeto e no serviço. E temos que esta é a constituição plena da relação de filiação. Quando ocorre a concretização, no mundo dos fatos, dos elementos integrativos do suporte fático da paternidade socioafetiva, gerada está a relação complexa de filiação, com a vinculação do filho aos pais, a instalação dos respectivos poderes-deveres inerentes à autoridade parental e todos os demais efeitos típicos da parentalidade.

Naturalmente, integra tal fattispecie a duração razoável (ver tópico 3, supra). Mas, supondo consolidada a filiação socioafetiva, durante todo esse tempo tomado por bastante, que solução se dará se a convivência ou o afeto vêm depois a cessar, interrompendo a confluência dos elementos fáticos da filiação?

Óbvia é a resposta de que nos depararemos com o óbice de uma relação de filiação devidamente constituída. Mas esta circunstância não é concludente para se aferir a possibilidade ou não de vir a ocorrer a desconstituição pela cessação dos pressupostos fáticos. Basta lembrar a analogia com a união estável, situação fática desprovida de formalidades que também importa em definição de um status familiar e que se encerra se desaparecerem os seus requisitos.

A resposta parece estar nas reverberações que a constituição do estado de filiação exerce na personalidade do filho, formatando-a e dando-lhe uma identidade própria tutelada em sede de direitos de personalidade.

Neste sentido, identifica-se um direito a ter pai como ínsito à personalidade humana, inserindo-se neste contexto outros direitos da personalidade, como o direito à identidade, em sentido lato (incluindo-se o direito ao nome) e o direito à integridade psíquica (CHINELATO, 2004, p. 89), direito este que a que corresponde "o dever de todos de não causar dano à psique de outrem", visto que a identidade psíquica é "um bem em si" (MIRANDA, 2000, p. 54-55).

Contudo, subjaz à discussão em questão um problema específico da teoria dos direitos de personalidade, qual seja, a da sua tipificação ou generalização, refletindo a batalha doutrinária entre as correntes pluralista e monista.

Com efeito, os autores tradicionais costumam adotar uma dogmática dos direitos de personalidade baseada em figuras tipificadas, como o direito à vida, direito à integridade física, direito ao nome, etc.

Nesta posição, a referência clássica é Adriano de Cupis, para o qual a indeterminação da extensão dos direitos de personalidade importaria em descrédito de tal categoria de direitos (CUPIS, 2004, p. 39), e que estudou em sua obra os direitos de personalidade sob a perspectiva da tipificação.

Existe ainda uma posição intermediária, abraçada por Sílvio Beltrão (2005, p. 55-56), com apoio em José de Oliveira Ascenção, sustentando que, entre uma disciplina estruturada sob o fundamento da tipicidade estrita e um direito geral de personalidade, dever-se-ia optar por um sistema de numerus apertus, permitindo-se a adoção de novos direitos de personalidade, com apoio no princípio da dignidade humana. Esta concepção teria a vantagem de evitar a incerteza jurídica advinda de abraçar-se um direito geral, concretizado na aplicação prática (BELTRÃO, 2005, p. 55).

Pensamos diversamente, filiando-nos à corrente que pode ser denominada monista.

Deve-se considerar existente no ordenamento civil-constitucional uma verdadeira cláusula geral de tutela da personalidade humana, como seu valor máximo (TEPEDINO, 2004b, p. 50). Dela deflui que a personalidade deve ser tutelada em todas as circunstâncias em que estiver envolvida, sem rigidez de tipificação de direitos autônomos. [20]

A proteção da personalidade humana não pode ser fragmentada, devendo-se chegar, em cada caso concreto, à análise da tutela específica e eficaz que a irá proteger (DONEDA, 2002, p. 46).

Interessante, neste particular, a imagem que Tepedino toma de empréstimo a Giampiccolo, de que os direitos da personalidade tipificados nada mais são que componentes do feixe complexo de prerrogativas que compõe a íntegra cláusula geral de tutela da personalidade. Esta concepção permite uma analogia com as faculdades integrantes do domínio, que é em si a reunião indivisível de uti, frui, abutere, [21] assim como o direito de personalidade significa, exemplificativamente, uma conjunção do respeito à vida, à identidade, à integridade física e psíquica, e a tantos quantos forem os seus possíveis desdobramentos, sem prejuízo de sua unidade (TEPEDINO, 2003b, p. 46).

