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Parcelamento de precatórios judiciários (art. 78 do ADCT)

abuso do poder constituinte derivado?

Parcelamento de precatórios judiciários (art. 78 do ADCT): abuso do poder constituinte derivado?

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O direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada são intangíveis para o legislador infraconstitucional, não para o poder constituinte reformador.

SUMÁRIO: 1 - O tema; 2 - O debate; 2.1 Constituição de 1988: poder constituinte originário e poder constituinte derivado; 2.2 Alcance da garantia prevista no art. 5º, XXXVI, da Constituição; 2.3 Cláusulas pétreas e estabilidade da Constituição; 3 - A conclusão.


1-0 TEMA

A Emenda Constitucional 30, de 13.09.2000, trouxe, entre outras modificações ao texto constitucional, a que prevê o pagamento parcelado de precatórios judiciários, inclusive os decorrentes de sentenças já transitadas em julgado. Dispõe, com efeito, o art. 78 do ADCT, introduzido pela referida Emenda:

Ressalvados os créditos definidos em lei como de pequeno valor, os de natureza alimentícia, os de que trata o art. 33 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e suas complementações e os que já tiverem os seus respectivos recursos liberados ou depositados em juízo, os precatórios pendentes na data de promulgação desta Emenda e os que decorram de ações iniciais ajuizadas até 31 de dezembro de 1999 serão liquidados pelo seu valor real, em moeda corrente, acrescido de juros legais, em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo máximo de dez anos, permitida a cessão dos créditos.

Questiona-se a constitucionalidade desse dispositivo1, em face da cláusula pétrea do art. 60, § 4º, IV, da Constituição, segundo a qual não podem ser objeto de deliberação as propostas de emendas constitucionais tendentes a abolir "os direitos e garantias individuais". Sustenta-se que ao estabelecer nova forma de pagamento de débitos judiciais, modificando o estabelecido nas correspondentes sentenças, o art. 78 do ADCT comprometeu o direito fundamental previsto no art. 5°, inciso XXXVI, da Constituição: "A lei não prejudicará o direito, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada".

Disposição análoga à do art. 78 do ADCT, a do seu art. 33, foi examinada e considerada legítima pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal2. Argumenta-se, no entanto, que o precedente não pode ser levado em consideração, já que entre as duas situações há um diferencial fundamental: o art. 33 do ADCT constou do texto original da Constituição, sendo obra do poder constituinte originário, enquanto que o art. 78 foi introduzido por emenda à Constituição, ou seja, é produto do constituinte derivado. E se ao constituinte originário, que tudo pode, foi legítimo dispor contra a coisa julgada, isso não era permitido ao constituinte derivado, que está submetido à cláusula pétrea da intangibilidade dos direitos e garantias individuais (art. 60, § 4º, IV, da CF).

A pergunta que se faz, e que aqui se procurará responder, é, portanto, esta: ao dispor em sentido contrário ao estabelecido em sentença transitada em julgado, estaria o legislador abusando do seu poder constituinte derivado?


2- O DEBATE

Não se pode negar que o argumento da distinção entre os artigos 33 e 78 do ADCT, baseada na natureza do poder constituinte que os produziu, tem, assim isoladamente considerado, um certo sabor de petição de princípio, notadamente quando se confronta o conceito de constituinte originário e derivado com a nossa realidade histórica. Ademais, a questão, a rigor, não reside na interpretação da cláusula pétrea em si, mas do conteúdo da garantia prevista no art. 5º, XXXVI, da CF, garantia que não é nova em nosso sistema.

2.1 Constituição de 1988: Poder Constituinte Originário e Poder Constituinte Derivado

Realmente, embora seja relativamente fácil, no plano teórico, distinguir os conceitos de poder constituinte originário e poder constituinte derivado (ou constituído), há uma enorme dificuldade em identificar, concretamente, no plano histórico, um do outro. Tem-se, em doutrina, como poder constituinte originário o poder de fundar uma nova ordem constitucional, rompendo a ordem jurídica anterior. Trata-se, portanto, de poder que não deriva de uma anterior Constituição, que está fora das Constituições e acima delas, um poder essencialmente político, um poder de fato, quase sempre produto de revolução ou de golpe de estado, e que, portanto, tudo pode em seu desiderato fundante. Já o poder constituinte derivado seria o poder de revisar ou reformar a ordem constitucional vigente, e sua legitimidade estaria justamente em ser exercido na forma e nos limites fixados em norma jurídica preexistente, qualificando-se, assim, não como um poder de fato, mas como um poder de direito, formalmente legitimado pela ordem constitucional.

