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A construção do patrimônio informativo do indivíduo no “direito de não saber”.

Propostas de parâmetros de ponderação

A construção do patrimônio informativo do indivíduo no “direito de não saber”. Propostas de parâmetros de ponderação

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A divulgação correta e verdadeira de dados médicos não requisitados para o próprio paciente viola o seu direito à intimidade?

1. Introdução

“[T]odos têm direito de esconder suas fraquezas, sobretudo quando não estão preparadas para encarar a realidade”.1 Com tais palavras, a Ministra Nancy Andrighi restou vencida em julgamento, pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, que, ao apreciar o REsp nº. 1.195.995, determinou que não há violação do direito à intimidade quando há a divulgação correta e verdadeira de dados médicos não requisitados para o próprio paciente.

O julgado fez levantar um necessário e impactante debate acerca da possibilidade de se defender um direito de o indivíduo poder desejar não ter conhecimento sobre informações que dizem respeito a si próprio, bem como de sua compatibilização com os princípios constitucionais que regem nosso ordenamento jurídico.

Em uma sociedade em que se testemunha uma evolução nas formas de apreensão e circulação de informações pessoais, que a todo momento se renovam, e na qual o colhimento, manutenção e divulgação de dados pessoais é constantemente facilitada por novas ferramentas, acessíveis a um número crescente de indivíduos, percebe-se que a tradicional e restrita acepção do conceito atribuído à privacidade já não é capaz de atender às mais modernas necessidades do homem.

É nesse cenário que se propõe um aperfeiçoamento da dogmática jurídica. Por intermédio da hermenêutica civil-constitucional, realiza-se a releitura do direito à intimidade a partir da tutela da dignidade da pessoa humana, valor máximo da Constituição Federal Brasileira e fundamento de seu Estado Democrático. Ou seja, uma evolução do instituto da privacidade, primariamente interpretado como o direito a ser deixado só, que passaria a abranger o máximo controle dos indivíduos sobre seus dados pessoais.

A privacidade passaria a compreender, dessa forma, o domínio sobre a circulação de suas informações particulares de tal maneira que poderia, o próprio titular das informações, não conhecê-las. Trataria-se, em verdade, da mais completa forma de expressão da autodeterminação informativa do indivíduo.

A essa interpretação, porém, os mais diferentes argumentos são suscitados. Fundamentando-se em normas constitucionais potencialmente colidentes com tal direito – em especial, o princípio da solidariedade social e o interesse da coletividade, além do direito à vida, à saúde e à informação –, defende-se a relativização do direito de não saber, restando seu exercício condicionado à ausência de riscos ao próprio indivíduo e a terceiros.

O presente trabalho tem por objetivo, assim, a análise crítica de tais fundamentos, bem como estabelecer e identificar os parâmetros relevantes aptos a reconhecer as hipóteses em que seria possível se considerar, efetivamente, de um legítimo exercício do direito de não saber, compatível com os princípios constitucionais balizadores do sistema jurídico brasileiro.


2. Evolução Conceitual do Direito à Privacidade

Privacidade e liberdade são, em essência, institutos que confluem para uma mesma direção. Para Gilberto Haddad Jabur, o direito à privacidade decorre do direito à liberdade, na medida em que, para que que consiga execer de modo pleno os predicados de sua liberdade – seja ela de consciência, de expressão ou de crença – é essencial que o indivíduo disponha de tempo e espaço reservados à reflexão interna, alheios às intromissões e censuras, preservados à sua própria vivência.2

A superposição dos direitos tornou-se cada vez mais evidente com a evolução conceitual que sofreram os institutos ao longo dos diferentes contextos histórico-sociais pelos quais a sociedade passou. Assim, diz-se que a interpretação atualmente atribuída ao direito de intimidade faz com que ele represente, hoje, a liberdade existencial do indivíduo.3

No entanto, para que se chegasse à sua atual acepção, o direito à privacidade sofreu diversas transformações. Se comparada a outros direitos da personalidade, esta sua tutela tem origem relativamente recente no ordenamento jurídico. Em verdade, o instituto da privacidade teve seu marco inicial no clássico artigo intitulado “The Right To Privacy” (O Direito à Privacidade), publicado em 1890 na Harvard Law Review, revista jurídica norte-americana.

Em sua concepção inicial, se referia ao “right to be let alone” (direito a ser deixado só), tutelando a esfera privada do indivíduo, sua vida íntima, pessoal, reprimindo que outros pudessem nela adentrar sem o seu consentimento. Tratava-se, em essência, de um direito à intimidade, comumente associado à ideia de casa e moradia – portanto, com um viés fortemente ligado ao modelo proprietário.4

Esse cenário perdurou até a década de 1960, quando, por diversos motivos, o direito à privacidade começou a receber ares de democratização, evoluindo de um referencial burguês para se estender, gradativamente, aos cidadãos de uma forma geral. Testemunhou-se, assim, a superação da ótica individualista do direito, com o surgimento de uma dimensão coletiva da privacidade.

Primeiramente, destaca-se os desdobramentos de um modelo de Estado liberal, que, atendendo a uma crescente demanda e reivindicação pela ampliação dos direitos às classes trabalhadoras, migrava para o welfare state. No entanto, o fenômeno de popularização se deu, em especial, em razão do desenvolvimento tecnológico e o consequente aumento do fluxo de dados relativos aos indivíduos, momento no qual as informações pessoais passaram, gradativamente, a assumir importância ainda maior.

Nesse sentido, Danilo Doneda: “Hoje, a exposição indesejada de uma pessoa aos olhos alheios se dá com maior frequência através da divulgação de seus dados pessoais do que pela intrusão em uma habitação, pela divulgação de notícias a seu respeito na imprensa, pela violação de sua correspondência – enfim, por meios “clássicos” de violação da privacidade”.5

Conforme elucida o Autor, as informações pessoais ganham extremo valor, podendo servir tanto aos interesses do Estado, aumentando seu poder de controle sobre os cidadãos, como de entes privados, que ganham meios de traçar, com maior precisão, o perfil de seu consumidor ideal.

Por essa razão, o conceito tradicional de privacidade – right to be alone é então ampliado, passando a abranger, também, o controle de divulgação e circulação pelo indivíduo de seus dados pessoais. A privacidade passa a ser, assim, “definida sinteticamente como o direito ao controle da coleta e da utilização dos próprios dados pessoais”.6

Novamente, é possível notar que, ao mesmo tempo em que se considera do direito à privacidade do indivíduo em relação às suas informações pessoais, se está, também, diante de uma faceta do direito constitucionalmente garantido à liberdade, que, neste caso, se manifesta por meio do controle do fluxo de circulação de seus dados.

Em um primeiro momento, a circulação de um dado específico de um indivíduo pode parecer inofensiva. No entanto, a leitura organizada de um conjunto de informações disponíveis relativas àquele indivíduo é capaz de lhe gerar um perfil, que poderá ser explorado das mais diversas maneiras. O indívidio passa a ser, assim, catalogado, sendo representado por um conjunto pobre de informações (dada a sua limitação em traduzir a complexidade humana) que, com frequência, não correspondem a uma realidade. Conforme adverte Danilo Doneda:

“Nossos dados, estruturados de forma a significarem para determinado sujeito uma nossa representação virtual – ou um avatar –, podem ser examinados no julgamento de uma concessão de uma linha de crédito, de um plano de saúde, a obtenção de um emprego, a passagem livre pela alfândega de um país, além de tantas outras hipóteses”.7

A vida do indíviduo passa a ser, então, decidida pelas informações disponíveis sobre si, as quais serão intrerpretadas a partir dos interesses específicos daqueles que as detêm. Sua real substância dá lugar ao seu avatar (a que se refere Danilo Doneda), o qual será, a partir de então, o representante de sua personalidade. Para Anderson Schreiber,

“[n]esse cenário, os dados pessoais fornecidos de modo irrefletido ou capturados involuntariamente são usados na construção de “perfis”, nos quais cada indivíduo acaba encaixado de acordo com características que o gestor das informações considera relevantes. Trata-se do chamado data mining, expressão utilizada para designar a atividade de extrair padrões de um determinado conjunto de dados. Dessa constante prospecção resulta risco significativo à dignidade humana, na medida em que a complexidade do ser humano acaba reduzida a certo perfil comportamental, construído, no mais das vezes, sem qualquer participação ativa do próprio indivíduo”.8

Foi neste cenário que se presenciou a transmutação do instituto da privacidade, o qual, primativamente de cunho patrimonialista, tornou-se instrumento de defesa do indivíduo – desta feita, amplamente abrangido – perante uma sociedade em que a evolução tecnológica abriu caminho para a circulação desenfreada de dados pessoais.

A complexidade das experiências que surgem nos últimos anos, no entanto, traz indícios de que o instituto da privacidade deverá, mais uma vez, demonstrar seu dinamismo e capacidade de adaptação para atender às necessidades de proteção do indivíduo frente às recentes questões que se apresentam.


3. Direito de Não Saber como Manifestação do Direito à Privacidade

Com a instituição do que se chamou de Sociedade de Informação,9 mostrou-se latente a insuficiência da concepção tradicional do instituto, tornando-se imprescindível a adequação das normas e interpretações jurídicas para assegurar a autonomia do indivíduo. No entanto, questiona-se se essa mais recente acepção do direito à intimidade já não seria insuficiente para atender aos anseios mais modernos do indivíduo.

Surgem atualmente diversos debates acerca da possibilidade de se defender a validade do direito de um indivíduo não querer ser informado de um dado que diz respeito a si próprio. A discussão reside mais uma vez na extensão que se pode atribuir ao conceito de privacidade garantido ao indivíduo. Questiona-se, nesse sentido, a possibilidade de se conceder uma proteção tamanha à sua autonomia, a ponto de que o indivíduo titular de determinado dado relacionado à sua condição existencial possua não apenas o direito de controle sobre a circulação desses dados, mas igualmente o direito de decidir sobre a sua produção – ou seja, a privacidade abrangeria a própria autonomia do indivíduo em decidir se uma informação que lhe diz respeito deverá até mesmo existir –, e também o direito de que ele próprio possa não conhecê-la.

A partir de uma leitura constitucionalizada do Código Civil – imprimindo-se às disposições de natureza civil “uma ótica de análise através da qual se pressupõe a incidência direta, e imediata, das regras e dos princípios constituídos sobre todas as relações interprivadas”10 –, amparado na cláusula geral de tutela da dignidade da pessoa humana no ordenamento jurídico brasileiro, deve-se, então, avaliar em que medida o direito à privacidade será válido frente aos casos práticos, em que, comumente, irá se contrapor a interesses igualmente garantidos pela proteção da personalidade.


