Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/10565
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Direitos humanos e ideologia policial

Direitos humanos e ideologia policial

Publicado em . Elaborado em .

O texto aponta alguns possíveis equívocos na apresentação da polícia como inimiga dos direitos humanos, quando, em verdade, deve ela ser erigida à condição de sua principal defensora.

SUMÁRIO: Introdução; 1. Polícia "Militar-Militarista" e Abertura Democrática; 2. Governo de Leonel Brizola no Rio de Janeiro; 3. Governo de Franco Montoro em São Paulo; Conclusão; Referências.

RESUMO: Analisa as dificuldades de efetiva implantação dos direitos humanos ante a ideologia policial brasileira. Principia discorrendo sobre a formação militar de parte da polícia brasileira e sua história vinculada ao aparelho repressor político. Tenta desvendar as razões que levam a sociedade brasileira a adotar um discurso que motiva a atuação agressiva das forças policiais. Constata que, com o aumento da criminalidade, a população, a mídia e os governos cada vez mais pregam o endurecimento da atuação policial, discurso que acaba por vitimar inocentes e aprova atuações ilegais por parte da polícia. Discorre sobre as tentativas dos Governos de Leonel Brizola, no Rio de Janeiro, e de Franco Montoro, no Estado de São Paulo, de exercer maior controle sobre a atuação policial, descrevendo os avanços que daí advieram, bem como as dificuldades de relacionamento de tais governos com a polícia. Demonstra que os governos sofreram dura campanha por parte da mídia e da polícia fato que os levou a não terem continuidade. Aponta alguns possíveis equívocos cometidos nesses governos como a colocação da polícia como inimiga dos direitos humanos quando, em verdade, deve ela ser erigida à condição de principal defensora desses direitos.

PALAVRAS-CHAVE: Direitos Humanos; Ideologia Policial; Militarismo; Atuação Policial; Violência.

ABSTRACT: This paper sets out to analyze the difficulties on the effective implementation of human rights in face of Brazilian Police ideology. It begins discussing the military formation of part of the Brazilian police force and its history connected to the political repressive apparatus. It tries to unveil the reasons why Brazilian society has adopted a speech motivating the aggressiveness of the police force. It verifies that, with the increase in criminality, the population, media and governments are demanding the stiffening of the police performance. This demand generates innocent victims and approves illegal acts by the police. It reasons about the attempts of Leonel Brizola’s Government in Rio de Janeiro, and of Franco Montoro’s, in the State of São Paulo, in exerting greater control of the police actions, describing the advances it generated, as well as the relationship difficulties these governments had with the police force. It demonstrates that the governments suffered a severe campaign by the media and by the police, and that this fact contributed for the non-continuity of their mandates. It presents some possible mistakes committed in these governments, such as the police being placed as an enemy of the human rights, when in reality it should be given the condition of main defender of these rights.

KEY WORDS: Human Rights; Police Ideology; Militarism; Police Performance; Violence.


INTRODUÇÃO

Nem o mais pessimista observador pode deixar de reconhecer os avanços verificáveis na sociedade brasileira após o término do regime militarista (1964-1985). Em especial, a nova Constituição Federal, promulgada em 1988, representa o ponto de partida para uma série de mudanças institucionais experimentadas em quase todas as áreas.

Alguns fatos demarcam especialmente referidos progressos, como o pacífico processo de impeachment sofrido pelo ex-presidente Fernando Collor de Mello, deposto em 1993 por meios legais, o que se realizou com amplo apoio popular, dentro de uma exemplar conduta cívica por parte dos poderes políticos, inclusive do próprio cassado, que jamais ousou trilhar caminhos golpistas, como certamente haveria de ocorrer em outras épocas.

No estudo do direito, avanços são observáveis pela crescente valorização que se dá, atualmente, ao ensino do direito constitucional, em detrimento à antiga visão civilista que alentava os operadores jurídicos até a década de 80, situação perfeitamente justificável numa Nação em que a Constituição tinha importância secundária, já que o poder não emanava da vontade popular.

A década de 90 sedimentou várias conquistas legais que já se encontravam estampadas na Constituição como, por exemplo, o advento do Código de Defesa do Consumir, o Estatuto da Criança e do Adolescente, a criação dos Juizados Especiais e muitas outras leis infraconstitucionais que pretendiam e pretendem tornar palpáveis as conquistas obtidas no campo constitucional.