Com base nessas premissas, é comum afirmar-se que, em nossa história política, identifica-se como poder constituinte originário o de que resultou a Constituição do Império de 1824, nascida da proclamação da independência; o da nossa primeira Constituição republicana, de 1891, nascida do golpe que pôs fim ao Império; o das Constituições de 1934 e de 1937, decorrentes da Revolução de 1930 e do golpe de estado subseqüente; o da Constituição de 1946, identificada com a ruína do chamado Estado Novo; e o das Constituições de 1967 e de 1969, derivadas do movimento revolucionário de 1964.

Mas a atual Constituição, de 1988, não derivou de golpe de estado, nem de revolução, nem de rompimento com a ordem jurídica precedente. Ainda que se reconheça ter sido ela impulsionada por um incontido desejo social de mudança, é inegável que ela foi protagonizada sem quebra do regime constitucional. "Com efeito", proclamam os historiadores, "foi ela a primeira Constituinte brasileira que não se originou de uma ruptura anterior das instituições; esta, portanto, a primeira constatação que a mais superficial análise histórica de nosso passado prontamente descobre"3. Por mais procedente a afirmação de que, na época, a ruptura "se operou na alma da Nação, profundamente rebelada contra o mais longo eclipse das liberdades públicas"4, não há como negar a ausência de qualquer ruptura institucional na oportunidade. O poder constituinte de 1988 atuou, não como poder de fato, mas como autêntico poder de direito, tendo sido convocado e instalado por força de emenda à Constituição, a Emenda 26, de 27.11.85, e isso lhe retira a característica teórica mais significativa de poder constituinte originário, que é a do rompimento com a ordem jurídica vigente.

Essa realidade histórica não pode deixar de ser considerada na interpretação da Constituição, especialmente quando se busca identificar os domínios das chamadas cláusulas pétreas, estabelecidas, elas também, como decorrência de poder constituinte que não havia rompido com o regime anterior, ou seja, que, pelo menos no plano teórico, dificilmente pode ser tido como genuíno poder constituinte originário. Por isso também é que há dificuldade em identificar, sob este aspecto, uma real diferença entre o art. 33 do ADCT, que o STF considerou legítimo, e o art. 78, ora em exame. Também na Constituição anterior se garantia que: "A lei não prejudicará direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada" (art. 153, § 3º, da EC n° 1, de 1969), reiterando, aliás, o que já constava na Constituição de 1967 (art. 150, § 3º) e na Constituição de 1946 (art. 141, § 3º). Seria estranho imaginar que o constituinte de 1988, sem alterar o texto desse tradicional dispositivo, tivesse pretendido modificar o sentido histórico da garantia nele inserida. Aliás, se assim tivesse pretendido fazer, teria agido contraditoriamente, pois ele próprio atuou largamente contra a cláusula da intangibilidade do direito adquirido, como se pode perceber, não apenas do art. 33 do ADCT, mas também dos seus artigos 17, 18, 46, parágrafo único, III, e 47.

Assim, o mais lógico é concluir, com base no próprio comportamento do constituinte, que aquela garantia fundamental, já existente em anteriores Constituições, foi transposta para 1988, não apenas com o mesmo texto, mas também com o mesmo sentido: o de que o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada são intangíveis para o legislador infraconstitucional, não para o poder constituinte reformador.

2.2 Alcance da Garantia Prevista no Art. 5º, XXXVI, da Constituição

Respeitável corrente doutrinária defende opinião em outro sentido: o de que apenas o constituinte originário, e não o derivado, pode modificar direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. Em outras palavras: o de que a lei a que se refere o art. 5º, XXXVI, da Constituição de 1988 deve ser interpretada em sentido amplo, para inibir o poder reformador do próprio constituinte, e não restritivamente, para se referir apenas ao legislador infraconstitucional. Em pareceres juntados em processo em que a matéria é discutida5, os ilustres Professores Celso Antônio Bandeira de Mello, Luis Roberto Barroso e Lúcia Valle Figueiredo defendem a interpretação em sentido amplo, e o argumento fundamental para essa conclusão é o já referido, de que o poder constituinte derivado não pode dispor sobre direitos adquiridos pela razão de que é constituinte derivado. Eis a ementa desse modo de pensar, no parecer do Professor Celso Antônio:

Posto que uma emenda constitucional não é expressão do poder constituinte propriamente dito, ou seja, não é poder originário (logo, não é constituinte), e por isso não pode desconstituir direitos individuais, ainda que implícitos, menos ainda poderá desconstituir os explícitos sem com isto estar ofendendo, às escancâras, os limites do poder de emenda constantes da própria Constituição.