4. Casos Controvertidos: Precedentes Históricos

No Brasil, o debate acerca da existência de um direito de não saber teve origem no julgamento do Recurso Especial nº. 1.195.995/SP, pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça. No caso em questão, um paciente aduziu que, atendendo prescrição médica, solicitara a um hospital a realização de exames de saúde, tendo como objetivo, dentre outros, a verificação da existência de vírus da hepatite C (anti-HCV).

Entretanto, utilizando-se das amostras colhidas, o hospital efetuou, por equívoco, exame anti-HIV. No momento da entrega do resultado, o paciente, identificando o erro cometido pelo centro hospitalar, acabou por tomar ciência, ainda que involuntariamente, de que era portador do vírus HIV. Para a correta compreensão da questão, faz-se necessário registrar que o resultado do exame se provou correto e, ainda, que somente o próprio paciente fora informado de seu quadro de saúde.

Incoformado com a conduta do hospital, o paciente ingressou com uma ação de reparação por danos materiais e compensação por danos morais sofridos “notadamente pela manifesta violação a sua intimidade”, sustentando que a divulgação de resultado de exame diverso do solicitado violou o seu direito de “não ter o conhecimento da sua real situação de saúde”.11

A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, no entanto, por maioria, confirmou o entendimento do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e considerou que não existe violação do direito à intimidade no referido caso, uma vez se tratar de hipótese de divulgação correta e verdadeira de dados médicos, ainda que não requisitados, para o próprio paciente.12

No julgamento, a Ministra Nancy Andrighi, adotando uma noção ampliada do direito de privacidade, considerou que a realização do exame de HIV sem a prévia anuência do paciente violou sua intimidade, configurando ato ilícito, passível de compensação por danos morais. Confira-se trecho de seu voto:

“Neste processo, o direito à intimidade do recorrente foi violado quando da realização de exame não autorizado, o que causou indevida invasão na esfera privada do recorrente (investigação abusiva da vida alheia). É irrelevante, portanto, o fato de que o resultado do exame não foi divulgado a terceiros (...). Acrescente-se que a intimidade abrange o livre arbítrio das pessoas em querer saber ou não algo afeto unicamente à sua esfera privada. Vale dizer: todos têm direito de esconder suas fraquezas, sobretudo quando não estão preparadas para encarar a realidade”.

Os Ministros Massami Uyeda, Sidnei Beneti, Paulo de Tarso Sanseverino e Vasco Della Giustina, no entanto, fizeram prevalecer o entendimento de que um indivíduo possui o direito de resguardar a sua própria vida contra a ingerência indevida de terceiros, mas não contra o próprio conhecimento.

Em seu voto, primeiramente, o Ministro Massami Uyeda considerou inexistir nexo de causalidade entre o abalo psíquico do paciente e a conduta adotada pelo hospital. Em trecho do acórdão, registrou que “no caso dos autos, o exame efetuado pelo Hospital não contém equívoco, o que permite concluir que o abalo psíquico suportado pelo ora recorrente não decorre da conduta do Hospital, mas sim do fato de o recorrente ser portador do vírus HIV”.13

Por fim, observou que a descoberta do vírus no organismo do paciente pelo hospital, ainda que de forma involuntária, lhe concedeu a oportunidade de tratamento, no que, “sob o prisma individual, o direito de o indivíduo não saber que é portador do vírus HIV (caso se entenda que este seja um direito seu, decorrente da sua intimidade), sucumbe, é suplantado por um direito maior, qual seja, o direito à vida, o direito à vida com mais saúde, o direito à vida mais longeva e saudável”.14

Outro histórico caso controvertido envolveu a cantora mexicana Glória de Los Ángeles Treviño Ruiz, mais conhecida simplesmente como Gloria Trevi, que, em 2000, foi detida no Brasil após acusações de corrupção de menores em seu país. Enquanto aguardava a extradição para o México, a cantora descobriu-se grávida na carceragem da Polícia Federal, na qual não dispunha do direito a receber visitas íntimas. O caso foi altamente divulgado pela impresa, com a divulgação de declarações da cantora de que teria sido vítima de violência sexual por parte dos agentes federais, sem contudo, se dispor a individualizar a acusão.

A despeito dos rumores, Gloria Trevi, invocando seu direito à intimidade, expressamente recusou-se a realizar o exame de DNA, capaz de revelar a paternidade da criança. Ainda assim, o Pleno do Supremo Tribunal Federal autorizou a realização do dito exame a partir da placenta coletada no momento do parto de seu filho. Em seu voto, o Ministro Relator Néri da Silveira considerou a prevalência do interesse do Estado (em apurar eventuais responsabilidades penais e administrativas), bem como da honra dos agentes integrantes da Polícia Federal, sobre o direito fundamental à intimidade de Gloria Trevi.


5. Direito de Não Saber: Patrimônio Informativo do Indivíduo e Direito à Autodeterminação Informativa

As transformações sociais não param e, como forma de evoluir em compasso com a sociedade, deve o direito também se aprimorar. Dessa forma, consolidada esta primeira evolução interpretativa e para que o direito fundamental à privacidade permaneça sendo tutelado em sua integralidade, sugere-se já um novo patamar de proteção à esfera privada do indivíduo: o direito de que ele próprio não tenha acesso às suas informações.15

À primeira vista, a proposta pode parecer um tanto incoerente. Afinal, como poderia um indivíduo não desejar ser sabedor de uma informação que lhe diz respeito? São diversos, porém, os tipo de informações em relação às quais a ignorância (no sentido de seu conhecimento) é comumente visualizada. Tratam-se de dados, em alguma medida, capazes de influenciar de tal maneira os rumos da vida de uma pessoa que, com frequência, seu desconhecimento é desejado. Toma-se, como exemplo ilustrativo, um parentesco ou mesmo a existência de uma doença sobre os quais, por qualquer motivo, não se deseja ter conhecimento.

Desse modo, para que assegurado o pleno direito à liberdade das escolhas pessoais, o direito à intimidade passaria a ser compreendido, então, como um direito à autodeterminação informativa, sendo esta entendida, entre outras dimensões, na liberdade do indivíduo em desconhecer informações relativas a si próprio. “Assim, a privacidade deve ser considerada também como o ‘direito de manter o controle sobre suas próprias informações e de determinar a maneira de construir sua própria esfera particular’ (Stefano Rodotà), reconhecendo-se às pessoas ‘auto-determinação informativa’ e a realização plena de sua liberdade existencial”.16

Nesse cenário, o “controle” dos dados pessoais do indivíduo superaria o mero gerenciamento de sua divulgação, circulação e armazenamento perante terceiros, abarcando ainda a opção de o próprio titular não conhecê-los. Para Rodotà, “o objeto deste direito pode ser identificado no “patrimônio informativo atual ou potencial” de um sujeito.17

Nesse sentido, é elucidativa a exposição da jurista lusitana Catarina Sarmento e Castro ao analisar o direito de autodeterminação informativa sob a égide do ordenamento jurídico português:

“O direito consagrado no artigo 35.º traduz-se num feixe de prerrogativas que pretendem garantir que cada um de nós não caminhe nu, desprovido de um manto de penumbra, numa sociedade que sabe cada vez mais acerca de cada indivíduo. É um direito a não viver num mundo com paredes de vidro, é um direito a não ser transparente, por isso, desenha-se como um direito de protecção, de sentido negativo. Visto deste prisma, o direito em causa permite que o indivíduo negue informação pessoal, se oponha à sua recolha, difusão, ou qualquer outro modo de tratamento. Neste sentido, ainda está próximo da ideia Americana de “privacy”, enquanto direito de defesa face às agressões do Estado e terceiros às suas informações pessoais. Mas é mais. Longe de ser um mero direito contra as intrusões do Estado ou de outros indivíduos, que devem abster-se de proceder a tratamentos dos seus dados pessoais, é um direito a decidir até onde vai a sombra que deseja que paire sobre as informações que lhe respeitam, construindo-se como uma liberdade, como um poder de determinar o uso dos seus dados pessoais. Assim, evita-se que o indivíduo se transforme em “simples objecto de informações” também na medida em que se lhe atribui um poder positivo de dispor sobre as suas informações pessoais, i.e., um poder de autotutela, de controlo, sobre os seus dados pessoais, que permite ao cidadão “preservar a sua própria identidade informática”.18

Com a consagração desta nova interpretação conceitual, em que o titular da informação encontraria, ele próprio, proteção de seu conhecimento, estar-se-ia diante da mais completa forma de manifestação do direito à liberdade do indivíduo, o qual gozaria de pelo domínio e autocontrole da sua esfera privada.


6. Informações Amparáveis: Os Chamados Dados Sensíveis

Ao se falar na tutela de um direito de não saber, é comum que um universo de possibilidades surja à mente. Pode-se pensar, por exemplo, de um direito a não ser informado sobre o resultado de uma partida desportiva que não se pôde acompanhar em tempo real. Ou, ainda, do direito que protege o consumidor de não ser perturbado através de ligações, mensagens ou e-mails com informações publicitárias das quais não requereu. Nada obstante essas e outras múltiplas hipóteses de que se possa cogitar, o direito de não saber que aqui se tem por exame refere-se, em síntese, às “informações relativas às pessoas e seus patrimônios”.19

Portanto, é válido compreender o tipo de vínculo entre informação e indivíduo capaz de identificar os casos em que uma informação poderá ser considerada pessoal, sendo merecedora da tutela da privacidade. Recorre-se novamente à preciosa análise de Danilo Doneda:

“Uma determinada informação pode possuir um vínculo objetivo com uma pessoa, revelando algo sobre ela. Este vínculo significa que a informação refere-se às características ou ações desta pessoa, que podem ser a ela atribuídas em conformidade com a lei, como no caso do nome civil ou do domicílio, ou então, às informações provenientes de seus atos, como os dados referentes ao seu consumo, informações provenientes de suas manifestações (...)”.20

É possível se dizer, portanto, que dados pessoais são aqueles que, propriamente ditos, trazem elementos que identificam (ou capazes de identificar) uma pessoa.21 Confira-se, nessa direção, a definição atribuída ao termo pelo art. 5º, I, da Lei nº 13.709/2018, cujo texto foi objeto de amplo debate público promovido pelo Ministério da Justiça, em parceria com o Observatório Brasileiro de Políticas Digitais do Comitê Gestor da Internet no Brasil:

“Art. 5º: Para os fins desta Lei, considera-se: I - dado pessoal: informação relacionada a pessoa natural identificada ou identificável”.