A Constituição brasileira, analisada em seu aspecto formal, pode ser elevada à melhor categoria das constituições existentes, tendo sido acompanhada, em sua construção, por juristas do melhor jaez. Entretanto, trata-se de um diploma legal que é, ao mesmo tempo, "de todos e de ninguém"; é "de todos" porque no texto constitucional a totalidade das categorias sociais puderam influir durante a Assembléia Constituinte; mas, concomitantemente, é "de ninguém" porque nenhuma categoria social pôde fazê-la ao seu exato molde.

Por isso, tantas vezes ouvem-se críticas ao texto constitucional, algumas asseverando ser a Constituição excessivamente prolixa, outras que vêem-na incompleta. A esquerda vê pouca ousadia do texto constitucional; os liberais reclamam da excessiva regulamentação contida em seu texto.

Realidade insofismável, porém, é que a Constituição de 1988 estampou com rara felicidade uma série de direitos fundamentais, positivando-os, e tornando-os invocáveis por qualquer cidadão. O texto constitucional trouxe para o ordenamento legal brasileiro os mais modernos direitos, garantindo-os por mecanismos previstos na própria Constituição: a cláusula pétrea, o mandado de segurança, a ação popular etc.

Entretanto, não obstante a grandeza e a relativa rapidez desses avanços, há um segmento que não pode ser motivo de orgulho para nenhum brasileiro: a segurança pública.

Vê-se, em proporções cada vez maiores, a desesperada luta da sociedade visando assegurar a integridade física dos seus cidadãos, o direito à propriedade, o direito de viver em paz, sem que o Estado consiga aplacar a avalanche de violência que, diariamente, é apresentada sem constrangimentos pela mídia.

Nesse contexto, vozes clamam pelo endurecimento da ação policial, acreditando faltar ao Estado Democrático maior veemência em sua atuação repressiva. Estes clamores servem para aguçar os antigos vícios da polícia brasileira, acostumada a tratar o público como potencial inimigo, e não como "cliente" de sua atividade.

Com isso, restam desrespeitados direitos humanos de inúmeros cidadãos, especialmente das classes economicamente desfavorecidas. Os mortos produzidos pela violência policial não têm voz; o lamento dos familiares que sofrem a injustiça do julgamento sumário produzido pela equivocada atuação policial é visto antes como um lamento de bandidos, não tendo espaço destacado no rol de preocupações da sociedade brasileira.


1 POLÍCIA "MILITAR-MILITARISTA" E ABERTURA DEMOCRÁTICA

Tão importante quanto o estudo dos direitos humanos positivados pela Constituição é a questão de se estudar como tais direitos poderão ser garantidos no plano fático. Neste ponto, é essencial que se discuta e que sejam apresentadas soluções relacionadas à atuação policial.

Muito embora a atividade policial, pelo próprio escopo de sua existência, devesse se limitar à prevenção contra atos criminosos, à investigação desses atos, ao cumprimento estrito das ordem emanadas do Poder Judiciário, na prática, o que se observa é que a polícia termina por produzir ela própria julgamentos sumários, desprovidos de qualquer garantia constitucional, tomando a face de um Poder Judiciário primitivo.

O histórico da polícia brasileira, fortificado pela pífia atuação do Poder Judiciário, contribuem para a existência de uma polícia sem limites, fato aceito e visto sem sobressaltos pela maioria da população.

A alteração desse quadro não é simples, já que o Estado não pode prescindir da atividade repressiva, mas não conta com estrutura adequada para fazer reformulações no formato dessa atuação com a rapidez que se faria necessária.

Historicamente, a polícia brasileira organiza-se nos mesmos padrões militares, com rígida ordem hierárquica e espírito de corporação. A organização militar imposta à polícia decorre de governos autoritários, significando que a polícia não é apenas militar em sua forma organizacional, mas também pela ideologia militarista, aplicada danosamente à sua atuação diária. Trata-se de um sistema que contém uma ideologia idêntica ao sistema governamental antigo, autoritário, sustentado pelas forças armadas das quais a polícia fazia parte, atuando de forma conjunta na repressão. (MARCINEIRO; PACHECO, 2005, p. 58)

Criticando este quadro visto como inerente à nossa polícia militar, Amaral preleciona (2006, on-line):

A formação do militar, que é essencialmente profissional da guerra, não deve ser confundida com a do policial, mesmo porque o mais cruel dos bandidos não é o inimigo mortal a ser eliminado (senão a ser preso) como é fato normal e decisivo nas guerras. A essência da guerra é a eliminação do inimigo, a essência da missão policial é preservar a ordem pública e prender o criminoso, nada mais que isso...

