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A renúncia das vítimas e os fatores de risco à violência doméstica.

Da construção à aplicação do art. 16 da Lei Maria da Penha

A renúncia das vítimas e os fatores de risco à violência doméstica. Da construção à aplicação do art. 16 da Lei Maria da Penha

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Para desvendar sua essência, lembramos as discussões legislativas travadas na elaboração do art. 16 da Lei Maria da Penha.

1. Introdução

Dispõe o art. 16 da Lei nº 11.340/06 (Lei Maria da Penha):

Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia [01] à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.

A disposição causou perplexidade e diferentes interpretações entre juristas. Alguns alegaram que o dispositivo é inócuo, pois o juiz não pode negar a renúncia feita pela vítima. Outros afirmaram que o legislador instituiu a necessidade da ratificação judicial de toda representação feita na polícia, sugerindo que o Ministério Público não pode agir enquanto a vítima não confirmar sua vontade na presença do juiz. Outros interpretaram, ainda, que a norma manteve o crime de lesão corporal qualificado pela violência doméstica (art. 129, § 9º, CP) no rol das infrações de ação penal pública condicionada à representação. Alegou-se até que o artigo estabeleceu injustificada "super-proteção à mulher".

Para entender o verdadeiro sentido e alcance do artigo referido, porém, é preciso analisar os motivos que o geraram e o fim colimado pelo legislador. Concluiremos que a norma possibilita o controle social da violência, nos crimes de ação penal condicionada à representação, prescindindo até do processo e da sanção penal. Se bem interpretado e aplicado, o dispositivo poderá ser um dos mais eficazes e inovadores mecanismos de enfrentamento da violência doméstica.

Para ajudar a desvendar sua essência, relembramos adiante, grosso modo, as discussões legislativas travadas na elaboração do art. 16 bem como a colaboração do Ministério Público nesse processo.

Na seqüência, analisamos as decisões judiciais mais recentes e polêmicas e o papel dos operadores do direito.

Por fim, no item 7, apresentamos alguns fatores de risco a serem observados na audiência referida. [02]


2.Crítica ao sistema dos juizados especiais criminais (JECrim)

Durante as discussões do anteprojeto da Lei Maria da Penha, promovidas pelo Grupo de Trabalho Interministerial instituído pelo Presidente da República [03], muito se argumentou que o sistema dos juizados especiais criminais (JECrim) não atendia aos interesses das vítimas. A possibilidade de encerrar os casos com medidas alternativas, como o pagamento de cestas básicas, era a principal crítica.

Apresentamos ao Grupo, no entanto, estatísticas comprovando que sequer eram aplicadas medidas alternativas na maioria dos casos. Os fatos eram simplesmente arquivados sob alegação de renúncia das vítimas, que raramente tinham acesso ao juiz, ao promotor de justiça ou ao advogado patrocinado pelo Estado, em desrespeito à própria Lei 9099/95.

Com efeito, a Lei 9.099/95 previa a realização de uma audiência preliminar entre as partes, ocasião em que as vítimas seriam orientadas por conciliadores e advogados para tentar a composição civil.

Frustrado o acordo, as vitimas deveriam, na presença do juiz e do promotor de justiça, e ainda orientadas por advogado, representar contra o acusado ou renunciar (retratar) à representação oferecida na polícia, nos termos do art. 72 e seguintes da Lei 9.099/95.

Porém, a praxe judicial instituiu procedimento diferente. No afã de enxugar pautas de audiência e desafogar o Poder Judiciário, incentivou-se a renúncia prévia das vítimas a qualquer custo, sem que fosse realizada a audiência preliminar prevista em Lei.

Assim, procedimentos eram arquivados pela Justiça com base em eventual renúncia feita nas delegacias de polícia, muitas vezes incentivada pelos próprios policiais.

Como se não bastasse, buscou-se a renúncia prévia das vítimas através de contato cartorário feito por telefone ou por oficial de justiça.

Vencidas todas essas etapas, sem que as vítimas tivessem renunciado, marcava-se uma audiência apenas com conciliadores, orientados a romper a resistência delas de todas as formas possíveis.

Para arrematar, se as vítimas não comparecessem à audiência conciliatória, tratava a Justiça de arquivar os procedimentos, alegando a ocorrência da "renúncia tácita", instituto popularizado nos JECrim. Buscando interpretar a razão do art. 16 da Lei Maria da Penha, o Promotor de Justiça Carioca, Marcelo Lessa Bastos [04], com fina argúcia, observou: "sucede que os Juizados resolveram criar uma extravagante obrigação para a vítima, que era – ainda hoje, infelizmente, é assim, pasme-se! – comparecer à audiência preliminar, nada obstante a ação penal ser pública. E, quando a mesma faltava, resolveram, por puro pragmatismo, eliminar mais um procedimento e, ao arrepio de qualquer norma jurídica, seja do Código de Processo Penal, seja da própria Lei n 9.099/95 que abrigasse tal entendimento, considerar que estaria ocorrendo a retratação tácita do direito de representação, que denominaram desinteligentemente de "renúncia". [05]

Por fim, caso as vítimas comparecessem ao juizado e insistissem no prosseguimento do processo, o juiz e o promotor de justiça sugeriam a renúncia, sob pena de fixação de cestas básicas, utilizadas como moeda de troca da dignidade das pessoas violentadas.

Carmem Hein de Campos [06] constatou com propriedade essa deficiência, ao analisar a atuação da Justiça gaúcha: "Os juízes insistem para que a vítima renuncie à representação e aceite o compromisso verbal, expresso na frase "certo compromisso", feito pelo agressor de não mais praticar a conduta violenta, que sequer constará do termo de renúncia. Então, na prática, o grande número de renúncias é originado pelo comportamento do próprio magistrado. Tal postura fere o direito da vítima de ver aplicada a pena. A preocupação dos juízes parece ser diminuir o número de processos, que é bastante elevado. Pouco importa se a vítima sai satisfeita com a solução dada ao caso. É por isso que nos Juizados, a conciliação, com renúncia do direito de representação, é a regra. A seguir, o depoimento de um promotor de justiça de um juizado do Fórum Central onde se tem disso a confirmação: a impressão que eu tenho é que mais de 90% dos casos são conciliados ou transacionados".

No Distrito Federal, quase todos os processos eram arquivados sem qualquer audiência entre as partes ou sequer análise dos casos. Alguns JECrim realizavam audiências em apenas 3% dos casos, conforme pesquisa realizada pelo Ministério Público e Universidade Católica, com base em processos de 2003 a 2006.