A prática do direito à intimidade e o controle de informações, entretanto, fizeram desenvolver uma categoria mais específica de dados, nomeadamente, os dados sensíveis, os quais consistiram em “determinados tipos de informação que, caso sejam conhecidas e processadas, prestar-se-iam a uma potencial utilização discriminatória ou particularmente lesiva e que apresentaria maiores riscos potenciais que a média, para a pessoa e não raro para uma coletividade” (Danilo Doneda)22.

Mais uma vez, vale-se do conceito trazido pela Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD):

“Art. 5º: Para os fins desta Lei, considera-se: II - dado pessoal sensível: dado pessoal sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural;

Desse modo, a interpretação do direito à intimidade do indivíduo, a incluir, nessa condição, o direito de não saber, deve se estender então às situações em que presentes dados sensíveis de sua titularidade, capazes de representar a sua essência como pessoa humana.

Ou seja: não será todo e qualquer compartilhamento de informação à revelia de seu destinatário que poderá ensejar a violação à intimidade do individuo. Em regra, serão merecedores da tutela do direito tão somente aquelas informações pessoais consistentes em dados sensíveis – que, por sua própria natureza, possuem elevado potencial de ensejar ações discriminatórias –, sem se deixar de reconhecer que há situações nas quais tal discriminação poderá ocorrer com informações que não se enquadrem em tal categoria e, ainda, que a utilização dos chamados dados sensíveis pode também ocorrer com fins legítimos e em observância da lei.23


7. Limitações Delineadas Pelo STJ: Análise dos Fundamentos Invocados no REsp Nº. 1.195.995

A doutrina, ainda que acanhada, já se mostra receptiva a essa mais recente manifestação do direito à privacidade. O desafio reside, no entanto, em seu acolhimento pelos tribunais pátrios, os quais dispensam tratamento ainda muito embrionário ao assunto. Nesse sentido, o maior e principal obstáculo a ser vencido refere-se à superação dos conflitos que se suscedem nos casos práticos entre o direito fundamental da intimidade, manifestado no direito de não saber, e nas diversas garantias constitucionais com que ele se defronta.

Nesse cenário é que se buscará avaliar se, amparado na cláusula geral de tutela da dignidade da pessoa humana, é possível a defesa da autodeterminação informativa do indivíduo – refletida no seu direito de não saber – frente os mais diversos casos práticos que diariamente se manifestam. O trabalho não tem, contudo, a pretensão de esgotar a multiplicidade de eventos nos quais é possível se considerar dessa vertente máxima do direito à intimidade. Seu escopo consiste na análise crítica das principais limitações apresentadas pelos tribunais pátrios ao debater o assunto, buscando-se, com isso, desenvolver um referencial para a diversidade de futuras e novas questões que venham a surgir em que aplicável o tema.

Toma-se para análise, então, o caso responsável por levantar a discussão em âmbito nacional (REsp nº. 1.195.995), no qual ocorreu a divulgação da existência de enfermidade a paciente que não requereu sua investigação (acima mencionado)

Em seu julgamento, por maioria, firmou-se o entendimento de que a suposta existência de um direito do indivíduo de não saber que é portador do vírus HIV é subrepujada por “um direito maior, qual seja, o direito à vida, o direito à vida com mais saúde, o direito à vida mais longeva e saudável”.24 Enfatizou-se, ademais, a preponderância do interesse público, sob a ótica da saúde pública, em face do direito à intimidade, considerando-se que a doença em comento era infectocontagiosa. Nesse diapasão, asseverou o Ministro Massami Uyeda que “todo direito deve ser exercido com responsabilidade, dentro de um contexto social, sob pena de se verificar o abuso de tal direito”. Por fim, considerou que, ao intentar ação de reparação, o paciente agiu muito proximamente ao que se considera como intenção de beneficiar-se de sua própria torpeza. Nada obstante os prestigiosos argumentos suscitados no acórdão, reserva-se agora a eles especial atenção.

7.1. Melhor interesse do indivíduo

Primeiramente, deve se questionar em que medida a informação da existência de doença, cujo exame não foi requerido pelo paciente, lhe será benéfica à saúde.

De fato, é apenas com o conhecimento da doença que será oportunizada ao paciente a possibilidade de um tratamento médico, razão pela qual “a informação correta e sigilosa sobre seu estado de saúde não teria o condão de afrontar a sua intimidade, na medida em que lhe proporcionou a possibilidade de proteger direitos fundamentais de grande relevância”.25

No entanto, deve-se atentar ao fato de que as pessoas reagem de modos distintos à existência de uma doença. Seu conhecimento, para uns, significará o imediato início de um tratamento médico ou a pronta submissão a uma intervenção cirúrgica. Para outros, no entanto, poderá consistir em profundo abalo psicológico e considerável queda na qualidade de vida.

Caberia ao intérprete, assim, reconhecer que determinadas decisões devem ser reservadas à esfera íntima e privada do ser humano, sob pena de violação do princípio da dignidade da pessoa humana. Ninguém é mais apto do que o próprio indivíduo para definir o que é capaz de representar maior ou melhor interesse para a sua vida. “Não se garantiria a dignidade de alguém obrigando-o a tomar conhecimento de uma doença contra a sua vontade, em prol de um suposto interesse público” (Chiara de Teffé e Juliana Chediek).26

A indagação ganha força, ainda, em se tratando de doença para a qual não há cura conhecida. Assim é porque se diz que não há ninguém mais apto a decidir o valor e impacto desse conhecimento do que o próprio indivíduo sobre o qual recaia a condição. Nessa direção é a colacação de Stefano Rodotà:

“Considerando o que se pode ou se deve saber, percebe-se que estão em questão modelos culturais bastantes diferentes entre si. O conhecimento deve ser considerado como um valor absoluto? Quais são os efeitos de uma revelação integral e precoce do “destino biológico”? Um “excesso” de conhecimento não pode se revelar como um limite à autonomia e, logo, à livre construção da personalidade? Vale a pena ao menos recordar que Hans Jonas chama nossa atenção para a “necessidade do acaso”, dizendo que o direito de não saber “pertence inseparavelmente à liberdade existencial”. Já no chamado Relatório Benda, a propósito da doença de Huntington, observou-se que, “para uma pessoa, o saber-se portadora de uma doença mortal e incurável pode se tornar um peso tão grande a ponto de abatê-la. Não se pode excluir, por outro lado, que o conhecimento da doença que a acometerá possa motivá-la a uma vida especialmente intensa; e o conhecimento poderá também induzi-la a não transmitir suas características hereritárias à geração seguinte”.27

Dizer, portanto, que o conhecimento da enfermidade que acomete o indivíduo lhe será efetivamente benéfico à saúde poderá consistir em falaciosa argumentação. Considerada a complexidade das caracteríticas que, em conjunto, definem a personalidade de um indivíduo, não é possível prever a repercussão que a comunicação da propensão ou existência de determinada doença causará em sua vida.28

Outrossim, oportuno ressaltar que a Constituição Federal não reserva tratamento privilegiado à vida em face de outros direitos individuais, tais quais a igualdade, a segurança e a própria liberdade – a qual abrange a liberdade informativa do indivíduo. Em verdade, o texto constitucional reservou papel prioritário à dignidade da pessoa humana, alçada a fundamento da República já no primeiro artigo da Constituição Federal, a demonstrar sua magnitude e proteção. “Assim, nem a liberdade, nem a vida, nem quaquer dos direitos individuais recebe proteção absoluta. São protegidos apenas enquanto e na medida em que se dirige à promoção da dignidade humana”.29

Pode-se afirmar, assim, que não há um “direito à vida mais longeva”, que deverá prevalecer sobre outros direitos individuais. O que há de se valorizar é, na promoção da dignidade humana, a persecução da construção da individualidade do indivíduo, a quem caberá ponderar acerca da importância da produção e conhecimento de uma informação particular à sua vida. A compreensão desta, então, não deve se limitar apenas no seu sentido biológico de incessante auto-atividade funcional, mas sim na sua concepção biográfica mais compreensiva.30

7.2. Interesse coletivo e anseios sociais

O acórdão foi também forte no argumento do interesse coletivo.31 A solidariedade social pode ser assim compreendida como uma força de instrumentos voltandos à garantia de uma existência digna comum a todos. Consistiria, em verdade, na reciprocidade com a qual cada indivíduo deve orientar suas escolhas, colocando-se, de alguma maneira, no lugar do outro.32

Assim é que, considerando tratar-se no caso em questão de doença infectocontagiosa (a qual, portanto, poderia ser transmitida a outros), “defende-se que o princípio da solidariedade social teria plena aplicação à hipótese, pois ao tomar conhecimento da doença o autor poderia (e deveria) agir com maior precaução, evitando a contaminação de terceiros”.33

É de se observar, no entanto, que o argumento fundamenta-se em mera expectativa que, com frequência, não refletirá a prática comum. A despeito de se compreender que, uma vez ciente de sua condição, o cuidado será uma consequência esperada, nada impede que a atitude seja diametralmente oposta. Ou seja, que, assomado pela ciência de enfermidade para a qual não requereu investigação (da qual possivelmente não suspeitava), passe o indivíduo a proceder com atos despidos de quaisquer compromissos com a saúde pública, mais irresponsáveis, inclusive, do que aqueles adotados antes de seu conhecimento.

Recorda-se, ademais, que os tratamentos de saúde não são obrigatórios. Logo, dispõe o enfermo da prerrogativa de permanecer doente e, se assim preferir, adotar condutas que coloquem em risco a saúde de outros indivíduos (ainda que por isso possa vir a responder civil ou criminalmente no futuro, discussão que aqui não cabe). Veja-se, nesse sentido, a crítica feita por Caitlin Mulholland:

“O fato de a doença ser infecto-contagiosa, por outro lado, não é justificativa para informar o paciente, na medida em que não se presume que o desconhecimento da doença signifique necessariamente a difusão da doença. No caso de HIV/AIDS nem sequer há a obrigatoriedade de informação às autoridades sanitárias e médicas da contaminação com o intuito de resguardar a coletividade. Isso se dá justamente para proteger a privacidade da pessoa que é portadora de doença estigmatizante. Ademais, da mesma forma que existem pessoas sãs que não tomam precauções para evitar a exposição a doenças infecto-contagiosas, existem pessoas doentes que tomam inúmeras precauções para evitar que elas próprias sejam instrumentos para a difusão de doenças. Não se pode afirmar que o conhecimento a respeito de ser uma pessoa portadora de doença infecto-contagiosa irá evitar que a doença se propague. Não é o fato da pessoa ter desconhecimento a respeito de sua condição de saúde que gere fundamentalmente uma falta de cuidado com a sua saúde e a de outros”.34

Contra essa ponderação, afirma-se que, em casos como esse, ainda que o paciente que foi informado decida continuar a colocar em risco a saúde de terceiros, tratar-se-ia de caso excepcional, considerando-se não ser essa a atitude a se esperar de um indivíduo que se depare com tais condições. Nas palavras de Lucas Miotto Lopes:

“Note que no caso do HIV trata-se de uma doença incurável e que não há método de prevenção infalível de modo que uma pessoa contaminada expõe, em maior ou menor grau, outras ao risco em todas as circunstâncias em que tem relações sexuais ou realiza transfusões de sangue, ou compartilha seringas e afins. Ao dar o direito de não saber a essa pessoa, acaba-se tirando a possibilidade de ela tomar certos cuidados e a possibilidade de ela avisar potenciais parceiros sexuais sobre os riscos prováveis que correm, ainda que sejam baixos. Sendo assim a existência de pessoas que saibam que são portadores de doenças contagiosas e não se protegem ou se tratam não é um contraexemplo à tese de que nesses casos deve-se informar. O que se busca proteger ao informar é a mera possibilidade de a pessoa escolher não transmitir a doença e de tomar cuidados”.35

Desse modo, a despeito desse caro direito fundamental que agora se tem sob exame, afigura-se mais uma vez necessária a análise da efetividade prática que a sua preponderância será capaz de causar nos mais diversos e distintos casos práticos que venham a surgir, tendo em vista seus desdobramentos sobre o sujeito titular e terceiros considerados.