Nesse lamentável contexto, em contribuição ao progresso que se deseja imprimir à implantação efetiva do respeito aos direitos humanos corporificados no texto constitucional, vale o trabalho de se identificar e analisar as poucas tentativas de se modificar a ideologia policial, tentando se constatar os erros praticados e os pontos fracos dessas atuações.

O ano de 1982 foi um ano marcante para o processo de abertura democrática que já ensaiava os primeiros passos. Naquele ano, foram realizadas eleições diretas para os governos estaduais, fato que não ocorria desde 1966. Também foram eleitos pelo voto direto prefeitos, vereadores, deputados estaduais e federais.

O país vivia um período de abertura ainda não sedimentado (a primeira eleição direta para a Presidência da República somente ocorreria seis anos depois). Com a análise dos dados históricos referentes aos governos do Rio de Janeiro e de São Paulo eleitos pelo voto direto, poderão ser visualizadas as imensas dificuldades de se implantar uma doutrina de respeito, por parte do Estado, aos direitos humanos, ante a visão militarista adotada pela polícia, no mesmo sentido que as forças armadas têm do inimigo numa guerra entre nações: a de que existe um inimigo a ser exterminado a qualquer custo. Em verdade, o "bandido" seria esse inimigo enquanto que as mortes ocasionadas a civis durante essas atuações seriam "acidentes de trabalho", conforme concluiu o governo de São Paulo à época do massacre de presos do carandirú, em 1992.

Há duas décadas, a polarização entre esquerda e direita era muito mais clara, fato que criava certamente visões preconceituosas de ambos os lados. Direitos humanos eram assunto típico de "esquerdistas"; repressão, instrumento típico de "conservadores:"

Polícia, então, foi uma atividade caracterizada pelos segmentos progressistas da sociedade, de forma equivocadamente conceitual, como necessariamente afeta à repressão anti-democrática, à truculência, ao conservadorismo. "Direitos Humanos" como militância, na outra ponta, passaram a ser vistos como ideologicamente filiados à esquerda, durante toda a vigência da Guerra Fria (estranhamente, nos países do "socialismo real", eram vistos como uma arma retórica e organizacional do capitalismo). No Brasil, em momento posterior da história, a partir da rearticulação democrática, agregou-se a seus ativistas a pecha de "defensores de bandidos" e da impunidade. (BALESTRERI, 2006, on-line)

Nas eleições de 1983, no Rio de Janeiro, foi eleito governador Leonel Brizola, visível opositor do regime militarista; em São Paulo, elegeu-se Franco Montoro e em Minas Gerais Tancredo Neves que, três anos após seria eleito, indiretamente, Presidente da República, cargo no qual nunca chegaria a ser empossado.

As eleições desses três Governadores, em Estados importantes da Federação, deixaram claro que o regime autoritário não poderia durar; grande expectativa criou-se em torno da sua atuação, em especial pelas promessas de inovação e mudança que lhes serviram como plataforma de campanha.


2 GOVERNO DE LEONEL BRIZOLA NO RIO DE JANEIRO

Leonel Brizola foi eleito no Rio de Janeiro, saindo-se, na campanha eleitoral, de um início pouco promissor para uma vitória incontestável. Por sua central participação no governo deposto pelo golpe militar de 1964, Brizola era visto com desconfiança pelos setores conservadores. Socialista, fundara o Partido Democrático Trabalhista (PDT) que pretendia ser herdeiro da excelente imagem populista deixada por Getúlio Vargas.

Brizola não tinha como promessa de campanha o endurecimento da ação policial; todo o seu governo foi centrado em iniciativas educacionais, especialmente nos CIEP, os Centros Integrados de Educação Popular, comprometendo consideravelmente o orçamento do Estado nesse projeto. (HOLLANDA, 2005, p. 19)

Tal visão de governo estava em sintonia com o pensamento socialista que prefere ver o delinqüente como uma conseqüência da sociedade injusta. De plano, Brizola determinou que fossem adotados melhores critérios para a atuação policial, visando, antes de tudo, reduzir a letalidade das operações policiais. (HOLLANDA, 2005, p. 21)

A tradicional hegemonia do Exército sobre a Polícia Militar foi quebrada, subordinando-se a polícia militar diretamente ao governo estadual. Era necessário esse desatrelamento das forças armadas, já que durante o período da repressão a polícia servia como entidade de repressão e manutenção do status vigente, numa função de defensora do Estado concomitante à de defensora da segurança pública. Historicamente, a polícia foi utilizada para assegurar interesses de Estado, especialmente os de repressão política. Para alterar essa situação, a polícia deveria estar subordinada apenas ao governo estadual, eleito pelo voto popular.