Como síntese, é esclaredora a lição de Rabindranath Capelo de Sousa (1995, p. 93):

Adentro do direito civil, retira-se da precedente exposição uma noção comparada do direito geral de personalidade como o direito de cada homem ao respeito e à promoção da globalidade dos elementos, potencialidades e expressões de sua personalidade humana bem como da unidade psico-físico-sócio-ambiental dessa mesma personalidade humana (v.g. da sua dignidade humana, da sua individualidade concreta e do seu poder de autodeterminação), com a conseqüente obrigação da parte dos demais sujeitos de se absterem de praticar ou deixar de praticar actos que ilicitamente ofendam ou ameacem ofender tais bens jurídicos da personalidade alheia, sem o que incorrerão em responsabilidade civil e/ou na sujeição às providências adequadas a evitar a consumação da ameaça ou a atenuar os efeitos da ofensa cometida. (...) O que, embora insira no direito geral de personalidade elementos de indefinição e de incerteza preliminares próprios das cláusulas gerais, que nos sistemas jurisprudenciais demasiado positivo-formais lhe cerceiam muita da sua eficácia prática, todavia permite, em sistemas jurisprudenciais valorativos, conferir ao direito geral de personalidade maleabilidade e versatilidade de aplicação a situações novas e complexas.

Vale ainda efetuar um acréscimo ao exposto, que radica na necessidade de se concretizar a cláusula geral de proteção da personalidade com meios bem mais amplos que a mera reparação de dano, somada à tutela inibitória.

Em que pese ser o direito geral de personalidade [22] um direito absoluto (SOUSA, 1995, p. 616-617), no sentido de oponível erga omnes, é preciso refutar a sua aproximação com o modelo de direito absoluto que nos é mais familiar, que é o domínio, porquanto existe uma evidente insuficiência da tutela de tipo dominical para a proteção da pessoa humana (TEPEDINO, 2004b, p. 47).

O objetivo principal determinado pela cláusula geral de proteção da personalidade deve ser alcançar uma tutela ampla, que vá além das estruturas voltadas para a defesa de interesses patrimoniais e alcance uma função promocional (DONEDA, 2002, p. 58); a incidência normativa da tutela da personalidade se estende a todos os momentos da atividade econômica, de modo que a própria validade dos atos jurídicos deva estar condicionada ao desenvolvimento e realização da pessoa humana (TEPEDINO, 2004b, p. 54).

Abraçada uma teoria de direitos da personalidade nestes termos estruturada, temos que a mesma vem a fornecer, de forma concludente e satisfatória, os fundamentos necessários para se basear a impossibilidade de desconstituição posterior da filiação socioafetiva. [23]

Realmente, constituída a filiação socioafetiva, contrói-se a identidade do ser humano que é apontado como filho e nestes termos se desenvolve. Saber quem são seus pais, assim como conhecer a sua origem genética, são aspectos que moldam e formatam a personalidade do indivíduo.

De conseguinte, se a convivência, a afetividade ou ambas vêm a ser interrompidas por fatos posteriores, não há a cessação da relação de filiação socioafetiva, e por uma razão simples: a cláusula geral de tutela da personalidade humana proíbe tal dissolução, que significaria retirar ao indivíduo, por vontade de outrem (e por vezes visando um interesse meramente patrimonial) um dos mais relevantes fatores de construção de sua identidade própria e de definição de sua personalidade.

Constitui-se, pois, para todos os efeitos, uma relação plena de filiação, a qual, para adequada proteção da pessoa pelo ordenamento, não pode se sujeitar a incertezas ou a instabilidades emocionais dos sujeitos envolvidos.

Silmara Chinelato afirma, com propriedade, que "paternidade não é roupa que se veste e se desveste"; "ser pai não pode ser aceito como estado variável, segundo seu animus e/ou segundo o estágio ou estádio de relacionamento com a mãe" (2004, p. 66 e 63).

Tem-se, assim, uma situação existencial plenamente consolidada, cuja ruptura significaria evidente violação à personalidade dos indivíduos envolvidos. E se concebemos, para o direito geral de personalidade, uma tutela eminentemente promocional e ampla, destinada à garantia do adequado desenvolvimento do ser humano, não podemos compactuar apenas com conseqüências meramente reparatórias e sancionatórias: emerge, do próprio sistema de tutela da personalidade, uma vedação a tais situações de lesão, que conduz à invalidade absoluta de qualquer tentativa de desconstituição do estado de filiação.

Retoma-se para a filiação socioafetiva, desta forma, aquele que Carvalho Santos, estudando o reconhecimento de paternidade, chamava de princípio universal: "o estado de filho, uma vez adquirido, não se perde" (1988, p. 464).