7.3. Própria torpeza

No julgamento do Recurso em comento, asseverou o Ministro Massami Uyeda que:

“não se afigura permitido, tampouco razoável, que o indivíduo, com o desiderato inequívoco de resguardar sua saúde, após recorrer ao seu médico, que lhe determinou a realização de uma série de exames, vir à juízo aduzir justamente que tinha o direito de não saber que é portador de determinada doença, ainda que o conhecimento desta tenha se dado de forma involuntária. Tal proceder aproxima-se, em muito, da defesa em juízo da própria torpeza, não merecendo, por isso, guarida do Poder Judiciário”.36

O argumento da própria torpeza, expresso no consuetudinário corolário nemo auditur propriam turpitudinem allegans (ou seja, “ninguém pode ser ouvido ao alegar a própria torpeza”), se refere à impossibilidade da adoção de uma conduta posterior que incompatível com uma atitude anteriomente adotada. Quer-se, com isso, impedir a prossecução de comportamentos contraditórios pelo indivíduo.37 Assim sendo, considerou o Ministro que, para o caso em apreço, o paciente, que buscou os serviços do centro de saúde com vistas à realização de diversos exames médicos (hemograma, creatina, glicemia jejum, glicemia pós-prandial, Hb, glicosilada, Ácido úrico, colesterol total e frações, triglicérides, gama GT, Glicoproteína Ácida, T4 livre, TSH, anti HCV e HBSAG), agiu com comportamento contraditório ao reclamar indenização pela ciência de enfermidade para a qual não requereu investigação.

Nada obstante a colocação do Ministro, é de se questionar até que ponto a realização de um exame médico pode implicar o desejo intrínsico do paciente de ter ciência das mais diversas naturezas de enfermidade que poderiam lhe acometer. Com esse tipo de fundamentação, poderia se inferir, em regra, que, no momento em que se adentrasse um centro hospitalar para investigação de uma única doença, estaria o hospital autorizado a realizar toda a sorte de exames possíveis com o material colhido, agindo dentro dos limites legais caso informasse exclusivamente ao paciente a existência de um resultado positivo. Inequívoco, no entanto, que se trataria de manifesta violação ao direito da intimidade do indivíduo que, ainda que não tenha manifestado o desejo expresso de não ter conhecimento de determinada doença, efetivamente não requereu fosse realizado exame para sua investigação. Nas palavras de Caitlin Mulholland:

“devemos considerar que a pessoa que busca a realização de exames médicos, visando resguardar a sua saúde, não é, via de regra, pessoa com conhecimento técnico e que, portanto, reconhece no pedido médico a dúvida técnica quanto ao diagnóstico. Não há como saber, a priori, o que levou o médico a não requerer a realização de exame Anti-HIV. Mas o fato de não ter sido um exame requisitado gera ao paciente uma expectativa de que não haveria questionamentos, por parte de seu médico – um técnico, frise-se –, quanto à contaminação por este tipo de vírus. Portanto, não se pode alegar que houve conduta torpe por parte do paciente, na medida em que ao recorrer ao médico para resguardar a sua saúde a intenção era pesquisar a existência de outras doenças que não aquela identificada no exame não requerido”.

Ademais, ressalte-se que, no caso em destaque, o exame requerido pelo paciente consitia na investigação da infecção de seu organismo pelo vírus HCV – transmissor da Hepatite C – o qual, por acaso, possui formas de transmissão similares às do vírus HIV – causador da AIDS. Nesse caso, parece pouco mais razoável a presunção – não a constatação, há de se frisar – do interesse do indivíduo de ser informado acerca da doença (ainda que forte o argumento de que, se de fato existisse o interesse, haveria requisição expressa para realização também daquele exame). Contudo, insta indagar: o mesmo ocorrerá nas hipóteses em que, requerido exame para averiguação de doença considerada “simples”, e o paciente informado da existência de enfermidade de risco elevado à saúde? Ou, ainda, nos casos em que o exame requisitado referia-se à doença para a qual existe tratamento, ao passo que, para a enfermida da qual foi informado, não há cura conhecida – registre-se ser esse o caso do julgado ora em análise.38

Diz-se, então, que essa complexidade de cenários demontra que o argumento da torpeza do indivíduo deve também ser avaliado, ao menos, levando-se em conta as características do caso concreto, capazes de evidenciar o real interesse do indivíduo em casos como o presente – relativos à revelação de dados genéticos e enfermidades à revelia de seu titular.

7.4. Nexo de causalidade

Por fim, há de se analisar o derradeiro argumento empregado pelo acordão para considerar a ausência de violação à intimidade do paciente no julgado sob exame. Considerou o Ministro Massami Uyeda, em seu voto, inexistir nexo causal entre a conduta adotada pelo hospital e o dano alegado pelo paciente, uma vez tratar-se de informação correta e sigilosa transmitida unicamente a seu titular. Veja-se, nesse sentido, trecho de seu voto, bem como do voto-vista do Ministro Sidnei Beneti, que acompanhou a divergência:

“Nos dias atuais, é verdade, com os avanços dos medicamentos correlatos e a descoberta prematura da doença, o indivíduo acometido pelo vírus HIV pode ter uma maior expectativa de vida, mais saudável e digna. No caso dos autos, diversamente, o exame efetuado pelo HOSPITAL ALBERT EINSTEIN não contém equívoco, o que permite concluir que o abalo psíquico suportado pelo ora recorrente não decorre da conduta do Hospital, mas sim do fato de o recorrente ser portador do vírus HIV, no que o Hospital-recorrido, é certo, não possui qualquer responsabilidade”.39

“Aos fundamentos constantes do Voto-divergente e em consideração à elevada qualidade jurisdicional dos posicionamentos da E. Relatora, bem como em respeito às partes e a seus E. Advogados, ajunta-se: a) Não houve divulgação do exame errado a ninguém, salvo ao próprio paciente, de forma que não há como imaginar a dor de repercussão negativa (...)”.40

Desse modo, asseveraram os Ministros que o sofrimento pelo qual pretendia o indivíduo se ver compensado não teve origem na ciência da existência da doença, ou seja, na violação do seu direito de não saber, mas sim na sua própria existência, na sua condição de portador.

Em posição oposta, considerou a Ministra Nancy Andrighi que “não prospera o fundamento do acórdão recorrido de que não há nexo causal entre conduta e dano, pois esse decorre da violação do direito à intimidade do recorrente e não da existência da doença”.41 É esse também o entendimento de Caitlin Mulholland:

“O abalo psíquico ou dano moral decorrente da violação de direito à intimidade do paciente se deu de forma necessária por conta da conduta do laboratório. É claro que a informação é verídica, mas o dano, qual seja, o conhecimento de informação não requerida, se liga causalmente à conduta do laboratório. O dano não é a tristeza decorrente do conhecimento do paciente ser portador de vírus HIV. O dano se caracteriza pela violação de intimidade do paciente pela divulgação de informação não requerida. Não se está a discutir se o conhecimento da contaminação com vírus HIV gera dor ou sofrimento. Está a se afirmar que a divulgação de informação não requisitada gera a violação da intimidade da pessoa. A relação agora não é mais negativa, no sentido de impedir que outros acessem minhas informações, mas positiva, no sentido de não ter a pessoa a obrigação de ter o pleno conhecimento de sua situação de saúde”.42

Conforme bem destaca a autora, não pretende o indivíduo se ver compensado pela contaminação do HIV, e sim pela violação de sua dignidade em um de seus mais importantes substratos, qual sejam, o direito à intimidade, no momento em que fora informado da existência de doença da qual não requereu exame.43

Ora, bastaria a seguinte reflexão: para os defensores da inexistência de nexo de causalidade, diz-se que o dano provocado no indivíduo, oriundo do abalo então sofrido, teve origem na conduta do agente transmissor da doença, e não na do agente comunicador de sua existência. Conclui-se, assim, que eventual ação de reparação, na qual se examinaria a responsabilidade do sujeito causador do dano, deveria ser oferecida em face do agente transmissor.

No entanto, em hipótese diversa, na qual o desejo do indivíduo de não saber refira-se à informação de natureza distinta, a construção engendrada parece não colher. Imagine-se um caso ilustrativo em que um casal, desde muito, é sabedor da possibilidade de existência de parentesco entre si, mas, com vistas a evitar qualquer abalo em sua relação, decide não querer confirmar tal desconfiança. Após anos de matrimônio bem vividos, contudo, são informados por um terceiro de que, conforme as suspeitas, além de dividir laços matrimoniais, marido e mulher compartilham também de relação cosanguínea. Nesse exemplo, questiona-se: eventual ação de reparação deveria ser oferecida em face do agente responsável pelo parentesco entre o casal? Seus pais, no caso de marido e mulher serem primos?

Parece, assim, equivocada a assertiva de que o abalo teria origem apenas na existência da doença (ou do parentesco, para o exemplo acima), e não também de sua ciência. Não se pretende afastar, absolutamente, o fato de que a contaminação por si só é capaz de gerar sofrimentos no indivíduo. Nada obstante, afigura-se igualmente necessário considerar da possibilidade de dano oriundo especificamente da violação da autodeterminação informativa do indivíduo que é informado à sua revelia. São, em verdade, danos distintos, que não se confundem.