Sintomática providência foi a revogação do sistema de "promoção por bravura" que, na prática, servia para fomentar com maior rudeza o pensamento de que "o bom policial é aquele que mata o bandido". Tais mortes, pretensamente contadas como sendo "mortes de bandidos" serviam positivamente como méritos a serem considerados para promoção em carreira dos policiais militares (HOLLANDA, 2005, p. 82). Difícil dizer quantas mortes foram causadas em razão desse desumano e equivocado sistema de avaliação policial...

Pretendendo modificar tal postura, segundo Cristina Buarque de Holanda (2005, p. 83), o quadro de diretrizes repassadas pelo novo governo estadual aos policiais em suas atuações passou a ser o seguinte:

I) o uso da força deve ser sempre o último recurso, depois de esgotados todos os outros meios não-violentos disponíveis;

II) a força somente deve ser usada quando for uma necessidade fundamental, e apenas com objetivos legítimos.

III) o uso da força, quando estritamente necessário como último recurso, deve ser proporcional à situação e aos objetivos legais que se procura alcançar;

IV) o uso ilegal da força não se pode justificar por circunstâncias especiais, excepcionais ou emergências;

V) o uso de quaisquer armas, principalmente as armas de fogo, deve ser considerado uma medida extrema, limitada por dispositivos legais, e deve ser feito com moderação;

VI) deve-se sempre procurar preservar a vida humana e a integridade física, dos policiais, das vítimas, de terceiros e dos suspeitos ou criminosos; e

VII) no caso de ser necessário o uso da força, em situação extrema, e esgotados todos os recursos não-violentos, deve ser assegurada a assistência médica, o mais rapidamente possível, a qualquer pessoa ferida ou atingida – incluindo os suspeitos ou criminosos envolvidos.

Constata-se que tais orientações eram, especialmente àquela época, inovadoras, representando uma nova postura ética para a atuação policial.

A polícia passa então a ver como sua função primordial "prevenir conflitos" ao invés de "combater bandidos"; os atos de violência passam a ser contidos e desincentivados. A nova polícia era, ou pretendia ser, em suma, preventiva, eficaz, comunitária, legal e socializada. (HOLLANDA, 2005, p. 88)

Porém, a principal inovação trazida pelo governo de Brizola foi a instituição do Conselho de Justiça, Segurança Pública e Direitos Humanos (C.J.S.P.D.H.). Criado por decreto em abril de 1983, o Conselho tinha por missão encaminhar demandas, sugestões, denúncias e reflexões sobre assuntos ligados à segurança pública. (HOLLANDA, 2005, p. 89)

Referido Conselho tinha por missão resguardar os direitos inerentes ao ser humano; não tinha, obviamente, missão legalista-formal, mas especialmente trazer à realidade os direitos já estampados na lei.

Muito embora a quantidade de denúncias encaminhadas ao Conselho tenha sido pouco superior a mil (HOLLANDA, 2005, p. 93), quantidade certamente simbólica diante da enorme gama de abusos que o senso comum apresenta, a verdade é que o órgão representou clara sinalização para a atuação policial, evidenciando a obstinação governamental em garantir os direitos do cidadão e conter os extrapolamentos. Ainda mais enriquece a iniciativa o seu pioneirismo.

Entretanto, tais medidas restritivas da atuação policial, o desvio do foco da "repressão" para a "contenção" não agradou nem à polícia, nem à mídia, nem à população em geral.

De plano, a relação do governo com a mídia, já desgastada antes mesmo do início da gestão em razão do passado polêmico do governador, deteriorou-se, já que o aumento da violência registrado na época (o que não foi um fenômeno isolado do Rio de Janeiro, fato que indicava não haver relação entre as novas medidas e a degradação da segurança pública) serviu como munição para a mídia iniciar uma campanha quase alarmista, criando-se um clima de histeria geral.