Percebe-se que, em raríssimos casos, o juiz e o promotor de justiça conheciam e analisavam os fatos. A regra era o arquivamento de mais de 90% de todas as ocorrências policiais, sem qualquer providência estatal.

Assim, fragilizadas pela violência e dependentes dos agressores, econômica e/ou emocionalmente, as vítimas não encontravam o apoio que foram buscar na Justiça. Intimidadas e sentindo-se culpadas, acabavam por acatar a sedução judicial para desistir do caso, sem receber qualquer orientação sobre seus direitos mais basilares.

Esse sistema omisso e tolerante foi conseqüência da própria deficiência da Lei 9.099, que considerou os danos causados às mulheres, idosos e crianças, como de menor ofensividade ao bem jurídico vida e integridade física, psíquica e moral. Estabeleceu, ainda, uma superproteção aos agressores, como anotado pela Promotora de Justiça Stela Valéria: "a proposta despenalizante dos juizados especiais criminais é positiva na perspectiva do autor do fato e negativa na perspectiva da vítima de violência doméstica. Significa que esta lei é imprópria para o julgamento da violência conjugal" [07].


3. Apresentação da proposta do MPDFT que gerou o art. 16

Comungando da preocupação do Grupo de Trabalho Interministerial, apresentamos aos seus Coordenadores o projeto de atuação implementado pelo Ministério Público do Distrito Federal (2º Promotoria de Justiça Especial da Cidade de Samambaia), instituído no ano de 2003, com proposta de atuação diferenciada no que diz respeito à violência doméstica. Segue um resumo do trabalho:

Atuando perante a 1º Vara Especial Criminal de Samambaia/DF, com apoio do Juiz Omar Dantas, buscou o Ministério Público acabar com os arquivamentos de procedimentos sem qualquer análise ou atuação estatal.

Para tanto, abolimos as renúncias extrajudiciais e instituímos que eventual desistência somente seria aceita após acompanhamento multidisciplinar, oferecido às vítimas e aos acusados, sempre que presentes fatores de risco ou vulnerabilidades.

Passou a Promotoria de Justiça, assim, a analisar criteriosamente todos os casos, promovendo a realização de audiências com os envolvidos, para se inteirar da situação familiar e da gravidade dos fatos (pesquisa feita pelo Ministério Público e Universidade Católica de Brasília, em processos dos anos 2003 a 2006, comprovou que o 1º Juizado de Samambaia promoveu audiência com juiz e promotor em mais de 45% dos casos, nos casos de arquivamento por renúncia expressa, enquanto a média de outros juizados foi de 3% a 10% - nestes, a maioria foi arquivada por renúncia na delegacia ou por contato telefônico feito pelos cartórios judiciais).

Após orientação das partes em audiência, caso a vítima confirmasse a representação, aplicávamos medidas alternativas (transação penal ou suspensão condicional do processo) de acompanhamento multidisciplinar e/ou prestação de serviços à comunidade. Jamais aplicamos prestação de cestas básicas, que foram abolidas pela 2º Promotoria Especial no ano de 2003 [08].

Em casos de renúncia à representação, por qualquer meio, promovia a Promotoria, em audiência judicial, o encaminhamento das partes a acompanhamento multidisciplinar, por no mínimo 6 (seis) meses, período em que a vítima seria orientada dos seus direitos e o acusado poderia refletir sobre a violência. Este é o diferencial do projeto, uma vez que a "falta de interesse" das vítimas no processo não era empecilho para as audiências e os encaminhamentos multidisciplinares, desde que fossem identificados fatores de risco (foram feitos encaminhamentos em cerca de 15% dos casos em que as vítimas pediram arquivamento).

Encerrado o prazo acima referido, a vítima era ouvida em outra audiência com o Promotor, ocasião em que, finalmente, manifestaria sobre a representação ou renúncia. Optamos por realizar este ato na Promotoria, uma vez que a representação ou renúncia é dirigida ao Ministério Público, titular da ação penal.

Evitava-se, assim, que a mulher manifestasse sua vontade quando estivesse psicologicamente fragilizada, pela dor da agressão ou pelo temor à represália, e que encontrasse o apoio, a orientação e a segurança que foi buscar na Justiça. O próprio agressor, demonstrou a experiência, foi beneficiário de tal procedimento, uma vez que teve momentos de reflexão com profissionais especializados, melhorando seu relacionamento pessoal, familiar e social.

Na prática, retiramos das vítimas o pesado fardo de decidir solitariamente sobre a representação, compartilhando tal ônus com o Ministério Público, órgão que assumiu o compromisso de dispensar provisoriamente a representação, para possibilitar um monitoramento da família pelo tempo necessário ao término da violência.

As vítimas sentiam-se mais confortadas e os agressores mais conformados quando percebiam que a "vontade" de intervir na questão era do Ministério Público, e não delas. Dessa forma, poupava-se as vítimas, evitando-se que os agressores as "responsabilizasse" pela atuação judicial, inclusive mediante novas violências e intimidações.

Somente após o período da suspensão e a análise dos subsídios eventualmente fornecidos pela equipe multidisciplinar, o Ministério Público colhia a manifestação da vítima, ouvida em separado na Promotoria. Não sendo caso de prorrogação da suspensão [09], seria promovido o arquivamento, se a vítima confirmasse a renúncia à representação.

Com isso, abolimos as audiências relâmpago - em que as vítimas eram praticamente forçadas a renunciar ao procedimento em tempo recorde -, garantindo-se seu acesso direto ao promotor de justiça, sem intermediários.

O procedimento não alterou a natureza da ação penal condicionada; apenas a mitigou, possibilitando a aplicação preliminar de medidas multidisciplinares, mediante o adiamento do momento em que a vítima iria se manifestar.

3.1. Embasamento constitucional do projeto do MPDFT

Poder-se-ia perguntar se esse procedimento ofende o princípio da legalidade. Afinal, a renúncia da vítima não deve significar o arquivamento do caso sem qualquer atuação estatal?

Definitivamente, não. Tudo foi feito em obediência à Constituição e ao princípio maior da dignidade da pessoa humana.

Com efeito, a Constituição da República determina que o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações (art. 226, § 8º).