8. Propostas de Parâmetros de Ponderacão em Matéria de Direito de Não Saber

Para o direito que ora se tem sob análise, tem-se de um lado o direito de não saber, como decorrência da interpretação extensiva do direito à intimidade, resultante da proteção constitucional conferida à dignidade da pessoa humana, e, de outro, o interesse da coletividade, o direito à vida e o direito à informação (reflexo do direito de saber de que assiste um terceiro) – sendo esses os mais presentes nas diversas hipóteses em que se vislumbra o direito de não saber –, todos tutelados da mesma forma pela Carta Magna.

Para solucionar tais hipóteses, em que duas normas constitucionais, se isoladamente consideradas, conduzem a resultados contraditórios entre si – denominadas hard cases –, Robert Alexy44 propõe seja adotado o método ponderativo.45 Diante da ausência de hierarquia axiológica entre os princípios em colisão, a solução necessariamente seria obtida por meio do sopesamento dos valores em jogo, aferindo-se, assim, o grau de realização de cada direito.

Ana Paula de Barcellos46 descreve a técnica ponderativa por meio de três etapas sucessivas. Segundo a autora, a primeira etapa será aquela em que ao intérprete será dado identificar no sistema os enunciados normativos relevantes que se apresentam como conflitantes no caso concreto.

Caberá à segunda etapa, em seguida, a apuração dos aspectos de fato relevantes, assim como a sua interação com os elementos normativos. Essa fase possui certa importância, pois é no momento em que entram em contato com as situações concretas que os princípios têm o seu conteúdo preenchido de real sentido. “Assim, o exame dos fatos e os reflexos sobre eles das normas identificadas na primeira fase poderão apontar com maior clareza o papel de cada uma delas e a extensão de sua influência” (Luís Roberto Barroso).47

Por fim, será na terceira etapa, dedicada à decisão, que o intérprete avaliará o grupo de normas que deverá preponderar naquele caso, a partir do exame em conjunto das normas aplicáveis e da repercussão das circunstâncias do caso concreto, mensurando os pesos que devem ser atribuídos aos diversos elementos em conflito.

Todo este percurso deverá conduzir, assim, a uma harmonização recíproca dos direitos fundamentais conflitantes, os quais, diante de sua centralidade na Constituição Federal, não poderão restar completamente esvaziados, a ponto de tornarem-se “invólucros vazios de conteúdo”.48

Uma vez estabelecida a técnica ponderativa como mecanismo apto a produzir uma solução dotada de racionalidade e de controlabilidade diante da colisão entre direitos fundamentais, importa sejam analisados os parâmetros que conduzirão à ponderação em sentido estrito, determinando, ao final, qual direito será tutelado, e, ainda, em que medida.

Para tanto, é necessária a identificação dos fatos relevantes à solução da controvérsia, ora apresentados em parâmetros – ou seja, as circunstâncias fáticas que estabelecem atribuição de peso distinta às soluções possíveis, revelando, também, o grau de restrição que a realização de um direito imporá sobre os demais.

Desse modo, propõem-se os seguintes parâmetros para a aferição dos casos em que haja legítimo exercício da intimidade do indivíduo, manifestada no seu direito de não saber: (i) a existência de declaração do indivíduo nesse sentido; (ii) o alcance da informação, ou seja, se ela repercurte no interesse de terceiro identificável.

Válido, no entanto, o registro de que os parâmetros sugeridos não possuem caráter absoluto. Servem, então, ao auxílio do intérprete, que deverá sempre ter por orientação as características do caso concreto. Sendo assim, ainda que se identifique num caso específico a existência dos fatos relevantes então apresentados como parâmetros, uma vez considerada a complexidade de arranjos possíveis em uma sociedade marcada pela multiplicidade de interesses, não é possível se afirmar, sem a completa análise de todos as suas características, que o direito de não saber deverá prevalecer sobre os direitos fundamentais então colidentes.

i) Declaração de vontade

Relevante discussão comumente levantada nos casos práticos em que se discute a validade do direito de não saber do indivíduo refere-se à forma como deve ser presumida a sua vontade. Diante da ausência de manifestação expressa do indivíduo, questiona-se qual desejo deve ser presumido (o de ser informado ou o de não ser informado).

Assim, por exemplo, Graeme Laurie advoga que não existe necessidade de explícito requerimento do indivíduo de não saber. Considera o autor que, ainda que nenhum desejo haja sido manifestado, o interesse em não saber pode ser também extraído do fato de o indivíduo não ter requerido a investigação da informação (caso, ao contrário, tivesse interesse em seu conhecimento, teria então realizado sua apuração). Desse modo, o autor defende um respeito prima facie pelo interesse do indivíduo em não saber, ainda que este não tenha se manifestado explicitamente.49

Na prática, tal pensamento significaria a “inversão do ônus da prova” (inversion of the burden of proof), uma vez que não seria do indivíduo que não quer saber o ônus de expressar seu desejo. Na realidade, caberia ao indivíduo que pretende divulgar as informações, antes de fazê-lo, se certificar de algumas condições – a exemplo da possibilidade de cura, para o caso de enfermidade, ou ainda da forma como indivíduo poderá reagir diantes de tais informações).50

Para o autor, portanto, diante da ausência de manifestação do indivíduo, a presunção a se adotar, em regra, é de que não há interesse no conhecimento da informação. Em sentido semelhante, considera Caitlin Mullolhand que “não existe uma presunção, nem relativa, de que é de seu interesse ter esse conhecimento”.51

Essa forma de compreender, entretanto, não é unânime entre os juristas. Há quem defenda, em posição contrária, que não é possível se presumir que o indivíduo não deseja ser informado acerca de um dado sensível que diz respeito a ele próprio.52 Partilhando desse posicionamento, em crítica à análise de Graeme Laurie, Roberto Andorno compreende ser de difícil aceitação a visão de que, para aqueles que não explicitaram seu desejo de saber ou não acerca de seus dados genéticos – o que representaria praticamente a integralidade dos indivíduos –, deve ser considerado que não há interesse na informação. Entende Andorno, ao contrário, que o direito de não saber deveria ser visto, na realidade, como exceção, e não como regra, sendo “acionado” pelo desejo explicitado do indivíduo. Confira-se:

Both competing rights — to know and not to know — cannot be the rule. Surely, to determine which right should prevail will depend on the circumstances of each case, but law and ethics need rules to operate in a coherent manner; and the rule in this field is that patients have a right to know their health status. This is why it seems that the right not to know may only be accepted as an exception, at least with regard to competent persons (…) In brief, therefore, the argument of this paper is that the right not to know cannot be presumed, but should be ‘‘activated’’ by the explicit will of the person”.53

Pontua o autor, ademais, que uma das particularidades do direito de não saber consiste no fato de este depender das próprias percepções subjetivas do indivíduo. Assim sendo, sua autonomia informativa afigura-se essencial ao perfeito exercício do direito que o socorre, razão pela qual caberia a ele determinar seu real desejo.

A partir da controvérsia, é possível se inferir que o tema não é de fácil solução. Em verdade, conforme destaca Andorno, para uma completa manifestação da autodeterminação informativa de um indivíduo, sabedor de suas preferências, não há ninguém melhor que o próprio para decidir acerca do impacto que determinada informação lhe causará. Por isso, compreensível quando o autor considera que o direito de não saber não deve ser presumido, consistindo não em regra, e sim em exceção, sendo concebido a partir de sua sinalização pelo titular da informação.

Nada obstante, parece convergir a doutrina para o fato de que, uma vez existente declaração de vontade expressa do titular da informação, no sentido de não desejar ser informado, fortalece-se a defesa de seu direito. Por essa razão é que se concebe, como um dos parâmetros aptos a se identificar a validade do direito no caso concreto, a explicitação do desejo do indivíduo. Nesse sentido:

“o paciente também tem o direito de não saber, isto é, o direito de não ser informado, caso manifeste expressamente esta sua vontade. O profissional da saúde tem que reconhecer claramente quando esta situação ocorre e buscar esclarecer com o paciente as suas consequências”.54

É dizer, uma vez diante de declaração expressa do desejo de não saber, expoente mais elevado da preservação da intimidade do indivíduo – manifestado na possibilidade de proteção do conhecimento de dados sensíveis do seu próprio titular – em princípio, se poderia sobrepujar os direitos fundamentais então colidentes. Nada obstante, é de registrar que todo o caso concreto demandará a análise minuciosa das circunstâncias e das normas jurídicas ora aplicáveis, podendo, ainda que presente manifesta declaração do indivíduo, prevalecer um outro direito fundamental na hipótese colidente.

Não se refuta, porém, que ainda nas hipóteses em que ausente manifestação explícita do indivíduo de não querer saber, poderá o direito de não saber preponderar, consideradas as circunstâncias do caso concreto. É o caso, por exemplo, do indivíduo que ingressa em hospital para a realização de exames específicos, sendo diagnosticado com doença da qual não requereu investigação.

Nessa hipótese, deve-se ter em mente que o fato de não ter sido um exame requisitado por seu médico gera ao paciente uma expectativa de que não haveria questionamentos quanto à contaminação por este tipo de vírus.55 Portanto, a divulgação da informação não requerida poderá efetivamente lhe causar um abalo psicológico, uma angústia extremada, superior àquela em que o indivíduo, preparando-se psicologicamente para tanto, requereu a sua investigação. Recorda-se que a divulgação de uma enfermidade não representa para toda e qualquer pessoa um dado cujo conhecimento seja benéfico, especialmente enfermidade para a qual não há cura ou tratamento conhecido. Tem-se nessa questão, assim, mais uma importante circunstância a ser considerada na análise do caso concreto.

ii) Possibilidade de reversão do fato objeto da divulgação

Em matéria de saúde e genética, afigura-se crucial a análise da possibilidade de reversão da enfermidade ou condição que se tem por divulgar.56 Decerto não se quer ter por exame a viabilidade de se voltar no tempo e se desfazer o ato ou o fato que ensejou a contaminação ou desenvolvimento da doença naquele dado indivíduo. Fala-se, em verdade, na existência ou não de tratamentos e curas conhecidas para a enfermidade e que estejam ao alcance do indivíduo portador.

Como é cediço, a despeito da evidente evolução por que passou a ciência nos últimos anos, com conceituados profissionais, médicos e cientistas, além dos elevados investimentos das indústrias farmacêuticas, ainda não se descobriu tratamento eficaz e a cura para todas as doenças conhecidas. Esse é o caso, por exemplo, da Aids, da doença de Huntington e do Alzheimer, enfermidades para as quais os avanços da medicina se limitam à possibilidade de que os pacientes tenham uma sobrevida maior.