O próprio Brizola reconheceu, em dado momento, que a própria população desejava voltar ao anterior sistema, que englobava práticas condenáveis de combate à violência. (HOLLANDA, 2005, p. 98)

De fato, a polícia fora orientada a "respeitar os barracos", a evitar a subida aos morros visando ao combate direto do crime organizado, atos que quase sempre levavam a resultados pífios, com constantes mortes de inocentes em razão dos combates armados em meio a localidades densamente povoadas.

A mídia e a própria polícia passaram a acusar o governo de ter firmado um "acordo branco" com o narcotráfico. No mesmo sentido, surgiram suspeitas de que o governo estaria acobertando o "jogo do bicho", tradicionalíssimo em todo o Brasil e especialmente organizado no Rio de Janeiro.

Ocorre que, segundo Cristina Buarque de Hollanda (2005, p. 126), o jogo do bicho funcionava como verdadeiro mantenedor da polícia. Por acobertar a contravenção, a polícia costumeiramente constava das folhas de pagamento das quadrilhas, assim como a própria infra-estrutura policial era abastecida, como o mobiliário das delegacias, manutenção de veículos etc. Por ser visto como um crime "menor", a polícia tolerava o jogo do bicho em troca de benefícios escusos.

O governo Brizola, então, como possível estratégia visando minar este sistema de corrupção, passou a orientar a polícia a não reprimir o jogo, sob o argumento de que outros crimes mais graves deveriam ser combatidos pela polícia que não deveria se preocupar com a contravenção mencionada.

Tal postura enfraqueceu sobremaneira o sistema de corrupção implantado, já que o bicheiro sentia-se seguro pelo novo sistema, e não se via mais ameaçado pela repressão policial. Com isso, a polícia perdeu substancialmente seu sustentáculo, sendo certo que, em razão desse fato novo, passou-se a verificar um financiamento ilícito muito mais voltado para o narcotráfico. De certa forma, a ala policial corrompida buscou outras fontes de financiamento. (HOLLANDA, 2005, p. 128)

Surgiram acusações de que o jogo do bicho estaria financiando o próprio governo, fato comentado pela própria polícia.

Independentemente das causas que levaram à mudança de posicionamento policial – influência dos bicheiros ou ideologia voltada para a implantação efetiva dos direitos humanos – a verdade é que tais modificações ocasionaram impacto negativo na imagem do governo. O aumento da violência, amplificado pelo tom histérico adotado nos discursos da mídia, as restrições impostas ao combate direito do narcotráfico, a retirada da principal fonte de financiamento ilegal da atividade da polícia (jogo do bicho) e a ausência de um discurso duro por parte do governo contra o aumento da criminalidade, redundou em indisciplina policial e descontentamento da população.

Cristina Buarque de Hollanda (2005, p. 131-132) relata caso representativo da má compreensão dos novos orientativos por parte da polícia. Noticia que em assalto a uma residência situada em bairro nobre da cidade, a polícia simplesmente deixou de agir, alegando que a necessidade de se respeitar os direitos humanos a impedia de exercer sua atividade repressiva. Foram registrados graves atentados à disciplina policial. A classe, talvez afrontada pela omissão do governo no combate ao jogo do bicho ou talvez insatisfeita com a perda de sua principal fonte de financiamento ilegal, em vários momentos agiu em clara afronta ao governo central como em determinada situação, relatada por Cristina Buarque de Hollanda (2005, p. 133), na qual centenas de policiais saíram, em operação, "estourando" pontos de jogos, extrapolando inclusive as jurisdições regionais, visando "moralizar" a atuação da polícia. Isto se deu em claro desatendimento às diretrizes de atuação governamental.

A polícia sentia-se afrontada e desprestigiada pela ideologia do governo e via-a como protetiva dos criminosos. Ao final do Governo Brizola, a relação com a polícia encontrava-se bastante desgastada.

Nesse universo de pressões advindas da insatisfação policial, aumento da violência e tratamento catastrófico da mídia, Brizola não conseguiu fazer seu sucessor, tendo sido eleito Moreira Franco montado justamente num discurso baseado na "lei e na ordem".

Iniciativas tomadas pelo governo visando ao maior respeito aos direitos humanos, se não foram totalmente olvidadas, foram postas em segundo plano pelo governo que o sucedeu, com o retorno ao velho discurso de que a polícia tinha por missão básica combater frontalmente a criminalidade, mesmo que à custa de severas baixas de ambos os lados e a percepção geral de que a morte de algumas vítimas inocentes era indesejável, mas inevitável.