Todavia, essa tese é contestada por outros não menos renomados constitucionalistas, como Celso Ribeiro Bastos6, J. Cretella Jr.7 e Hugo de Brito Machado, este sintetizando os argumentos da seguinte forma:

(...) norma como do art. 5º, XXXVI, de nossa CF/88, estabelecendo que ´´a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada´´, fica limitado o arbítrio do Poder Legislativo, pois a lei ordinária, como as demais normas inferiores, não poderão ser aplicadas a projeções de fatos anteriores ao início da respectiva vigência, ainda que contenham determinação expressa neste sentido. Essa determinação expressa será inconstitucional. Nada, entretanto, impede que o próprio constituinte, ao fazer a Constituição, ou ao emendá-la, determine expressamente que o preceito novo aplica-se a projeções de fatos anteriores, pois a limitação residente no princípio da irretroatividade, mesmo inscrito na Constituição, a ele não se dirige. Nem seria válido o argumento segundo o qual a garantia de direito adquirido constitui um direito fundamental, inatingível por emendas à Constituição, por força de seu art. 60, § 4º, IV. Essa garantia constitucional é uma limitação de poderes do legislador ordinário. O legislador dotado de poder constituinte, mesmo que apenas reformador, ou derivado, a ela não está submetido. (...) A coisa julgada constitui uma proteção contra o reexame das questões já decididas. Proteção que, em princípio, limita a atividade jurisdicional, mas de certa forma limita também a atividade legislativa. A final, o dispositivo constitucional assevera que a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. A nível constitucional, portanto, a proteção se dirige contra o legislador, que não poderá modificar situações de fato consolidadas pelos efeitos da coisa julgada. Sob esse aspecto, tudo o que se disse a respeito do direito adquirido aplica-se à coisa julgada. Se um dispositivo de lei afeta a coisa julgada, a garantia constitucional é invocável. Pode se afirmar que o dispositivo legal é inconstitucional. Entretanto, se um dispositivo da própria constituição alcança situação objeto da coisa julgada, a garantia constitucional será excepcionalmente afastada.8

Milita em favor da doutrina da interpretação estrita, já se fez ver, o argumento histórico. Militam, igualmente, naquele sentido, a doutrina e a jurisprudência formadas à luz das Constituições anteriores, nas quais aquela garantia constitucional era assegurada exatamente nos mesmos termos que a atual. Ilustrativo, nesse particular, o acórdão do STF, no RE 94.414-1, DJ de 19.04.85, Relator o Ministro Moreira Alves, que assentou:

1. É firme a jurisprudência desta Corte - assim, por exemplo, já se decidiu nos RREE 90.391 e 100.144, o primeiro do Plenário e o segundo desta 2a Turma - no sentido de que, ainda com referência à relação de trabalho regida pela CLT, não há direito adquirido contra texto constitucional resultante do Poder Constituinte originário ou do Poder Constituinte derivado. As normas constitucionais se aplicam de imediato, sem que se possa invocar contra elas a figura do direito adquirido. Mesmo nas Constituições que vedam ao legislador ordinário a edição de leis retroativas, declarando que a lei nova não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, esse preceito se dirige apenas ao legislador ordinário, e não, ao constituinte, seja ele ordinário, seja ele derivado. Por isso, Barbalho, ao comentar o art. 11, 3o, da Constituição de 1891 (dispositivo que vedava aos Estados e à União prescrever leis retroativas), acentuava: ´´Mas, porquanto a proibição de leis retroativas é estabelecida por amor e garantia dos direitos individuais, não há motivo para que ela prevaleça em casos nos quais ofensa não lhes é feita e a retroação é proveitosa ao bem geral; e eis por que têm pleno efeito com relação a fatos anteriores: 1o) as leis constitucionais ou políticas; (...) (Constituição Federal Brasileira -Comentários, pág. 42, Rio de Janeiro, 1902).´´ Igualmente, Carlos Maximiliano, ao comentar o art. 141, § 3o, da Constituição de 1946, escreve, ao examinar o conceito de direito adquirido: ´´Não há direitos adquiridos contra a Constituição´´ (Comentários à Constituição Brasileira. 5.ed. v.III, n° 505, nota 7, Rio de Janeiro, 1954). No mesmo sentido, manifesta-se Pontes de Miranda, em mais de uma passagem de seus Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda n° 1, de 1969: ´´Impõe-se ao legislador cogitar de lei que de certo modo indenize as perdas, porque não basta invocar-se a proteção dos direitos adquiridos (arts. 150, § 3o, e 22), pois as Constituições são retroeficazes´´ (ob. cit., t.I, p.538); ´´No retirado art. 176, no art. 177 (hoje art. 194) e nos retirados arts. 179 e 180, parágrafo único, a Constituição de 1967 abria exceção ao princípio da imediatividade eficacial das regras jurídicas constitucionais, porque, se não o fizesse, os direitos adquiridos pelas pessoas mencionadas estariam prejudicados (ob. cit., t.VI, p. 389); e ´´As Constituições têm incidência imediata, ou desde o momento em que ela mesma fixou como aquele em que começaria a incidir. Para as Constituições, o passado só importa naquilo que ela aponta ou menciona. Fora daí não´´ (ob. cit., t.VI, p. 392). Afirmações semelhantes -com larga citação de autores nacionais e estrangeiros - se encontram em obras dedicadas, em nosso País, ao direito intertemporal. Assim, em Carlos Maximiliano, Direito Intertemporal ou Teoria da Retroatividade das Leis, n° 43, pág. 60, Rio de Janeiro, 1946, e Bento Faria, Aplicação e Retroatividade da Lei, n° 8, p. 25 e ss., 1934, Rio de Janeiro. Essas assertivas se coadunam com a natureza mesma das coisas. Se se elabora uma norma constitucional que veda situação anteriormente admitida, quer isso dizer que o Poder Constituinte, originário ou derivado, entende ser essa vedação exigida pelo interesse comum, e, portanto, aplicável de imediato, salvo disposição expressa em contrário.

2.3 Cláusulas Pétreas e Estabilidade da Constituição

É inegável, portanto, que a interpretação ampliativa do inciso XXXVI do art. 5o da CF não tem guarida em nossa tradição constitucional. Ela se funda essencialmente numa orientação de natureza política, que, XXXVI, da Constituição de 1988 ainda é o melhor caminho para dar estabilidade ao sistema, razão de ser das cláusulas pétreas. É sabido que a ordem constitucional se consolida e se fortalece na medida em que for capaz, não apenas de operar ajustes no âmbito social, mas também de se ajustar aos fenômenos sociais sobre os quais opera. Se é importante a estabilidade das normas constitucionais para alavancar sua força prospectiva, de impor comportamentos, é igualmente essencial para a sua sobrevivência que tenham aptidão para se acomodar às inevitáveis mutações da realidade das coisas. preocupada com a estabilidade da Constituição, busca restringir o campo de atuação do poder constituinte reformador. São justas essas preocupações. Mas, mesmo sob esse ângulo, é preciso considerar que uma interpretação estrita do art. 5o

Não se pode desconhecer, nesse contexto, o papel estratégico do poder constituinte reformador, instituído pelo poder fundante do constituinte originário como mecanismo indispensável a que a Constituição não se aparte da sociedade em que atua. Como observou Bonavides, com toda a razão, "a imutabilidade constitucional, tese absurda, colide com a vida, que é mudança, movimento, renovação, progresso, rotatividade. Adotá-la, equivaleria a cerrar todos os caminhos à reforma pacífica do sistema político, entregando à revolução e ao golpe de Estado a solução das crises. A força e a violência, tomadas assim por árbitro das refregas constitucionais, fariam cedo o descrédito da lei fundamental"9.