É fácil de imaginar que o conhecimento de que se é portador de doenças para as quais não se tem ainda tratamento eficaz será capaz de acarretar sofrimentos superiores àqueles casos em que o indivíduo descobre-se portador de doença para a qual há cura. Diante disso é que, nas hipóteses em que se descobre que o indivíduo é portador de doença da qual não requereu investigação, relevante parâmetro a ser considerado diz respeito às características da enfermidade que o acomete. Em outras palavras, a possibilidade de superação da situação sob a qual se encontra o indivíduo deve ser importante fator à solução das controvérsias no caso concreto.

Registre-se, ainda, que deve-se ter por atenção não somente a existência da possibilidade de reversão daquela doença num plano teórico, carecendo a análise da viabilidade de que aquele tratamento, seja ele farmacológico ou cirúrgico, esteja ao alcance do indíviduo. Assim, um tratamento de alto custo financeiro, para o qual não há subsídios do Estado, não estará acessível a um indivíduo de baixa renda. O mesmo pode-se dizer de uma cura recentemente descoberta, que se encontra em fase de testes, ainda não disponibilizada comercialmente. Ambas as hipóteses se aproximam àquelas nas quais a enfermidade descoberta ainda não possui cura, uma vez que o paciente não poderá se submeter, efetivamente, ao tratamento. É, desse modo, primordial que se analise o contexto em que o indivíduo está inserido.

iii) Alcance da medida: interesse exclusivo do titular da informação

Diante de um estado democrático de direito, o direito à privacidade, garantido constitucionalmente, poderá sofrer restrições quando presente o interesse social ou o interesse de um terceiro específico. É, assim, na proteção dos anseios sociais que se tem o mais comum argumento empregado como forma de se limitar a liberdade de autodeterminação informativa do indivíduo, manifestada através de seu direito de não saber.57 Nas palavras de Maria Celina Bodin de Moraes:

“Ao direito de liberdade da pessoa, porém, será contraposto – ou com ele sopesado – o dever de solidariedade social, no sentido de que se exporá a seguir, mas já definitivamente marcado pela consciência de que, se por um lado, já não se pode conceber o indivíduo como um homo clausus – concepção mítica e ilusória –, por outro lado, tampouco devem existir direitos que se reconduzam a esta figura ficcional. Os direitos só existem para que sejam exercidos em contextos sociais, contextos nos quais ocorrem as relaçãoes entre as pessoas, seres humanos “fundamentalmente organizados” para viverem uns em meio a outros”.58

Dessa forma, em situações em que potencialmente presente o interesse da coletividade – o qual, normalmente, representará o direito à saúde – deverá se recorrer à técnica da ponderação, por meio da qual será capaz de se verificar se é justificável o sacrifício do direito fundamental à intimidade diante da tutela do interesse coletivo. Nesse sentido, como bem destaca Gustavo Tepedino, Stefano Rodotà considera que o reconhecimento do direito à privacidade deve ser situado no amplo contexto em que sobressaem os interesses do Estado e outros interesses individuais e coletivos – tradicionamente representados no direito à saúde e à informação.59

Assim é que ocorre, por exemplo, diante do diagnóstico de doença infectocontagiosa da qual, entretanto, seu portador não quer ser informado.60 Em situações como essa, há parcela considerável da doutrina que defende o discurso de que a preservação da intimidade do enfermo consistiria em abuso do direito, já que, sem seu conhecimento, o indivíduo não poderá tomar as precauções necessáriass para evitar a disseminação de sua doença.61

Situação ainda mais delicada, porém, se refere aos casos em que o risco de contaminação é de um terceiro conhecido, a exemplo do parceiro sexual de um indivíduo contaminado com o vírus do HIV que não deseja ser informado da doença. Trata-se já não mais de um risco em abstrato, considerada a generalidade de indivíduos, mas um risco que transcende a coletividade e se concentra em um terceiro identificável. Como deve proceder o médico nessa hipótese? A defesa da preservação da saúde do terceiro será capaz de suplantar o direito de não saber do paciente?62 A resposta para tal questão não é simples, dividida a doutrina em posicionamentos opostos.

Ocorre, porém, que, para muitos casos, não haverá interesse de terceiros na informação. São diversas as hipóteses em que a informação sobre a qual o indivíduo não deseja ter conhecimento se relacionará exclusivamente a ele. Exemplo simples, nesse sentido, é o da doença não contagiosa. Nesse caso, não há que se falar em risco para terceiros, cabendo, portanto, a avaliação da validade de seu conhecimento unicamente ao seu portador.

Por essa razão é que se propõe o exame do alcance da informação para se determinar a validade do direito de não saber no caso contreto. Assim, quando a informação não imputar limitação do direito de terceiro, seja à saúde, à liberdade de conhecimento, etc., consistindo em interesse exclusivo do titular da informação, diz-se que, a princípio, a tutela do direito de autodeterminação informativa do indivíduo – que optar por não tomar conhecimento daquela informação – será válida.

Novamente, é oportuno destacar que não se rejeita a possibilidade de se advogar o direito de não saber nas hipóteses em que existe interesse de terceiro, e não apenas do titular da informação. Em casos como esse, é necessário se ter por análise em que medida os direitos colidentes deverão prevalecer, investigando-se a que título se fundamentam suas vontades, bem como o impacto que o conhecimento e o desconhecimento de tal informação será capaz de causar nesses sujeitos. Assim, por exemplo, na hipótese de conflito entre o direito de não saber de um indivíduo e o direito de saber de outro, deverá se privilegiar o direito fundamental à intimidade caso o interesse do terceiro, que argui seu direito de saber, esteja fundamentado em mera curiosidade, sendo incapaz de lhe acrescentar relevante significado.

O exame das características do caso concreto será, portanto, sempre imprescindível à perfeita avaliação do aplicador da lei.


9. Conclusão

A sociedade atual, marcada pela era da informação, transformou a tutela da privacidade em um dos principais pilares da liberdade do indivíduo. O conceito, primariamente compreendido como o direito a ser deixado só (right to be alone), que servia aos interesses de uma classe social mais elevada, evoluiu e se difundiu, tornando-se mecanismo de controle de seus dados e ferramenta da livre construção da identidade do indivíduo.

Como se sabe, porém, o direito deve sempre evoluir observando as transformações da sociedade, sob pena de se tornar ineficiente. Por isso, a concepção do instituto da privacidade, concebido modernamente também como o direito de controle sobre as informações pessoais que se pretende divulgar, bem como de seu destinatário, já mostra sinais de insuficiência.

Frente a uma sociedade em estágio tecnológico tão desenvolvido, a autonomia do indivíduo merece uma tutela mais eficaz. A informação torna-se valiosa moeda para as empresas privadas e os entes públicos, que, com ferramentas próprias, passam a catalogá-las e utilizá-las a seu favor, em prejuízo dos indivíduos.

Nesse cenário é que percebe gritante a necessidade de proteção da intimidade do indivíduo, que deverá ser resguardado não só no controle da divulgação de suas informações, mas igualmente na sua produção e seu conhecimento, que frequentemente fugirá de seu interesse. O direito de não saber mostra-se, assim, não um capricho do homem, mas uma necessidade para a construção de seu patrimônio informativo e o livre desenvolvimento de sua individualidade.

A proposta, porém, é capaz de gerar resistência nos pensadores mais conservadores, para os quais tal tutela poderia violar, a um só tempo, outros direitos do próprio indivíduo e, ainda, direitos da coletividade, igualmente garantidos pela Constituição. O presente trabalho, contudo, enfrentando os principais argumentos contrapostos pelos tribunais pátrios ao analisarem a matéria, buscou demonstrar a fragilidade de tais fundamentos.

Demonstrou-se, ademais, a necessidade da submissão de tais interesses à técnica ponderativa, por meio da qual as normas deverão ser valoradas a partir das características que definem cada caso concreto.

Visando, por fim, ao exame do caso prático, foram propostos os parâmetros (i) da declaração de vontade; (ii) da possibilidade de reversão do fato objeto da divulgação; e (iii) do alcance da medida, além do exame do comportamento a ser adotado pelo indivíduo que possa, potencialmente, violar tal direito para não ensejar sua violação, os quais auxiliarão na forma de fixação da fronteira de convivência entre o direito de não saber e os direitos fundamentais colidentes, permitindo-se identificar em que medida sua tutela será legítima.


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Notas

  1. STJ, REsp nº. 1.195.995/SP, 3ª T., Rel. Min. Mussami Uyeda, julg. 22.3.2011, voto vencido da Min. Nancy Andrighi.

  2. “Tomando-se em conta que o conceito de intimidade abriga o direito à quietude, à paz interior, à solidão e ao isolamento da curiosidade pública, de tudo o quanto possa interessar à pessoa, impedindo que se desnude sua vida particular, parece não haver dúvida de que a liberdade antecede à intimidade, posto que seu conteúdo e abrangência são permitidos e acentuados através de uma escolha desobstruída daquilo que deve ou não deve fazer parte do círculo restrito do “eu”, incomunicando-se-o com terceiros. Isso exige a prévia e desimpedida liberdade” (Gilberto Haddad Jabur, Liberdade de pensamento e direito à vida privada: conflito entre direitos da personalidade, São Paulo: RT, 2000, p. 260).

  3. “O direito de não saber pertence inseparavelmente à liberdade existencial” (Hans Jonas) em Stefano Rodotà, A vida na sociedade de vigilância. Privacidade hoje, Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 109.

  4. “Do mesmo modo que o direito à propriedade permitia repelir o esbulho dos bens materiais, a privacidade permitia afastar a ingerência alheia sobre a vida íntima de cada um. Note-se, nessa concepção inicial, a proteção à privacidade assumia uma conotação puramente negativa, porque, assim como a propriedade, impunha aos outros tão somente um dever geral de abstenção (não-fazer)” (Anderson Schreiber, Direitos da personalidade, São Paulo: Atlas, 2013, p. 135).

  5. Danilo Doneda, Da Privacidade à Proteção de Dados Pessoais, Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 1.

  6. Anderson Schreiber, Direitos da personalidade, São Paulo: Atlas, 2013, p. 137.

  7. Danilo Doneda, Da Privacidade à Proteção de Dados Pessoais, Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 2.

  8. Anderson Schreiber, Direitos da personalidade, São Paulo: Atlas, 2013, p. 156.

  9. A expressão foi empregada pela primeira vez, em caráter oficial, em 1993, pelo então presidente da Comissão Européia, Jacques Delors, no Conselho da Europa de Copenhague, para definir o crescente uso da tecnologia da informação com o objetivo de reforçar a economia, melhorar a qualidade dos serviços públicos e, ato contínuo, de vida dos cidadãos (Garcia Marques e Lourenço Martins, Direito da Informática, Coimbra: Almedina, 2000, p. 43 apud Tatiana Malta Vieira, O Direito à Privacidade na Sociedade de Informação: efetividade desse direito fundamental diante dos avanços da tecnologia da informação, 2007, Dissetação (Mestrado no Curso De Pós Graduação stricto sensu em Direito, Estado e Sociedade: Políticas Públicas e Democracia), Universidade de Brasília, p. 156.