3 GOVERNO DE FRANCO MONTORO EM SÃO PAULO

De forma muito semelhante ao que ocorreu no Rio de Janeiro, o Estado de São Paulo elegeu para o mandato de 1983-1986 um candidato com histórico oposicionista ao regime autoritário, então em vias de extinção.

Com uma linha de atuação um pouco mais moderada do que a adotada por Leonel Brizola, Franco Montoro procurou controlar o caráter agressivo da polícia paulista e, por conseqüência, da mesma forma como ocorreu no Rio de Janeiro, sofreu fortes reações por parte da mídia, polícia e população. Integrando as fileiras do PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro), Franco Montoro tinha como parte de sua plataforma governamental o controle policial:

Franco Montoro tomou a sério a tarefa de estabelecer um governo democrático e um estado de direito que, para ele, incluía controlar a polícia. Seu plano de governo, resumido em um documento chamado Proposta Montoro, incluía uma parte sobre a reforma da polícia. No que dizia respeito à polícia civil (Proposta 1982: 33), o documento reconheceu sua "estrutura interna autoritária e ineficiente, vulnerável a episódios de corrupção e abusos do poder," que traria "mais medo do que tranqüilidade aos cidadãos. Propunha, entre outras coisas, a reforma da Corregedoria da Polícia Civil para assegurar "o controle eficiente das ocorrências de corrupção e violência" e a reforma da cúpula da hierarquia policial ao adotar a eleição de alguns diretores por chefes de polícia. (CALDEIRA, 2000, p. 164)

Assim como ocorrera no simultâneo governo carioca, Montoro percebeu a gravidade que representava a submissão da polícia militar às forças armadas, tendo trabalhado para posicionar o comando da polícia sob os balizamentos impostos pelo governo estadual.

De plano, Montoro nomeia pessoas ligadas à resistência ao regime autoritário para exercerem os cargos de cúpula da polícia e da Secretaria de Segurança Pública. Entretanto, as pressões e reações contrárias às escolhas foram tão grandes que Montoro viu-se obrigado a trocar de secretários três vezes no período de apenas um ano.

Diversas medidas foram tomadas visando uma maior contenção da polícia nas manifestações populares, sempre vistas pela polícia como atentatórias à ordem pública e, por vezes, reprimidas com violência. Incutiu-se maior idéia de organização em detrimento da ideologia da repressão.

Relata Teresa Pires do Rio Caldeira (2000, p. 167) que o novo Governo esforçou-se por construir um melhor controle dos dados acerca da atuação policial, especialmente das mortes ocasionadas a civis em confrontos com a polícia, os quais eram muitas vezes mascarados ou não catalogados com a necessária precisão. Os resultados da atuação governamental fizeram-se sentir:

O número de policiais punidos aumentou e o número de pessoas mortas pela polícia diminuiu, apesar do nível ainda alto. Em 1986, houve uma diminuição de 32% nas mortes de civis. Muylaert, secretário em 1986, diz que apesar de os números "não serem gloriosos", indicavam os resultados dos controles impostos à polícia militar. (CALDEIRA, 2000, p. 167)

Bastante simbólica foi a questão da ROTA (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar). Divisão da Polícia Militar, criada durante o regime ditatorial visando prioritariamente ao combate dos movimentos esquerdistas que se opunham ao regime autoritário, a ROTA era conhecida pela violência com que costumeiramente conduzia suas operações. Após o fim do regime militar, a ROTA foi direcionada para o combate da criminalidade, fato que ocasionaria, como é óbvio, uma transferência da visão militarista para o policiamento urbano.