4.3.Perspectivas concretas

Permita-se, por fim, o breve esboço de algumas situações práticas a que a construção teórica anteriormente exposta se aplique.

A primeira e mais óbvia seria a da adoção à brasileira, na qual não se poderia questionar o ato de registro efetuado anteriormente, quer sob argumento de cessação dos vínculos concretos, quer sob o argumento da diversidade de origem genética.

Não é possível, assim, que uma vez efetuada a filiação por adoção à brasileira, e desempenhado, no dia-a-dia, o exercício da paternidade afetiva, venha um ou ambos dos pais pleitear a nulidade do registro, inclusive por manifestação do secular princípio segundo o qual nemo potest venire contra factum proprium (neste sentido, LÔBO, 2003b, p. 151).

Da mesma forma ocorre quando aquele que não é o genitor registra o filho de sua mulher, sendo-lhe vedado o questionamento futuro de tal registro, se a ele se seguiu toda a construção de uma relação de socioafetividade.

Também não é viável que o próprio filho venha tentar desconstituir a relação socioafetiva instalada, nem tampouco os filhos biológicos do casal podem impugnar a filiação de seu irmão socioafetivo.

Terreno ainda mais fértil para possíveis exemplos é o da posse de estado, e nele se pode conceber, por exemplo, o afastamento entre os pais e o filho, que posteriormente resulta na tentativa de impugnação da filiação socioafetiva por parte de qualquer deles.

Não é a perda de contato, por tempo mais ou menos extenso, que possuirá o condão de destituir a relação já consolidada como sendo de filiação.

Outra possibilidade seria a ocorrência de divergências pessoais que conduzam a desentendimentos e à tentativa de ruptura do vínculo jurídico de filiação.

Se um dos pais briga com o filho, seja por qual motivo for, não cabe a desconstituição da filiação, embora não se impeça, uma vez presentes as causas legais, uma eventual deserdação, ou a perda do poder familiar.

Não custa lembrar que não há disponibilidade no que toca às questões de estado, não podendo haver acordo entre pais e filhos quanto a uma possível desconsideração da filiação. A vontade não tem o poder de modelar livremente as relações de família, regidas que são por normas de ordem pública.

Ressalve-se, porém, a possibilidade de vir o filho socioafetivo a ser posteriormente adotado por um terceiro, desde que atendidos os requisitos legais. Apenas nesta hipótese será viável a desconstituição da filiação anteriormente existente, mediante sua substituição por uma outra relação de parentalidade juridicamente lícita, estabelecida através da adoção, o que aponta para uma exceção à regra de que a filiação socioafetiva é perpétua, sem entretanto infirmá-la.


Considerações Finais

A filiação é um conceito jurídico de razoável maleabilidade, tendo sofrido substanciais modificações ao longo do tempo.

Assim é que, em Roma, tem-se a princípio um parentesco fundado substancialmente nos laços religiosos do culto (agnatio), ao qual se seguiu uma mudança para a consagüinidade (cognatio).

Sucedem-se no tempo, de acordo com as mudanças do tecido social, os critérios para determinação da parentalidade. No direito tradicional, tinha-se um forte predomínio do paradigma biológico, temperado pelas técnicas de presunção, e no direito contemporâneo, evolui-se para a o paradigma da socioafetividade, o que não significa não possa ela vir a ser, no futuro, mitigada ou mesmo substituída por outro critério.

No direito brasileiro em vigor, tem prevalência a paternidade socioafetiva, apesar da influência que a facilitação da pesquisa da ascendência genética por testes de DNA teve quando de seu aparecimento e popularização, o que levou, inclusive, à edição da controvertida Súmula 301 do Superior Tribunal de Justiça, que tende a ser superada pela maturação doutrinária e jurisprudencial da teoria da filiação socioafetiva.

Deve-se distinguir entre paternidade, radicada na afetividade e na convivência, e origem genética, mero vínculo de procriação. Pai é, pois, aquele que educa, sustenta e dá afeto, ao passo em que o que meramente procria, outra coisa não é que genitor.

Daí defluem as diferenças existentes entre o direito de vindicar a filiação, direito a ter um pai, e o direito de personalidade ao conhecimento de sua origem genética, que com aquele não se confunde.

Não se afasta, porém, a importância residual do critério biológico para aqueles filhos que não dispõem de uma filiação socioafetiva constituída, para fins de atribuir-se a paternidade e, principalmente, a responsabilidade civil.

A filiação pode ser constituída ope legis ou através de posse de estado (na qual se inclui a adoção à brasileira). Na primeira hipótese, o atendimento às formalidades legais impede a desconstituição da filiação formalmente constituída; na segunda, pode ser questionado se a mudança dos estados informais de fato que conduziram ao estabelecimento da filiação pode vir a desconstituí-la.