E o Brasil, juntamente com os demais Estados americanos, firmaram a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (conhecida como Convenção de Belém do Pará) [10], que determina ao Estado brasileiro:

"art. 7

b) Agir com o devido zelo para prevenir, investigar e punir a violência contra a mulher;

e) Tornar todas as medidas adequadas, inclusive legislativas, para modificar ou abolir leis e regulamentos vigentes ou modificar práticas jurídicas ou consuetudinárias que respaldem a persistência e a tolerância da violência contra a mulher". [11]

Qualquer ato estatal que represente tolerância à violência, portanto, será flagrantemente inconstitucional.

Nesse contexto, o princípio que regula os crimes de ação penal pública condicionada deve ser interpretado de acordo com normas superiores, mormente nos complexos e delicados casos envolvendo violência familiar. O direito à intimidade e a autonomia de vontade das vítimas deve ser analisado sob o critério da proporcionalidade e razoabilidade, sob pena de sobrepujar o direito à vida e à integridade corporal. Nesse esforço interpretativo, deverá sobressair o direito que melhor garanta a dignidade humana.

De fato, a dignidade é valor imperativo e fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, inc. III, CF). Representa, juntamente com os direitos fundamentais, a própria razão de ser da Constituição Federal, já que o Estado é apenas meio para promoção e defesa do ser humano [12].

A dignidade implica garantias negativas e positivas: deve o Estado se abster de ofender a liberdade e a integridade física do indivíduo, e impedir sua violação (prestação negativa), além de promover a dignidade humana, criando condições para o pleno desenvolvimento da personalidade (prestação positiva). Com propriedade, lembra o Juiz gaúcho SARLET [13]: "o princípio da dignidade da pessoa humana impõe ao Estado, além do dever de respeito e proteção, a obrigação de promover as condições que viabilizem e removam toda sorte de obstáculos que estejam a impedir às pessoas de viverem com dignidade".

Por isso, não pode o Judiciário simplesmente arquivar procedimentos, sem qualquer atuação eficaz, quando a dignidade do ser humano estiver em perigo. E o perigo se apresenta sempre que alguns dos direitos humanos fundamentais forem violados ou estiverem na iminência de sê-los. A vida, a integridade física e psíquica, a honra, por exemplo, são direitos fundamentais que a violência doméstica sempre ofende.


4. A construção do art. 16 e sua aprovação legislativa

Apresentado o projeto de Samambaia/MPDFT ao Grupo de Trabalho Interministerial, elaboramos sugestão escrita, à pedido da Gerência de Projetos da Secretaria Especial de Políticas das Mulheres (SPM) [14], que foi encaminhada diretamente à Ministra titular, Nilcéia Freire.

Com a proposta, sugerimos um capítulo exclusivo para tratar apenas da representação criminal, que ficou assim redigido:

"Capítulo II

Da Representação Criminal

Art. 03. Nos crimes de ação penal pública condicionada à representação, a manifestação de vontade da mulher deverá ser colhida verbalmente, em audiência preliminar, com a presença do Juiz e do Membro do Ministério Público, garantindo-se sua oitiva reservada, se necessário.

§ 1º Havendo indícios de que a mulher esteja sendo coagida ou ameaçada, ou que sua manifestação de vontade, por qualquer motivo, não seja livre, o Poder Judiciário, de ofício, ou a requerimento do Ministério Público, poderá suspender a audiência pelo período de 6 (seis) meses, prorrogável por igual período, encaminhando a vítima a atendimento psicossocial, a ser realizado por equipe interprofissional.

§ 2º Se a infração penal ocorreu no âmbito familiar, o atendimento previsto no parágrafo anterior deverá envolver o acusado e a família da vítima, sempre que a gravidade da situação indicar.

§ 3º A providência prevista nos parágrafos anteriores será obrigatória sempre que houver:

I – procedimentos criminais anteriores, mesmo que arquivados, envolvendo as mesmas partes, ou quando o acusado descumprir o compromisso referido no parágrafo único do artigo seguinte;

II – indícios de que crianças ou adolescentes estejam psicológica ou fisicamente vulneráveis.

§ 4º Terminado o prazo de seis meses, e à vista do laudo psicossocial realizado, não sendo caso de prorrogação do atendimento especializado, a vítima e o acusado deverão comparecer em audiência, ocasião em que, não sendo oferecida representação, o Ministério Público oficiará pelo arquivamento do feito.

2º Promotoria de Justiça de Samambaia,

Brasília/DF, 8 de julho de 2004"

Após discussões no Grupo de Trabalho [15], com a participação de diversas entidades feministas [16] e profissionais da área jurídica, a proposta restou diluída nos artigos 32, parágrafos 4º a 6º, e 34, do Anteprojeto Presidencial. Optou o Grupo por não indicar expressamente os fatores de risco que havíamos sugerido, deixando a critério pessoal do juiz o "atendimento multidisciplinar, quando necessário". Manteve o Grupo a tentativa de conciliação, porém, nos moldes dos juizados especiais criminais.

Após o trâmite no Congresso Nacional, a proposta original gerou o art. 16 da Lei Maria da Penha, ora comentado. [17]

Infelizmente, não foi mantido um capítulo específico para tratar da representação. A questão, por sua importância, merecia um esclarecimento exaustivo em capítulo próprio. A crise do sistema de enfrentamento da violência doméstica está ligada diretamente à exigência de "autorização" das vítimas, condição alegada no mundo inteiro como pretexto para garantir a impunidade. O estabelecimento de princípios e normas específicas sobre a matéria é a diferença entre enfrentar a violência ou tolerá-la.

É certo que a Senadora Lúcia Vânia, Relatora do projeto no Senado, tentou acrescentar novamente os parágrafos da nossa proposta original, esclarecendo a necessidade de intervenção obrigatória nos fatores de risco expressamente sugeridos. A urgência da tramitação do projeto, porém, não permitiu o acréscimo, pois implicaria nova votação pela Câmara dos Deputados [18].

A essência e finalidade da audiência, porém, está perfeitamente delineada no corpo da Lei Maria da Penha, conforme veremos adiante.


5. Aplicando o art. 16

Demarcados os antecedentes, os motivos e a fonte do artigo referido, compete aos operadores do direito extrair a lógica jurídica da nova disposição, através da interpretação sistemática do arcabouço jurídico pertinente. O ponto de partida desse esforço interpretativo é, obrigatoriamente, o art. 4º da Lei Maria da Penha, que estabelece:

Art. 4 Na interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar.

A referida norma "representa a alma da Lei, sua essência básica, da qual não poderá o Ministério Público(ou o Poder Judiciário) se afastarem", como já sustentamos em outra oportunidade [19].

Assim, qualquer interpretação da Lei Maria da Penha que se descure de um aprofundado e incansável estudo sobre a situação das vítimas de violência doméstica, não merece credibilidade.