  10. Maria Celina Bodin de Moraes, Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro, Renovar: 2010, p. 29.

  11. STJ, REsp nº. 1.195.995/SP, 3ª T., Rel. Min. Mussami Uyeda, julg. 22.3.2011, voto vencido da Min. Nancy Andrighi.

  12. Em abordagem crítica a essa decisão, confira-se: Caitlin Mulholland, O direito de não saber como decorrência do direito à intimidade, Rio de Janeiro: RTDC Revista Trimestral de Direito Civil V. 12, N. 46, Abril/Junho de 2011, p. 179-200.

  13. STJ, REsp nº. 1.195.995/SP, 3ª T., Rel. Min. Mussami Uyeda, julg. 22.3.2011, voto vencedor do Min. Massami Uyeda.

  14. STJ, REsp nº. 1.195.995/SP, 3ª T., Rel. Min. Mussami Uyeda, julg. 22.3.2011, voto vencedor do Min. Massami Uyeda.

  15. “A ênfase desloca-se assim para o “direito de não saber”, que assume particular relevância não apenas no que diz respeito às modalidades de construção da esfera privada, mas pode tornar-se um fator esencial para a livre construção da personalidade” (Stefano Rodotà, A vida na sociedade da vigilância: a privacidade hoje, Renovar, 2008, p. 108).

  16. Caitlin Mulholland, O direito de não saber como decorrência do direito à intimidade, Comentário ao REsp 1.195.995, Civilistica.com, Rio de Janeiro, a. 1, n. 1, jul.-set. /2012, p.3, cit.

  17. A vida na sociedade da vigilância: a privacidade hoje, Renovar, 2008, p. 109.

  18. O direito à autodeterminação informativa e os novos desafios gerados pelo direito à liberdade e à segurança no pós 11 de Setembro, p.10-11, in. www.buscalegis.ufsc.br/revistas/files/anexos/5544-5536-1-PB.pdf, acesso em 16.6.2016.

  19. Danilo Doneda, Da Privacidade à Proteção de Dados Pessoais, Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 156.

  20. Danilo Doneda, Da Privacidade à Proteção de Dados Pessoais, Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 156.

  21. Em contrapartida, diz-se que os dados anônimos são aqueles que se referem a pessoas que não podem ser identificadas – como, por exemplo, os dados estatísticos. Com efeito, um dado anônimo, ainda que referente a uma pessoa, não permite a identificação de seu titular.

  22. Da Privacidade à Proteção de Dados Pessoais, Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 160-161.

  23. Danilo Doneda, Da Privacidade à Proteção de Dados Pessoais, Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 163.

  24. STJ, REsp nº. 1.195.995/SP, 3ª T., Rel. Min. Mussami Uyeda, julg. 22.3.2011, voto vencedor do Min. Massami Uyeda.

  25. Chiara Antonia Spadaccini Teffé e Juliana da Silva Ribeiro Gomes Chediek, A aplicação da metodologia do direito civil constitucional na realidade jurídica brasileira: os exemplos do direito de não saber e das famílias simultâneas in Direito Civil Constitucional, coordenação Anderson Schreiber e Carlos Nelson Konder, São Paulo: Atlas, 2016, p. 209.

  26. A aplicação da metodologia do direito civil constitucional na realidade jurídica brasileira: os exemplos do direito de não saber e das famílias simultâneas in Direito Civil Constitucional, coordenação Anderson Schreiber e Carlos Nelson Konder, São Paulo: Atlas, 2016, p. 206. No mesmo sentido, assenta a doutrina especializada em bioética: “O indivíduo deve ter controle total sobre a sua intimidade genética, e a garantia de que suas informações genéticas não serão expostas contra sua vontade, seja por um particular ou por um ente público. O indivíduo também terá o direito de escolha entre “saber” ou “não saber” suas informações genéticas. Por se tratar de direito personalíssimo, caberá exclusivamente ao sujeito a escolha do que fazer com o seu patrimônio genético (...)”.

  27. Stefano Rodotà, A vida na sociedade de vigilância. Privacidade hoje, Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 108-109.

  28. “Seria limitativo individuar o conteúdo do chamado direito à saúde no respeito à integridade física; e, isso, por duas razões. A saúde refere-se também àquela psíquica, já que a pessoa é uma indissolúvel unidade psicofísica; a saúde não é apenas aspecto estático e individual, mas pode ser relacionada ao são e livre desenvolvimento da pessoa e, como tal, constitui um todo com esta última” (Pietro Perlingieri, Perfis do Direito Civil: Introdução ao direito civil constitucional, Trad. Maria Cristina De Cicco, Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 158). Confira-se ainda: “A divulgação de resultado positivo de exame de sangue Anti-HIV não representa para toda e qualquer pessoa um dado cujo conhecimento seja necessário ou adequado. Em inúmeras hipóteses, ter o conhecimento da real situação sobre o estado de saúde é um ônus por demais pesado que pode levar a situações de angústia extrema. A afirmação de que ao ter conhecimento de sua verdadeira situação de saúde a pessoa estará apta a procurar tratamento médico é falaciosa” Caitlin Mulholland, O direito de não saber como decorrência do direito à intimidade, Comentário ao REsp 1.195.995, Civilistica.com, Rio de Janeiro, a. 1, n. 1, jul.-set. /2012p. 9.

  29. Anderson Schreiber, Direitos da personalidade, São Paulo: Atlas, 2013, p. 52.

  30. José Afonso da. Silva, Curso de direito constitucional positivo, Rio de Janeiro: Malheiros Editores, 2008, p. 198.

  31. “Dessa feita, num momento em que o Poder Público, por meio de exaustivas campanhas de saúde, incentiva a feitura do exame anti HIV como uma das principais formas de prevenção e controle da disseminação do vírus HIV, tem-se que o comando emanado desta augusta Corte, de repercussão e abrangência nacional, no sentido de que o cidadão teria o direito subjetivo de não saber que é soropositivo, configuraria indevida sobreposição de um direito individual (que, em si não se sustenta, tal como demonstrado) sobre o interesse público, o que, data maxima venia, não se afigura escorreito” (STJ, REsp nº. 1.195.995/SP, 3ª T., Rel. Min. Mussami Uyeda, julg. 22.3.2011, voto vencedor do Min. Massami Uyeda).

  32. Maria Celina Bodin de Morais, Danos à pessoa humana – uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 112.

  33. Chiara Antonia Spadaccini Teffé e Juliana da Silva Ribeiro Gomes Chediek, A aplicação da metodologia do direito civil constitucional na realidade jurídica brasileira: os exemplos do direito de não saber e das famílias simultâneas in Direito Civil Constitucional, coordenação Anderson Schreiber e Carlos Nelson Konder, São Paulo: Atlas, 2016, p. 208.

  34. Caitlin Mulholland, O direito de não saber como decorrência do direito à intimidade, Comentário ao REsp 1.195.995, Civilistica.com, Rio de Janeiro, a. 1, n. 1, jul.-set. /2012, p. 9.

  35. Lucas Miotto Lopes, Eu Não Quero Saber! Uma Defesa do Direito de Não Saber Como Independente do Direito à Privacidade, Direito, Estado e Sociedade 0 Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC-Rio, n. 45n jul. /dez. 2014, p. 94.

  36. STJ, REsp nº. 1.195.995/SP, 3ª T., Rel. Min. Mussami Uyeda, julg. 22.3.2011, voto vencedor do Min. Massami Uyeda.

  37. Para Anderson Schreiber, “A proibição de alegação da própria torpeza permanece (...) como um princípio geral de direito de uso recorrente. Assemelha-se ao nemo potest venire contra factum proprium pelo fato de ambos impedirem uma conduta posterior, em virtude de uma conduta inicial adotada pelo mesno centro de interesses. E há também no alegar a própria torpeza um certo grau de contradição, razão pela qual renomados autores já cogitaram residir no nemo potest venire contra factum proprium o fundamento desta proibição. Nada obstante, a diferença entre as duas figuras é clara na medida em que o que essencialmente se reprime com o nemo auditur propriam turpitudinem allegans é a torpeza, o dolo, a malícia de quem praticou a conduta inicial. E o nemo potest venire contra factum proprium, ao contrário, independe da intenção subjetiva do agente; bastando-lhe a contradição objetiva entre os dois comportamentos” (A proibiçao de comportamento contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium, Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 174-175). No mesmo sentido, confira-se a análise de Judith Martins-Costa: “Nem sempre a conduta contraditória importará no chamamento ao venire contra factum proprium non potest. Quando a ênfase residir não propriamente na confiança despertada legitimamente no alter, mas no elemento subjetivo da conduta do agente (malícia, torpeza, dolo), estará configurada situação ensejadora do brocardo nemo auditur propriam turpitudinem allegans. (...) Dito de outro modo, conquanto em ambos os casos se vede a deslealdade, as situações abrangidas pelo adágio turpitudinem suam allegans non auditur proprium são ainda mais graves do que aquelas acolhidas sob o venire contra factum proprium, pois marcadas pela presença do elemento subjetivo. A questão é, no mais das vezes, de determinar qual o bem jurídico mais fortemente tutelado. Se é a proteção da confiança, o venire há de ser chamado. Se é a rejeição da malícia, invoca-se o turpitudinem suam allegans non auditur” (A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação, São Paulo: Marcial Pons, 2015, p. 628).

  38. Nessa direção, confira-se o sítio eletrônico da Associação Brasileira dos Portadores de Hepatite – ABPH, segundo o qual, “[a]s hepatites têm tratamento e grande chance de cura” (www.hepatite.org.br/hepatite/tratamento-e-cura – acesso em 19.6.2016), ao tempo que, para a aids não há ainda cura conhecida, consistindo seu tratamento na admistração medicamentosa de antiretrovirais, que têm como objetivo impedir a multiplicação do vírus no organismo, evitando o enfraquecimento do sistema imunológico (www.aids.gov.br/pagina/quais_sao_os_antiretrovirais – acesso em 19.6.2016).