Foi adotada a posição de que essa desconstituição posterior da filiação socioafetiva não é possível, uma vez que existe no ordenamento brasileiro uma cláusula geral de tutela da personalidade humana, que restaria inquestionavelmente violada se se permitisse reverter a filiação, enquanto elemento crucial na formação da identidade do indivíduo.

A pretensão de desconstituição da paternidade socioafetiva, portanto, seja ela sob a forma de adoção à brasileira, seja sob a forma de posse de estado stricto sensu, é absolutamente vedada no vigente sistema brasileiro de direito civil, dado o choque com a proteção ampla e flexível conferida pelo ordenamento à personalidade humana, inclusive tendo em consideração a função promocional e preventiva (e não meramente punitiva e reparatória) que deve ser conferida à tutela da personalidade.


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Notas

01 Denomina-se neste texto por tradicional o direito civil típico do Estado liberal, estabelecido sobre o papel central das grandes codificações e marcantemente patrimonializado e hierarquizado, e, por contemporâneo, o direito civil do Estado social, constitucionalizado, repersonalizado, despatrimonializado e igualitário. A literatura a respeito é copiosa. Exemplificativamente, pode-se consultar, a respeito das características do direito civil liberal, Paulo Lôbo (1999, p. 103). Focando as novas perspectivas do direito civil contemporâneo sob uma ótica mais conservadora, é válida a exposição de Karl Larenz (1978, p. 44-84); para uma análise mais atual, confira-se Luiz Edson Fachin (2000, p. 222-232 e p. 323-325).

02 O termo paradigma, elucide-se apenas por excesso de clareza, é utilizado no conhecido sentido que lhe deu Thomas Kuhn (1972, p. 154).

03 Daí o velho aforismo mater semper certa est, pater, autem, semper incertus, e a adoção de presunções como a expressa na igualmente clássica sentença de Paulo, pater is est quem nuptiae demonstrant, que deu origem à regra do art. 338 do Código de 1916, rediviva no art. 1597, I e II, do Código de 2002. A respeito da adequação da norma de presunção de paternidade, consulte-se o eloqüente silêncio da doutrina clássica (ALVES, 1917, p. 269; BEVILÁQUA, 1956, p. 234 e 235), bem como a crítica e a relativização de Fachin (1992, p. 166 e segs). Sobre a matéria da paternidade presumida, é ainda fundamental o detalhado estudo de direito comparado feito por Cotrim Guimarães (2001, p. 161-213).

04 A ponto de se poder falar em "paradigma do biologismo".

05 Por exemplo, na Tabula V, dispondo sobre sucessão sem testamento: "Si intestato moritur, cui suus heres nec escit, adgnatus proximus familiam habeto", ou, na tradução espanhola, "Si muere intestado quien no tiene heredero proprio, tenga el patrimonio el agnado más próximo" (GARCIA; GONZÁLES, 2003, p. 10-11).

06 Adota-se aqui a divisão temporal de Vandick Londres da Nóbrega (1961, p. 28).

07 Considera-se natural, assim, o filho nascido fora do casamento sem que subsista impedimento entre os pais. Alain Bénabent (2001, p. 365), porém, observa, não sem boa dose de lógica, que poderia ser denominada "natural" toda filiação de origem biológica.

08 Sobre a classificação em questão, consulte-se os artigos 207 a 211 da Consolidação das Leis Civis de Teixeira de Freitas (1876, p. 170-172), bem como as obras clássicas de Trigo de Loureiro (1871, p. 100) e Lafayette Rodrigues Pereira (2003, p. 273-274).

09 A esse respeito, confira-se o trabalho apresentado Paulo Lôbo no V Congresso Brasileiro de Direito de Família (2005), bem como, para uma análise mais extensa, a dissertação de mestrado de Renata Andrade (2006) e a tese de doutorado de Larissa Leal (2006), ambas no prelo.