Infelizmente, esse erro tem seduzido alguns operadores do direito que, sem qualquer critério, consideraram a Lei Maria da Penha inconstitucional, alegando que ela ofende o princípio da igualdade entre homens e mulheres. Tal argumento, simplista ao extremo, apresenta forte déficit teórico, pois não considera a doutrina das ações afirmativas que, há mais de quatro décadas, busca transformar a igualdade ficcional preconizada nas Constituições modernas em igualdade real, através de discriminações positivas que diminuam as assimetrias sociais [20]. Ademais, desconsidera, ou desconhece, os estudos sobre discriminação de gênero e tradição patriarcal, que naturalizaram a violência familiar. Na verdade, esse tipo de argumento tem por base exatamente o entendimento tradicional - arraigado na sociedade brasileira -, que não admite poder ser um marido investigado ou punido apenas por espancar a "própria" mulher.

É conveniente frisar, ainda, que não devem ser analisadas as "condições" das mulheres em si. Estas são completamente iguais aos homens, não apenas por determinação legal, mas por direito natural. Não são mais aceitáveis investigações sobre características "biológicas", que muitas vezes são usadas apenas para discriminar seres humanos, estabelecendo-se hierarquias sociais.

Por isso, a Lei diz, expressamente, que são relevantes as "condições", a situação, das mulheres submetidas à violência. A "condição peculiar", termo utilizado, "se refere à vulnerabilidade feminina à violência doméstica, agravada pelos conceitos esteriotipados sobre o papel do homem e da mulher, que julgam normal o uso da violência para o controle social, familiar e sexual" [21]. Assim, não devem ser analisadas as pessoas, mas os fatos!

É importante fazer esse alerta para evitar argumentos que defendam a visão de que as mulheres foram consideradas incapazes ou inferiores pela nova Lei. Esta não é, em absoluto, a questão. Busca-se exatamente o oposto, ou seja, enfrentar a tradição patriarcal, que, ao rotular as mulheres de forma discriminatória, instituiu a violência para manter a autoridade "natural" do "chefe do lar", exercida pelo gênero masculino.

Lembre-se, por oportuno, que "a violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos", conforme preconiza o art. 6º da Lei, fato que impõe uma interpretação segundo os instrumentos internacionais que regulam a matéria.

Fixadas estas premissas, passemos à análise da audiência referida no art. 16.

5.1. O papel do juiz, do promotor e do defensor: a suspensão da audiência

Evidentemente, o juiz e o promotor de justiça não devem simplesmente ouvir a vítima, colher sua assinatura e arquivar o procedimento. Não seria necessária a participação destas autoridades para isso. É preciso considerar as "condições peculiares" (art. 4º), a serem analisadas em cada caso concreto.

Primeiramente, deverão ser cotejadas as declarações da vítima, prestadas em juízo, com as investigações feitas pela polícia, analisando-se todas as nuances da violência, os motivos do pedido de renúncia e a situação familiar das partes.

Nesse esforço, é possível produzir provas para averiguar se a manifestação da vítima é livre, como bem observa o Juiz Fernando Antônio Tavernard Lima [22]. Com ele concorda o Juiz Sérgio Ricardo de Souza, que, no entanto, adverte, com propriedade, que as investigações devem ser requisitadas pelo Ministério Público [23]. Esta observação é pertinente para evitar que o julgador busque a persecução penal, atuação incompatível num sistema acusatório (sobre a questão, vide item 6.2).

É possível, antes mesmo da realização da audiência judicial, encaminhar os envolvidos a uma entrevista prévia com a equipe multidisciplinar, que poderá fazer uma análise completa das questões levantadas. É vedado, porém, que a equipe substitua o juiz ou o promotor. A equipe é auxiliar, mas a vítima deve ter acesso direto, e sem intermediários, àquelas autoridades. É preciso evitar a praxe abusiva dos juizados especiais, que terceirizou o poder jurisdicional e ministerial.

Caso os fatos não apresentem qualquer gravidade ou perigo especial, deverá a Justiça arquivar o procedimento, acolhendo a renúncia da vítima.

Porém, se detectado algum fator de risco, competirá ao Ministério Público sugerir à vítima e/ou ao agressor algum tipo de acompanhamento multidisciplinar prévio, mediante a suspensão da audiência por prazo razoável. O período poderá ser estipulado em conjunto com a equipe multidisciplinar, para atender as particularidades e possibilidades de cada local (no projeto de Samambaia, utilizamos o período de seis meses, por sugestão dos profissionais especializados).

A Defensoria Pública, ou o advogado da vítima, poderá requerer a suspensão da audiência para o atendimento multidisciplinar prévio da ofendida.

Tal providência, que é a própria razão de ser do art. 16, está perfeitamente regulamentada na Lei Maria da Penha. Vejamos:

5.2. A atuação prévia da equipe multidisciplinar e sua finalidade

De fato, a Lei prevê a atuação emergencial do Estado, para garantir a integridade das vítimas e prevenir a violência, através da instituição das medidas protetivas de urgência.

Dentre as medidas previstas, consta o encaminhamento da "ofendida e seus dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento" (art. 23, inc. I). Esse encaminhamento poderá ser feito a qualquer momento, antes, durante ou após o processo.

O Ministério Público, na exata dicção do art. 19, tem atribuição para requerer medidas protetivas. Este dispositivo visa garantir proteção integral às vítimas que, por coação ou qualquer outro motivo grave (fatores de risco), estiverem na iminência de sofrer alguma violência (deverá o promotor de justiça analisar as "condições peculiares" das pessoas em situação de violência, para averiguar a real necessidade de intervenção pontual em prol da família e de cada um de seus integrantes).

E o Título V da Lei, com clareza desconcertante, explica a função da equipe multidisciplinar: "fornecer subsídios por escrito ao juiz, ao Ministério Público e à Defensoria Pública, mediante laudos ou verbalmente em audiência, e desenvolver trabalhos de orientação, encaminhamento, prevenção e outras medidas, voltados para a ofendida, o agressor e os familiares, com especial atenção às crianças e aos adolescentes" (art. 30).

Por fim, com redundância eloqüente, sugere a Lei: "quando a complexidade do caso exigir avaliação mais aprofundada, o juiz poderá determinar a manifestação de profissional especializado, mediante a indicação da equipe de atendimento multidisciplinar" (art. 31).