Ainda durante a campanha para o Governo, surgiu a notícia de que Montoro tinha pretensões de extinguir a ROTA. Os protestos vieram de todos os lados: primeiramente da própria polícia que orgulhava-se da "excelente reputação" desfrutada pela ROTA perante a população. Em segundo plano, a verdade é que o povo temia e admirava a ROTA, aprovando sua atuação truculenta. Caldeira menciona entrevista concedida ao Jornal Folha de São Paulo, em 10 de outubro de 1982, pelo comandante da ROTA. Niomar Cirne Bezerra: "A Rota é adorada na periferia e odiada pelos intelectuais da classe média que vivem no centro da cidade". (CALDEIRA, 2000, p. 169)

Em pesquisa publicada pela Folha de São Paulo em dezembro de 1982 revelou-se que 85,1% das pessoas entrevistadas eram contra a extinção da ROTA. (CALDEIRA, 2000, p. 169-170). Comumente, a população clama por uma polícia "mais dura" e desaprova as orientações governamentais visando assegurar os direitos humanos; estes seriam os "direitos dos bandidos." Entretanto, o governo Montoro parecia ter a visão de que, inevitavelmente, se a ROTA atuasse, mataria, o que revelou-se verdadeiro. Ante as pressões populares, da polícia e da mídia, a ROTA permaneceu atuando, ainda que sob maiores limitações impostas pelo governo Montoro.

Aspecto de suma importância – nem sempre percebido – é que os Secretários de Segurança Pública na época de Montoro mostraram-se mais cuidadosos no uso da linguagem de combate à criminalidade. Normalmente, o uso de uma linguagem dura por parte do comando da polícia ou do governo em vigor, é interpretado pela polícia como autorização para matar. O discurso bastante atraente em matéria eleitoral de "tolerância zero" acaba soando para a polícia como um sinal para agir com truculência; bastante recomendável é que o político contenha suas palavras, percebendo a gravidade dos efeitos práticos que podem decorrer de frases irresponsáveis.

Assim como ocorrera no Rio de Janeiro, a oposição ao governo Montoro passou a confrontar "segurança pública e direitos humanos" como se respeitar os direitos humanos significasse o enfraquecimento da atuação policial. Essas passaram a ser as principais críticas ao modelo seguido pelo governo Franco Montoro, tanto que a principal preocupação da população passou a ser a segurança pública (CALDEIRA, 2000, p. 171), tornando-se este o tema principal dos debates para eleição do sucessor de Montoro. Com isso, da mesma forma como ocorreu no Rio de Janeiro (que elegeu o candidato que prometia maior recrudescimento da atuação policial), elegeu-se Orestes Quércia (1987-1990), com o discurso de endurecimento da polícia, sendo sucedido pelo seu Secretário de Segurança Pública Luís Antonio Fleury (1991-1994).

A imprensa, livre da censura do regime militar, sentiu-se livre para apoiar e incentivar o combate à filosofia de respeito aos direitos humanos, passando a apoiar de forma categórica ações violentas com o velho discurso "bandido bom é bandido morto". Os resultados são relatados por Teresa Pires do Rio Caldeira (2000, p. 174-181), como o aumento do número de civis mortos em confrontos policiais e, como auge dessa ideologia, o massacre na casa de detenção de São Paulo, onde, em 2 de outubro de 1992, 111 presos foram mortos pela polícia em condições que indicaram evidentes abusos da atuação policial.


CONCLUSÃO

Não obstante as diferenças de condições vividas pelos governos de Brizola e Montoro no período de 1983-1986, as atuações administrativas, no que concernia à segurança pública, assemelharam-se em grande parte, tanto quanto aos resultados positivos, quanto às conseqüências nefastas na opinião popular.

Ainda hoje, a questão dos direitos humanos é vista muito mais como um confronto à atuação policial rígida, ao mesmo tempo que "atuação policial dura" é encarada como "atuação policial eficiente", isso no imaginário popular, reforçado pela atuação da mídia.

Montoro e Brizola enfrentaram reações internas da própria polícia que viu-se desvalorizada, relegada a segundo plano, na condição de inimiga dos princípios democráticos e do pensamento esposado pelos governos democráticos que começavam sua dura caminhada, num terreno ainda marcado pela ditadura militar.

Em verdade, assim como se é possível reconhecer os claríssimos progressos decorrentes das novas visões de governo representadas por Montoro e Brizola, talvez, alguns anos após, críticas racionais possam ser tecidas em relação às opções perfilhadas na administração, já menos providas dos vícios que a contemporaneidade dos fatos acaba por criar.

Melhor do que ver a polícia como uma inimiga natural à implantação da doutrina dos direitos humanos seria elegê-la como principal veículo de implantação desses direitos. Obviamente, tal caminhar será extremamente gradativo, implicando uma mudança de mentalidade que pode levar gerações, haja vista que o sentimento de que a criminalidade é um "inimigo a ser vencido pela força", seja pela repressão direta ou pela própria prevenção, muitas vezes violenta, faz parte do pensamento das próprias corporações. Mudar a visão do mundo vivenciada pelo policial em suas duras incursões num campo onde apenas a força parece fazer algum sentido, implica atitudes muito mais complexas do que um simples estudo teórico sobre os direitos humanos positivados, ministrado em cursos preparatórios ou de reciclagem.