Essa advertência é particularmente importante em nossa realidade jurídica, fundada numa Constituição reconhecidamente recheada de promessas nem sempre compatíveis com a capacidade política e econômica da Nação de atendê-las adequadamente. Engessar a Constituição mais que o necessário, ampliando os domínios das suas cláusulas pétreas, significa, no mínimo, operar para o seu descrédito a curto prazo, e, a longo prazo, para o seu integral comprometimento. O exemplo do art. 78 do ADCT é paradigmático: diante da absoluta incapacidade econômica de muitos Estados e Municípios de cumprir as sentenças judiciárias no modo como estabelecido no art, 100 da Constituição, ou não se cumpre a Constituição, como não se está cumprindo (o que leva ao seu descrédito e, a rigor, ao fim do estado de direito), ou se modifica a Constituição, de modo a tentar ajustá-la à realidade social. Entre as duas alternativas, a segunda ainda parece ser a que melhor opera para a salvaguarda do sistema.

Está fora de dúvida a intangibilidade, ao constituinte derivado, daquele centro de princípios identificadores de nossa Constituição, que compõe as cláusulas pétreas. Entretanto, é preciso cautela ao definir o alcance de cada um desses dispositivos, a fim de que não se incorra na impropriedade de, ampliando-os além dos limites que o constituinte originário definiu, negar efetividade ao próprio mecanismo de reforma e, portanto, à possibilidade de adaptação da carta constitucional que ele mesmo, originariamente, quis admitir. Nesse sentido, ganha relevo a observação do Min. Sepúlveda Pertence, em voto proferido no STF, de que "uma interpretação radical e expansiva das normas de intangibilidade da Constituição, antes de assegurar a estabilidade institucional, é a que arrisca legitimar rupturas revolucionárias ou dar pretexto fácil à tentação dos golpes de Estado"10. Afirma-se, destarte, que, ao se estimular, além dos limites essenciais, a imutabilidade da Constituição, aumenta-se, de certa forma, o risco de ruptura da ordem constitucional. É dizer: a interpretação elástica do conteúdo das cláusulas pétreas opera, a longo prazo, em sentido contrário ao da própria razão de ser dessas cláusulas, que é a da estabilidade constitucional. Eis aí a principal razão a recomendar que se dê interpretação estrita ao significado da expressão "lei", constante no inciso XXXVI do art. 5o da CF, para deixar claro que ela não alcança a atividade do constituinte derivado.


3 -A Conclusão

À luz desses pressupostos, há de se responder negativamente à pergunta ao início formulada: o art. 78 do ADCT, inserido pela EC n° 30/00, ao estabelecer moratória sobre precatórios judiciários pendentes de pagamento, mesmo afetando a coisa julgada, não violou a cláusula pétrea do art. 60, § 4º, IV, combinado com o inciso XXXVI do art. 5o da Constituição. Não houve abuso do poder constituinte reformador.


Notas

1 Há ação direta de inconstitucionalidade a respeito, ainda pendente de julgamento perante o STF (ADInMC 2.356-DF e ADInMC 2.362-DF).

2 RE 148272, 1ª Turma, Min. Moreira Alves, DJ 11.12.92; RE 154.126, 2ª Turma, Min. Carlos Velloso, DJ de 01.09.95; RE 155.979, Pleno, Min. Marco Aurélio, DJ de 23.02.01.

3 BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. 4.ed. OAB Editora, p. 455.

4 BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil, op. e loc. cit.

5 STJ, 1ª Turma, RMS 15.963-PR, Relator o Ministro Luiz Fux.

6 BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 209.

7 CRETELLA JR., J. Comentários à Constituição Brasileira de 1988. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997, v.l, p. 455.

8 MACHADO, Hugo de Brito. Direito adquirido e coisa julgada como garantias constitucionais. RT 714/19-26.

9 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 13.ed. Malheiros, p. 196-197.

10 Voto proferido no MS 23047/DF, Tribunal Pleno, DJ 14.11.2003.


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Informações sobre o texto

<b>Texto originalmente publicado na Biblioteca Digital Jurídica (BDJur) do Superior Tribunal de Justiça (<a href="http://bdjur.stj.gov.br">http://bdjur.stj.gov.br</a>).</b><br>Distribuído sob <a href="http://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/2.5/br/deed.pt">Licença 2.5 Brasil Creative Commons</a>. Reproduzido mediante permissão.<br>Originalmente publicado na revista Interesse Público, Porto Alegre, ano 6, n. 31, p. 39-46, maio/jun. 2005.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ZAVASCKI, Teori Albino. Parcelamento de precatórios judiciários (art. 78 do ADCT): abuso do poder constituinte derivado?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1552, 1 out. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10472. Acesso em: 29 mar. 2024.