Portanto, a investigação psicossocial, além de sua fundamental importância para a atuação judicial, servirá de orientação e esclarecimento às partes, mostrando-lhes que a violência não é modo de solução de conflitos e que jamais poderá ser tolerada.

A atuação da equipe não visa um tratamento "terapêutico" das vítimas, muito utilizado no passado para "ensinar" as mulheres a obedecer a seus maridos [24]. A intervenção busca uma reflexão crítica dos papéis sociais impostos a homens e mulheres, sob uma perspectiva de gênero, abordando a naturalização social da violência.

Advirta-se, ainda, que a finalidade da intervenção não é incentivar a vítima a representar. Busca-se, mediante orientação especializada, que ela encontre a melhor maneira de reparar o dano resultante da violência e impedir sua repetição. A própria intervenção multidisciplinar pode ser suficiente para diminuir a relação de dominação e a violência familiar.

Essa é, sem dúvida, uma forma extrapenal de se fazer o controle social das condutas indesejáveis, nos casos que o legislador faculta às vítimas a representação. Atende tanto às expectativas dos criminalistas partidários da intervenção penal mínima, que buscam soluções alternativas para o controle social, quanto do movimento feminista, que sugere o empoderamento das mulheres, através de orientação especializada.

5.3. A manifestação final do Ministério Público

Por fim, encerrado o acompanhamento psicossocial, será designada outra audiência, desta feita para que a vítima possa se manifestar definitivamente sobre a renúncia. Se insistir no encerramento do caso, deverá a Justiça arquivar o processo.

Nada impede que esta última audiência seja efetuada pelo promotor de justiça, sem a presença do juiz (nos moldes do projeto de Samambaia), já que é o Ministério Público, na qualidade de titular exclusivo da ação penal pública, o destinatário natural da renúncia. Em qualquer hipótese, porém, a vítima deverá estar acompanhada de advogado, ou defensor público.

5.4. A presença do acusado e seu defensor na audiência

A Lei não prevê a presença do acusado na audiência do art. 16.

O Juiz Guilherme de Souza Nucci [25] observa, porém, que os acusados devem ser intimados em prol da ampla defesa, porque "o ato de retratação da representação pode implicar na extinção da punibilidade, logo, de interesse do agente do delito".

De forma contrária, opina a Desembargadora gaúcha, Maria Berenice Dias [26]: "não se justifica a intimação do agressor ou de seu defensor, não se visualizando qualquer ofensa ao princípio da ampla defesa. Aliás, de todo descabida a presença quer do agressor, quer de seu advogado que, se estiverem nas dependências do fórum, não poderá participar da solenidade".

Ambos tem sua parcela de razão. Vítima e agressor devem ser intimados, porém não devem participar em conjunto na audiência.

Primeiramente, a vítima deve ser ouvida em separado, na presença apenas de seu advogado, do juiz e do promotor de justiça. O acusado ou seu advogado não participará do referido ato, uma vez que eventual representação ou renúncia será dirigida apenas ao titular da ação penal, possibilitando ou não o início do processo. Essa fase é de interesse exclusivo do Estado e das vítimas.

Isso se dá porque, em nosso sistema processual penal, têm as vítimas o direito de representar pessoal e diretamente às autoridades, sem interferência de terceiros, muito menos dos próprios acusados. Essa é a inteligência do art. 39 e parágrafos, do CPP.

Assim, a ausência do agressor não ofende seu direito de defesa, porque não lhe compete "fiscalizar" a manifestação da vítima, nem mesmo através de defensor.

Num segundo momento, logo após a audiência com a vítima, o acusado terá ciência da decisão, que lhe será comunicada pelo juiz e pelo promotor de justiça, os quais devem "velar para que sua presença não sirva de instrumento de constrangimento para a ofendida", como advertem os Promotores paulistas Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto [27]. Caso a vítima tenha representado, desistindo da renúncia, será o agressor advertido das conseqüências legais de qualquer ato de represália contra ela. A admoestação deverá ser feita também se os autos forem arquivados em decorrência da renúncia da vítima.

Quando, porém, a vítima insistir na renúncia e estiver presente algum fator de risco, será o acusado comunicado da suspensão da audiência, na forma do item anterior, e proposta, se necessária, sua participação em algum programa multidisciplinar. Neste caso, se o acusado não estiver presente, deverá ser intimado para outra audiência, sem prejuízo do encaminhamento imediato da vítima ao atendimento especializado.

O contato do acusado com o juiz e o promotor, em todos os casos, é importante para evitar o regresso ao sistema dos JECrim, em que os acusados se recusavam a atender intimações e ainda determinavam às vítimas que "retirassem a queixa". Somente elas eram expostas publicamente, na polícia e, mais tarde, na Justiça, enquanto os agressores, que sequer prestavam esclarecimentos, eram premiados com o arquivamento judicial. Essa sempre foi a lógica do sistema patriarcal: preservar o "chefe de família" a todo custo e incentivar a vítima a renunciar, para não expô-lo. A Lei Maria da Penha não mais admite essa anomalia.

5.5. Quando realizar a audiência do artigo 16

Apenas quando as vítimas manifestarem, voluntariamente, interesse em renunciar, é que o juiz irá designar a audiência. Tal manifestação deve ser feita antes do recebimento da denúncia.

É defeso à Justiça contatar a vítima através de oficial de justiça, por correspondência ou telefone ou por qualquer outro meio, sem a manifestação dela, espontânea e prévia, no sentido de renunciar. Quem deve procurar as autoridades para o encerramento do caso é a vítima, e não o Estado. Este deve apenas cumprir seu dever legal.

Portanto, se a vítima, por livre e espontânea vontade, quiser procurar a polícia, o Ministério Público ou a Justiça para encerrar o caso, deverá fazê-lo antes do recebimento da denúncia. Depois do início do processo, a responsabilidade estatal será exclusiva para apurar a notícia criminosa e aplicar a lei penal como de direito.

Alguns promotores e juizes estão promovendo audiências em todos os casos, mesmo sem o pedido das vítimas, para questioná-las sobre seu desejo de renunciar ao processo (?!). Com esse procedimento equivocado, confundem as disposições da Lei nº 9.099/95 com as da Lei nº 11.340/06, que são diametralmente opostas e incompatíveis entre si.

Isso se dá porque a Lei n° 9099/95 (JECrim), conforme visto, previa a realização de uma audiência preliminar na qual, após a tentativa de conciliação e composição de danos, as vítimas exerceriam seu direito de "ratificar a representação". Na ausência das vítimas, restavam os procedimentos arquivados por "renúncia tácita", instituto popularizado nos juizados especiais criminais, que, como sabemos, passaram a arquivar liminarmente mais de 90% de todas as causas relacionadas à violência doméstica e familiar.