10 Com efeito, há não muito tempo se tinha como verdadeira a máxima segundo a qual o pai é sempre incerto, por impossível a efetiva comprovação do vínculo biológico, o que explica o forte elemento de sedução que a remoção dessa dificuldade exerceu. O texto de José dos Santos Silveira fornece um bom exemplo da mística da origem genética, na nem tão distante década de 70: "A demonstração de que o filiando foi procriado pelo pai natural é difícil de se fazer. O fenómeno biológico da geração ou fecundação persiste rodeado de segredo ou mistério no que toca à paternidade. Não é possível, directa e cientificamente, provar que fulano foi gerado ou procriado por beltrano. Chega-se a essa ilação por meios indirectos, através de presunções, conjecturas ou indícios. (...) Ainda hoje, a despeito do desenvolvimento da ciência fisiológica ou biológica, o fenómeno da concepção continua envolto naquele ´secretum et arcanum ipsus naturae´, de que falavam Valasco, Borges Carneiro, Seabra e Dias Ferreira." (SILVEIRA, 1971, p. 22-23).

11 Vale conferir o recente texto de João Baptista Villela (2001), constante dos anais do III Congresso Brasileiro de Direito de Família, em que o autor constrói uma história ficcional que bem espelha a tensão entre a filiação constituída diuturnamente através do afeto e os efeitos negativos de alçar-se o teste de DNA a uma forma definitiva de estabelecimento de parentesco.

12 Ainda que os profissionais das carreiras jurídicas, em sua maioria, não tenham se dado conta deste profundo câmbio de direção, como espelha a retro citada Súmula 301 do STJ. Sobre a atuação dos chamados operadores do direito frente às questões de família, confira-se o artigo de Euclides de Oliveira (2003, p. 150-161).

13Lançaremos mão, para tal fim, do esquema proposto por Paulo Lôbo (2003b, p. 137).

14 Código Civil, art. 1.597, I e II.

15 Código Civil, art. 1.618 e 1.622.

16 Código Civil, art. 1.597, V.

17 Sobre o tema das entidades familiares, cuja análise mais detida refoge ao nosso tema, seja-nos consentido remeter ao detalhado estudo de Paulo Lôbo (2002, p. 40-55).

18 Os tribunais têm seguido um direcionamento no sentido de preservar as relações constituídas nestes casos de adoção à brasileira, em benefício do menor. A respeito, consulte-se o levantamento jurisprudencial feito por Paulo Lôbo (2003a, p. 91-93).

19 Utiliza-se, neste particular, a teoria e a terminologia desenvolvidas com especial clareza por Pontes de Miranda (1998, p. 21-24; 1999, p. 49-86). Advirta-se, porém, que embora seja de alta utilidade recorrer aos conceitos de incidência, suporte fático, elementos fáticos e jurídicos, não se deve ceder à equivocada tentação de classificar a filiação socioafetiva de acordo com a teoria do fato jurídico. Impossível classificar a relação fática complexa existente entre os pais e o filho socioafetivo de acordo com o grau de influência da vontade, afirmando-a fato, ato-fato, ato ou negócio jurídico. Na verdade, tem-se sob análise uma figura típica do direito contemporâneo, complexa e irredutível às categorizações estritas hauridas da pandectística e desenvolvidas entre nós com tanto apuro e detalhamento por Pontes. A própria teoria do contrato já vem, de há muito, rebelando-se à redução às categorias descritas, dado o redesenho do papel da autonomia da vontade e a criação de relações contratuais cada vez mais diversificadas e pouco subsumíveis às classificações oitocentistas. Neste sentido, para uma visão atualizada da nova teoria contratual e sua incompatibilidade com a do direito tradicional é válido remeter o leitor às considerações de Enzo Roppo (1988, p. 295-334) e Guido Alpa (2002, p. 269-284).

20 Destaque-se que, para Paulo Lôbo, não é incompatível a técnica da cláusula geral com a da tipificação, desde que estruturada em tipos abertos (LÔBO, 2001, p. 83).

21 Sob pena de, uma vez destacadas as suas faculdades para a constituição de um direito real limitado, o que restar não ser mais o domínio em sentido estrito, mas, por exemplo, a nua-propriedade.

22 Não vemos utilidade concreta para a terminologia civilista na distinção entre cláusula geral de tutela da personalidade e direito geral de personalidade, sendo as expressões, a nosso ver, sinônimas, em que pese o posicionamento contrário de setores amplos da doutrina.

23 O que decerto não ocorreria com tanta precisão se trabalhássemos com uma forma de tutela mais rígida da personalidade, excluindo a sua função promocional, integral e flexível, e condicionando-se-lhe a tipos delineados de direitos da personalidade, ainda que regidos por um sistema de numerus apertus.


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Informações sobre o texto

Originalmente publicado: "Revista Brasileira de Direito de Família, a. 8, n. 39, dez./jan. 2007."

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino de. A filiação socioafetiva no direito brasileiro e a impossibilidade de sua desconstituição posterior. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1547, 26 set. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10456. Acesso em: 29 mar. 2024.