Fornecer a cartilha contendo a relação de direitos, palestrar sobre a importância de respeito a esses direitos, tudo isso tem inegável valor, mas revela-se claramente insuficiente, e soa ao policial como mero discurso desprovido de qualquer aplicabilidade prática. Sua rotina é bem outra: enfrentar, em condições materiais inferiores, criminosos organizados; sofrer constantemente o risco de perder sua vida ou de ver seus familiares ameaçados, como ocorreu em 2006 com as ações do crime organizado de São Paulo; assistir a impunidade com que são tratados os crimes de corrupção denunciados nas altas esferas: essa é a realidade do policial que, portanto, necessita muito mais do que apenas orientações teóricas.

Cristina Buarque de Hollanda formula crítica à atuação do governo carioca, na estão de Brizola, muito embora reconheça também inúmeros méritos: parece-lhe terem sobrado ao governo indicações negativas para a atividade policial (não matar, não torturar, não invadir barraco etc.), mas faltaram orientações positivas: como deveria agir a polícia diante da nova situação? Qual a nova função da polícia dentro de uma sociedade democrática?

Aparentemente, o simples estudo de cartilhas com conteúdo normativo sobre direitos humanos reconhecidos pela ONU foram insuficientes para demonstrar ao policial em treinamento no que isso deveria influir na sua atividade diária.

Talvez a solução passe por uma revisão da própria compreensão da própria finalidade da estrutura policial, ainda hoje encarada essencialmente como "combatedora dos criminosos", para uma nova visão, baseada na visão da polícia como "prevenidora de conflitos, administradora do convívio social, auxiliar do Poder Judiciário". Um bom governo, realmente democrático, deve se preocupar em esclarecer a opinião pública, desmascarar os falsos e fáceis discursos populistas de combate duro à violência que, invariavelmente, atingem o criminoso, mas também o trabalhador, o povo pobre das periferias, a criança da favela...

Entretanto, o que se nota dos debates políticos atuais é a completa ausência desses temas, havendo claros recursos ao simpático discurso do fortalecimento da polícia e do tratamento rigoroso dos criminosos, como se tais atitudes tivessem alguma serventia no efetivo combate à criminalidade.

Cabe ao administrador público compreender que, ao efetuar reformas, deve fazê-las de forma concomitante e estrategicamente continuada: ao mesmo tempo em que procura incutir no pensamento policial uma nova visão sobre a própria missão institucional, deve ter carisma suficiente para se fazer compreender pela polícia, pela população e pela mídia. Deve saber trabalhar em conjunto com organizações não governamentais, criando um sistema de segurança que abranja também entes da sociedade privada, e não apenas o Estado. Sem o apoio da maioria dos componentes sociais, nenhuma reforma se sustenta.

Ora, essas mudanças implicam, necessariamente, em legitimidade democrática e em autoridade (CALDEIRA, 2000, 206-207), esta última compreendida como a capacidade do governo de se fazer respeitar pacificamente pelo povo, de ser visto como capacitado a fazer cumprir seus desideratos.


REFERÊNCIAS

AMARAL, Luiz Otávio O. Direitos humanos e violência policial. Disponível em: <jus.com.br/artigos/3794> acesso em: 30 jul 2006.

BALESTRERI, Ricardo. Direitos Humanos: coisa de polícia. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/educar/balestreri/php/dh4.html> acesso em: 30 jul 2006.

CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. 2ª Ed. São Paulo: EDUSP, 2000.

HOLLANDA, Cristina Buarque de. Polícia e direitos humanos. Rio de Janeiro: Revan, 2005.

MARCINEIRO, Nazareno. PACHECO, Giovani C. Polícia comunitária. Florianópolis: Insular, 2005.

MEZZAROBA, Orides. MONTEIRO, Cláudia Servilha. Manuel de metodologia da pesquisa no direito. 2ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2005.


Autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROSSO, Paulo Sergio. Direitos humanos e ideologia policial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1575, 24 out. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10565. Acesso em: 29 mar. 2024.