Tal disposição, porém, não mais se aplica às causas de violência doméstica contra a mulher, em razão da expressa derrogação da Lei 9099/95, operada pelo art. 41 da Lei 11340/06.

Além de tudo, o art. 16 ora comentado, tem disposição frontalmente contrária à da Lei derrogada, com a finalidade clara de abolir a renúncia extrajudicial e a renúncia tácita.

A diferença de tratamento é patente. Enquanto para a Lei n° 9099/95, que visava evitar o máximo possível o processo criminal, a vítima devia comparecer em juízo para ratificar a representação, no novo sistema de proteção integral às vítimas, instituído pela Lei nº 11.340/06, é a renúncia à representação que deve ser ratificada em Juízo.

Sobre o assunto, opina Maria Berenice Dias [28]:

"de todo descabido que o magistrado, antes de receber a denúncia, intime a vítima para que ela se manifeste sobre o eventual desejo de desistir da representação apresentada na polícia. Tal providência, além de não estar prevista na lei, retardaria em muito o início da ação penal e desconstruiria a nova sistemática que veio exatamente para não permitir que a vítima sinta-se pressionada a abrir mão do direito de processar o seu agressor, como ocorria nos juizados especiais".

O Tribunal de Justiça do Distrito Federal tem repudiado as audiências sem requerimento das vítimas. Nas palavras cristalinas do Desembargador Mário Machado:

"Ementa Reclamação. Lei nº 11.343/2006. Violência doméstica e familiar contra a mulher. Decisão do juiz pela qual, oferecida a denúncia pelo ministério público, determina o seu arquivamento em pasta própria, em cartório, aguardando-se o inquérito policial. Inexistência de recurso próprio. Cabimento da reclamação. Procedência do pedido.

Admissível a reclamação intentada com base no artigo 184, I, do Regimento Interno, inexistindo contra a decisão recurso específico.

Com o artigo 16 da lei nº 11.343/2006 colima-se fiscalize o juiz a renúncia, na verdade a retratação da representação da ofendida para evitar que ela ocorra por ingerência e força do agressor. Nada mais. Em nenhum momento, cogitou-se de impor realização de audiência para a ofendida ratificar a representação ou confirmar o seu interesse no prosseguimento. Somente havendo pedido expresso da ofendida ou evidência da sua intenção de retratar-se, e desde que antes do recebimento da denúncia, é que designará o juiz audiência para, ouvido o ministério público, admitir, se o caso, a retratação da representação.

No caso, oferecida pelo ministério público a denúncia, a qual não depende de conclusão do procedimento policial, e não havendo qualquer evidência de ocasional desejo de a vítima retratar-se da representação que ofertou, impunha-se ao magistrado dispor acerca da denúncia, como de direito, e não determinar o seu arquivamento em pasta própria, em cartório, aguardando-se o inquérito policial.

Oferecida a denúncia, deve ser logo apreciada na forma da lei. O arquivamento, enquanto se aguarda o inquérito, não encontra amparo legal e pode ser prejudicial às partes, principalmente à vítima. Sem dúvida louvável o propósito de se dar tempo para eventual reconciliação das partes. Mas não é regra que ela ocorra e qualquer demora na implementação das providências e do procedimento insertos na nova lei pode resultar em graves e até mesmo irreparáveis prejuízos. A lei nº 11.340/2006 buscou precisamente mecanismos mais ágeis de proteção à mulher e a decisão reclamada isso contraria.

Pedido julgado procedente, proclamada desnecessária prévia audiência da vítima para ratificar a representação ou confirmar o seu interesse no prosseguimento, determinada a imediata apreciação da denúncia oferecida, como de direito, prosseguindo-se na forma da lei. Decisão Prover. Unânime". [29]

5.5.1 Os crimes passíveis de renúncia

O artigo 16 é expresso: a renúncia somente pode ocorrer nos crimes de ação penal pública condicionada à representação. Estes são facilmente identificáveis na legislação penal, mediante a expressão: "(...) somente se procede mediante representação" (art. 100, § 1°, do Código Penal). Os demais são de ação penal pública incondicionada (ressalvando-se os casos de ação penal privada).

Não existem outras hipóteses. Se não houver qualquer menção legal determinando o contrário, o crime será de ação penal pública incondicionada, e não depende de representação.

O crime dependente de representação mais comumente denunciado é o de ameaça (art. 147). No entanto, poderão ocorrer alguns outros mais raros (menos registrados), como perigo de contágio venéreo (art. 130, CP), violação da correspondência (art. 151, CP), divulgação de segredo (art. 153, CP), furto de coisa comum (art. 156, CP) ou qualquer crime contra o patrimônio previsto no Titulo II do Código Penal, cometido sem violência ou grave ameaça (art. 182, incs. I, II e III, c/c art. 183, inc. I, CP) e, ainda, contra os costumes se praticado contra vítima pobre (art. 225, § 2º, CP).

Os crimes de ação penal privada podem perfeitamente justificar a audiência do art. 16, já que seu processamento depende também da vontade das vítimas. Entram nesta categoria os crimes contra a honra (arts. 138, 139 e 140, CP), contra os costumes (arts. 213, 214, 215, 216, 216-A e 218, com exceção daqueles cometidos com abuso do pátrio poder ou pelo padrasto, art. 225, § 1º, inc. II, CP), de dano simples (art. 163, caput, CP), de fraude à execução (art. 179, CP), de induzimento a erro essencial e ocultação de impedimento (art. 236, CP) e de exercício arbitrário das próprias razões, se cometido sem violência (art. 345, parágrafo único, CP).

Verifica-se, assim, que os crimes passíveis de renúncia mais comuns são caracterizados pela violência psicológica, representada, por exemplo, pelo crime de ameaça, de injúria (humilhações e desqualificações, por exemplo) ou pela contravenção penal de perturbação da tranqüilidade (perseguição, ciúmes ou controle excessivo).

A análise de tais fatos exige grande responsabilidade dos operadores do direito, mormente porque a sociedade tende a desconsiderá-los, classificando-os como "chiliques femininos". É importante ressaltar que eles podem causar maior sofrimento e dano, como depressão, baixa auto-estima e tentativa de suicídio do que agressões físicas. Nessas ocasiões, por vergonha ou por exigência do agressor, as vítimas tendem a se isolar socialmente, evitando até os parentes. As marcas não são visíveis, mas merecem a atenção respeitosa e interessada do Estado.