  39. STJ, REsp nº. 1.195.995/SP, 3ª T., Rel. Min. Mussami Uyeda, julg. 22.3.2011, voto vencedor do Min. Massami Uyeda.

  40. STJ, REsp nº. 1.195.995/SP, 3ª T., Rel. Min. Mussami Uyeda, julg. 22.3.2011, voto-vista do Min. Sidnei Beneti.

  41. STJ, REsp nº. 1.195.995/SP, 3ª T., Rel. Min. Mussami Uyeda, julg. 22.3.2011, voto vencido da Min. Nancy Andrighi.

  42. Caitlin Mulholland, O direito de não saber como decorrência do direito à intimidade, Comentário ao REsp 1.195.995, Civilistica.com, Rio de Janeiro, a. 1, n. 1, jul.-set. /2012, p. 9.

  43. Chiara Antonia Spadaccini Teffé e Juliana da Silva Ribeiro Gomes Chediek, A aplicação da metodologia do direito civil constitucional na realidade jurídica brasileira: os exemplos do direito de não saber e das famílias simultâneas in Direito Civil Constitucional, coordenação Anderson Schreiber e Carlos Nelson Konder, São Paulo: Atlas, 2016, p. 207.

  44. De acordo com Alexy, as regras consistem em mandamentos definitivos, que só podem ser cumpridos ou não, na sua integralidade, de modo que, se forem válidas, devem ser cumpridas exatamente como exigido. Em contrapartida, os princípios poderiam ser definidos como mandamentos de otimização, uma vez que consistirem em normas que ordenam a realização de algo na maior medida possível, observando, contudo, as possibilidades jurídicas e reais existentes – sendo as possibilidades jurídicas determinadas pelos princípios e regras em oposição (Teoria dos Direitos Fundamentais, São Paulo: Malheiros, 2008, p. 90).

  45. Nas palavras de Maria Celina Bodin de Moraes: “no momento de solucionar a colisão entre os princípios, e de maneira geral no momento de atribuir seu significado em vista de sua frequente indeterminação e abstração, fica clara a obsolescência do método tradicional da subsunção. Revela-se, assim, a ampla esfera de liberdade que o juiz possui para realizar este procedimento, normalmente referido por ponderação” (Na Medida da Pessoa Humana: estudos de direito civil-constitucional, Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 66). Ademais, confiram-se as palavras de Luís Roberto Barroso para traduzir a distinção existente entre ponderação e o método de subsunção: “a subsunção é um quadro geométrico, com três cores distintas e nítidas. A ponderação é uma pintura moderna, com inúmeras cores sobrepostas, algumas se destacando mais do que outras, mas formando uma unidade estética” (Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo, São Paulo: Saraiva, 2012, p. 358).

  46. Ana Paula de Barcellos, Ponderação, Racionalidade e Atividade Jurisdicional, Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 92.

  47. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo, São Paulo: Saraiva, 2012, p. 352-359.

  48. Conforme aduz Ana Paula de Barcellos: “O objetivo final do processo de ponderação será sempre alcançar a concordância prática dos enunciados em tensão, isto é, sua harmonização recíproca de modo que nenhum deles tenha sua incidência totalmente excluída na hipótese” (...) “Esta diretriz busca proteger o núcleo dos direitos fundamentais, uma vez que esses direitos não podem ser restringidos (pelo legislador ou pelo Juiz) a ponto de tornarem invólucros vazios de conteúdo, sobretudo em sistemas onde desfrutem do status de cláusulas pétreas” (Ponderação, Racionalidade e Atividade Jurisdicional, Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 133-140). Nas palavras de Luís Roberto Barroso: “Como não existe um critério abstrato que imponha a supremacia de um [valor constitucional] sobre o outro, deve-se, à vista do caso concreto, fazer concessões recíprocas, de modo a produzir um resultado socialmente desejável, sacrificando o mínimo de cada um dos princípios ou direitos fundamentais em oposição (Liberdade de expressão, Direito à informação e Banimento da Publicidade de Cigarro, in Temas de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 265).

  49. Graeme Laurie, In defence of ignorance: genetic information and the right not to know, European Journal of Health Law 1999;6, p. 127-128 apud Roberto Andorno, The right not to know: an autonomy based approach, Journal of Medical Ethics, 2004, vol. 30, p. 437-438.

  50. Graeme Laurie, et al. Genetic databases. Assessing the benefits and the impact on human & patient rights. Report for Consultation to the WHO. Geneva, WHO, May 2001, Recommendation 16 apud Roberto Andorno, The right not to know: an autonomy based approach, Journal of Medical Ethics, 2004, vol. 30, p. 438.

  51. O direito de não saber como decorrência do direito à intimidade, Comentário ao REsp 1.195.995, Civilistica.com, Rio de Janeiro, a. 1, n. 1, jul.-set./2012, p. 8

  52. Nesse sentido: “Defende-se que não se pode presumir que o paciente não deseja saber que possui determinada doença, ainda mais quando esta for infectocontagiosa. Esta presunção apenas pareceria razoável caso ele tivesse expressamente manifestado esta vontade” (Chiara Antonia Spadaccini Teffé e Juliana da Silva Ribeiro Gomes Chediek, ao analisar o REsp 1.195.995/SP sob a ótica do voto divergente, que restou vencedor no recurso, em artigo intitulado A aplicação da metodologia do direito civil constitucional na realidade jurídica brasileira: os exemplos do direito de não saber e das famílias simultâneas in Direito Civil Constitucional, coordenação Anderson Schreiber e Carlos Nelson Konder, São Paulo: Atlas, 2016, p. 209).

  53. Roberto Andorno, The right not to know: an autonomy based approach, Journal of Medical Ethics, 2004, vol. 30, p. 438.

  54. José Roberto Goldim, Relação Profissional-Paciente Idoso. Disponível em: www.ufrgs.br/ bioetica/relido.htm, acesso em 22.6.2016. Destaque-se porém que se, por um lado, a doutrina biomédica reconhece o direito do paciente de nao ser informado caso manifeste esse desejo, por outro, invoca o suporte da família em tais hipóteses, discussão que traria ao presente trabalho um novo enfoque. Na mesma direção: “Como expressão da sua dignidade, o paciente teria o direito de não querer saber determinado resultado ou prognóstico de doença, caso manifestasse expressamente essa vontade (Chiara Antonia Spadaccini Teffé e Juliana da Silva Ribeiro Gomes Chediek, analisando o REsp 1.195.995/SP sob a ótica do voto vencido, proferido pela Min. Nancy Andrighi, que restou vencedor no recurso, em artigo intitulado A aplicação da metodologia do direito civil constitucional na realidade jurídica brasileira: os exemplos do direito de não saber e das famílias simultâneas in Direito Civil Constitucional, coordenação Anderson Schreiber e Carlos Nelson Konder, São Paulo: Atlas, 2016, p. 209).

  55. Caitlin Mulholland, O direito de não saber como decorrência do direito à intimidade, Rio de Janeiro: RTDC Revista Trimestral de Direito Civil V. 12, N. 46, Abril/Junho de 2011, p. 179-200.

  56. Diz-se que a análise da possibilidade de reversão do fato objeto da divulgação è afeta à matéria de saúde e genética pois tal circunstância, em assuntos distintos, não consistirá de circunstância com relevância. Assim, ainda na hipótese de que, informado de uma traição da qual não requereu fosse cientificado, seja possível que o marido ou a esposa requeira a separação ou divórcio de seu cônjuge, tal fato não implicará superação dos transtornos que o conhecimento daquele fato lhe causou. Assim, a despeito de sua reversibilidade, não se afigura verdadeiro o argumento de que a violação à privacidade do indivíduo será merecedora de tutela.

  57. “Como se sabe, não há direito absoluto. Embora a tutela ao direito à intimidade esteja assegurada no plano constitucional, ela está sujeita aos limites traçados pela própria Lei Fundamental; os direitos subjetivos ali previstos devem e precisam conviver em plena harmonia. Num eventual confronto entre tais direitos subjetivos, incumbe aplicar-se a técnica da ponderação e, por conseguinte, o princípio da proporcionalidade: vale dizer, prevalecerá o direito de maior peso diante das circunstâncias do caso e que atenda mais adequadamente a vontade do legislador constituinte”. (Raphael de Barros Monteiro Filho et al., Comentários ao Novo Código Civil, vol. I, Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 241).

  58. Maria Celina Bodin de Morais, Danos à pessoa humana – uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 107.

  59. TEPEDINO, Gustavo et. al., Código Civil interpretado conforme a Constituição da República, vol. I, Rio de Janeiro: Renovar, 2014, p. 62.

  60. Conforme Andorno: “The person’s will to remain ignorant of diagnostic and prognostic information should be respected, except when third parties are exposed to a risk of transmissionThe right not to know: an autonomy based approach, Journal of Medical Ethics, 2004, vol. 30, p. 436).

  61. “O problema do abuso diz respeito, propriamente, à comparação de interesses que estejam em conflito, seja no desenvolvimento de uma determinada relação jurídica, seja na regulamentação dos interesses privados, quando a prevalência há de ser, então, atribuída ao interesse consentâneo com as finalidades sociais da norma de tutela em detrimento daquele que se manifesta despido de legítima motivação. (...) O abuso ocorre, pois, especialmente, quando o exercício do direito, antissocial, compromete o gozo dos direitos de terceiros, gerando objetiva desproporção, do ponto de vista valorativo, entre a utilidade do exercício do direito por parte de seu titular e as consequências que outros têm que suportar” (Recusa à realização do exame de DNA na investigação da paternidade e direitos da personalidade in Revista Forense, Julho-Agosto-Setembro/1998, vol. 343, Rio de Janeiro: Forense, 1998, págs. 156-168, disponível em: www.gontijo-familia.adv.br/2008/artigos_pdf/Maria_Celina_Bodin_de_Moraes/RecusaDNA.pdf, acesso em 19.6.2016).

  62. Nas palavras de Stefano Rodotà: “Existem, contudo, casos nos quais não há qualquer risco de discriminação mas está presente um risco de danos a outros sujeitos, aos quais não tenham sido comunicadoas informações como aquelas mencionadas anteriormente. Pense-se no parceiro que ignora a infecção pelo HIV da pessoa com a qual tem relações sexuais; ou nos casos em que o conhecimento dos dados genéticos pode ser determinante para a decisão de conceber um filho com uma pessoa cujas características genéticas possam causar riscos à criança. (....) Em conclusão, pode dizer-se que, nesses casos, se atenua o poder do indivíduo de exercer um controle exclusivo sobre a circulação das informações a ele relacionadas” (A vida na sociedade da vigilância: a privacidade hoje, Renovar, 2008, p. 107-108).



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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SAMPAIO, Rodrigo Silva Moreira. A construção do patrimônio informativo do indivíduo no “direito de não saber”. Propostas de parâmetros de ponderação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7411, 16 out. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/105898. Acesso em: 16 maio 2024.