Chama a atenção, por fim, o fato de que nenhum crime praticado com violência física ou grave ameaça, com exceção da ameaça em sua forma simples (art. 147, CP), depende de representação.

Assim, são de ação penal incondicionada os crimes de lesão qualificados pela violência doméstica (art. 129, § 9°, CP), de dano qualificado pela violência, grave ameaça ou com emprego de substância inflamável ou explosiva (art. 163, parágrafo único, incs. I e II, CP), contra o patrimônio, praticado com violência ou grave ameaça (art. art. 183, inc. I, CP) ou, ainda, de exercício arbitrário das próprias razões, com emprego de violência (art. 345, parágrafo único, CP). Em nenhum destes casos as vítimas podem renunciar ao processo.

Essa coerência legislativa e jurídica é mais um argumento que suplanta os que ainda insistem em exigir representação das mulheres vítimas de espancamentos. Por isso, o art. 16 jamais pode ser interpretado como se tivesse mantido a representação para a lesão corporal.

5.5.2. O papel da Polícia

Uma vez registrada a ocorrência policial pela ofendida, deverá a polícia exercer sua obrigação investigatória, sem fazer qualquer questionamento sobre seu interesse nas investigações ou no processo.

A representação não se submete a formas ou modelos. A manifestação inequívoca da vítima no sentido de processar o acusado é suficiente. O simples registro da ocorrência policial, requerido pela vítima, é uma representação, como está pacífico na jurisprudência.

Assim, se a vítima procurar a delegacia para denunciar o crime, é defeso à polícia perguntar se ela quer representar. A própria presença dela na delegacia já caracteriza uma representação. Ora, quem procura a polícia busca o quê? É preciso acabar de uma vez por todas com os "incentivos" para que as vítimas desistam do caso.

Caso a vítima, voluntariamente, procurar a polícia para renunciar, deverá o delegado encaminhá-la ao Ministério Público ou ao Poder Judiciário, que providenciará a audiência prevista no art. 16. As investigações policiais somente serão paralisadas por autorização do juiz ou do promotor de justiça.


6. Pode o juiz ou o promotor de justiça recusar a renúncia da vítima?

Não. Não é possível ao juiz ou ao promotor de justiça recusar a renúncia da vítima. Na falta de autorização dela, não pode o promotor denunciar e nem o juiz aceitar o início do processo criminal, por ausência de condição de procedibilidade para o exercício da ação penal (art. 43, inc. III, CPP).

De fato, no sistema processual criminal brasileiro, a representação é faculdade exclusiva da vítima. Somente ela pode autorizar o Estado a agir. Sem seu consentimento, não haverá processo. O Estado não pode agir por ela. Se assim fosse, qual o sentido de exigir autorização das vítimas para o processamento de algumas infrações penais?

A discriminação legal das ações penais é coerente com esse sistema, uma vez que a regra é a atuação obrigatória do Ministério Público, independentemente de autorização de eventuais vítimas. Num Estado Democrático de Direito, a garantia dos direitos humanos e a repressão à criminalidade é encargo estatal, quando presente o "(...) interesse público em ver devidamente apurada uma infração penal, que certamente não afeta somente a pessoa vitimada, mas toda a comunidade, interessada em que não se deixe impune o autor", na certeira lição do Promotor de Justiça Rogério Schietti Machado Cruz.

A exigência da representação é reservada a excepcionalíssimas infrações - geralmente de pouca gravidade ou em que o dano ao bem jurídico depende de constatação subjetiva -, cuja repercussão processual (e pública) deva atender à conveniência exclusiva da vítima. É o caso dos crimes cometidos com a palavra, como os de ameaça ou aqueles contra a honra, em que algumas vítimas podem sentir-se ameaçadas ou humilhadas.

6.1. A tentativa de permitir a recusa e o repúdio expresso do legislador

É certo que na tramitação do projeto de lei adicionou-se um parágrafo único ao então art. 17 (atual art. 16), possibilitando ao juiz rejeitar a renúncia das vítimas.

Tal disposição, entretanto, restou repudiada pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Federal, após intervenção do Deputado Federal Antônio Carlos Biscaia [30], assim fundamentada:

"O parágrafo único do artigo 17 subverte a autonomia de vontade que caracteriza as ações penais condicionadas à representação; a possibilidade de o juiz rejeitar a renúncia torna inócuo o instituto, equiparando-o, em termos práticos, à ação pública incondicionada. Propomos a supressão do referido parágrafo único."

Perfeitamente procedente, como visto, o argumento que suprimiu o referido dispositivo, demonstrando o repúdio expresso do legislador brasileiro à desconsideração da vontade das vítimas nos crimes que dependem de representação.

6.2. O princípio acusatório e o Ministério Público como destinatário natural e exclusivo do eventual poder de recusar a renúncia: o sistema argentino

Mesmo que a proposta discutida no parlamento brasileiro tivesse vingado, mantendo-se a possibilidade de rejeição da renúncia, jamais se poderia atribuir tal função ao juiz.

Com efeito, no sistema acusatório constitucional vigente no país, o Poder Judiciário deve processar e julgar os fatos criminosos somente quando provocado, sendo-lhe vedado agir de ofício. A titularidade da ação penal pública é exclusividade do Ministério Público (art. 129, I, CF). A representação, ou sua renúncia, é dirigida ao promotor de justiça, satisfazendo ou não a condição de procedibilidade para propor a abertura do processo. A necessidade dessa divisão de funções num Estado Democrático de Direito é sintetizada na velha máxima medieval: "Quem tem o juiz como acusador precisa de Deus como defensor".

Nesse contexto, somente ao Ministério Público poderia ser conferido o eventual poder de recusar a renúncia, uma vez que tal ato implicaria, necessariamente, a instauração de um processo criminal.

Ora, se o juiz pudesse recusar a renúncia, estaria praticamente propondo uma ação penal contra o acusado. Para tanto, teria que se imiscuir na prova investigatória, apontando porque o agressor merece ser processado (periculosidade, intimidação à vítima, gravidade dos fatos, etc). Tal esforço judicial - típico do sistema inquisitivo medieval -, confunde-se com o próprio mérito da imputação. Na prática, a atuação judicial significaria a inevitável condenação, uma vez que o espírito do julgador estaria contaminado com a vontade persecutória, incompatível com a isenção e imparcialidade judicial garantida ao cidadão. [31]

Assim, somente ao titular exclusivo da ação penal pública caberia dispensar a representação, ou seja, recusar a renúncia da vítima. Esse entendimento não fere a imparcialidade ministerial, ínsita ao Ministério Público num Estado Democrático de Direito [32], porque a investigação e persecução criminal é da sua essência. Sua missão diferencia-se daquela do Judiciário porque, "por maior que seja o grau de independência institucional do acusador, é inerente à função acusatória a implementação da política criminal estruturada pelos poderes majoritários" [33].

Poder-se-ia, quando muito, atribuir ao juiz o poder de fiscalizar os motivos da rejeição da renúncia, encaminhando os autos ao procurador-geral de justiça quando discordasse do promotor. A palavra final seria do chefe do Ministério Público, por aplicação analógica do art. 28 do CPP, mantendo-se a isenção do Estado-juiz.

Anote-se que o sistema da recusa, apesar de ter sido repudiado pelo legislador brasileiro, é adotado pela Argentina no caso de crime de "lesão corporal leve", que naquele país depende de representação (denominada "instancia privada"). Seu Código Penal determina que o Ministério Público (jamais o juiz) pode recusar a renúncia por questões de "segurança" ou "interesse público" [34]. Tal solução é prevista apenas para os crimes de lesão leve, cometidos ou não em violência doméstica [35].

6.3. Crítica à possibilidade de recusar a renúncia: insegurança jurídica e tolerância à violência doméstica

Procedeu bem o legislador brasileiro ao não adotar o sistema argentino, o qual permite ao Estado recusar a renúncia, pois apresenta este sérios e insuperáveis inconvenientes.

De fato, deixar a possibilidade de dispensar uma representação a critério subjetivo de agentes estatais fomentaria injustiças e desigualdades. Fatos idênticos teriam tratamentos diferenciados, dependendo do entendimento pessoal do promotor de justiça, causando inevitável insegurança jurídica.

Em matéria de direito penal, e processual penal, cujo objeto é a mais severa punição prevista no ordenamento (sanção penal), mormente a restrição da liberdade, as regras devem ser objetivas e impessoais. Os direitos e deveres, e suas exceções, devem ser taxativamente regulamentados, valendo para todos.

Não se argumente que essa posição contraria a livre aplicação da "política criminal" pelos responsáveis pela persecução penal. É sabido que a política criminal – conjunto de decisões técnico-valorativas sobre os instrumentos, regras, estratégias e objetivos do uso da coerção penal em face de condutas indesejadas [36] –, apesar de aplicada notadamente pelo legislador, deve também ser exercida por promotores e juizes. Estes, porém, na aplicação da lei penal em cada caso concreto, devem obedecer a parâmetros claros descritos no arcabouço jurídico-constitucional (igualdade, devido processo legal, impessoalidade, etc.), que versam que em um Estado Democrático de Direito, jamais se admitirá que promotores de justiça escolham, individualmente, os fatos que merecem processo e punição forçada, sem autorização das vítimas.

É sabido que o direito penal, como todo sistema de controle social, é seletivo e "escolhe" acusados e vítimas segundo critérios sociais, religiosos, raciais, de gênero, etc. Pelo Código Penal brasileiro, por exemplo, o patrimônio tem mais valor que o ser humano [37]. Nem a Lei Maria da Penha, imbuída do claro propósito de valorizar o ser humano, conseguiu alterar esse padrão, tome-se, por exemplo, que o crime de lesão praticado contra mulher teve a pena diminuída para 3 meses de prisão (antes era de 6 meses), enquanto o furto tem pena real de 1 ano (é mais vantajoso para o criminoso espancar a mulher do que furtar seu batom! [38]).

Nesse contexto, se o próprio legislador - responsável por produzir normas genéricas -, quando sujeito à pressão de grupos dominantes ou ao clamor público, adota leis "endereçadas", com muito mais razão deve ser evitada a discricionaridade na persecução penal em cada caso concreto.

Ora, toda questão jurídica levada a julgamento no país sempre resulta, para o mesmo fato, inúmeros posicionamentos divergentes. Muitos dos julgados são repetições de discursos jurídicos "eternos", fórmulas e expressões feitas, que solucionam os processos sem a necessidade de análise. Atualíssima a advertência do Advogado paulista Maurício Zanoide de Moraes: "Excluindo-se as vaidades acadêmicas e os fetichismos punitivos travestidos de técnica hermenêutica, o que se vê é uma desordem no discurso técnico dos operadores do direito criminal. Tal desordem se inicia por uma má formação técnica e se potencializa pela seletividade punitiva, uma vez que as características pessoais dos participantes do processo e das vítimas determinam uma maior ou menor eficiência na punição". [39]

Quando se trata de violência doméstica, a discricionariedade merece uma crítica mais aguda. No atual estágio de evolução da sociedade americana (das três Américas), não é recomendável facultar aos agentes estatais a escolha das violências consideradas "aceitáveis" (vide item 6.3.2). A tradição que impera entre nós ensina que a mulher violentada é culpada, até que prove o contrário. Os atos dos agressores são justificados com os argumentos mais criativos possíveis. A impunidade é a regra. A pesquisadora espanhola Patrícia Copolla, com triste razão, constata: "Uso discrecional e inadecuado del sistema de selección de casos: aquellos casos no considerados "graves" o que no exhiben daños muy notorios prima facie, son o bien desechados de entrada o bien "duermen" en los estantes de las fiscalías y terminan prescribiendo. [40]

No Brasil, a maioria absoluta dos(as) promotores(as) e juizes(as), por exemplo, ainda aceita tudo, ou quase tudo, em matéria de violação dos direitos humanos das mulheres. Atrocidades continuam sendo arquivadas, seguindo-se a tradição omissa dos JECrim. Muitos não conseguem enxergar violência em fatos "sem gravidade especial", "insignificantes" ou "socialmente toleráveis", fato evidente em decisões recentes determinando o arquivamento de casos como aquele em que marido ateou fogo na mulher (após embeber-lhe em álcool), outro em que arrancou seus dentes à socos e, ainda, outro em que a espancou até que ela desmaiasse. Frise-se que tais casos, capitulados no art. 129, § 9º, CP, sequer dependem de representação sob a regência da Lei Maria da Penha. Tristemente, porém, decidiu-se desprezar a nova política criminal instaurada pelo legislador, para garantir a impunidade dos agressores. É o império do sistema patriarcal puro, sem retoques ou maquiagens, exigindo regras claras e precisas para enfrentá-lo.

A solução da Lei Maria da Penha, portanto, é a mais justa e coerente, desde que aplicada com desassombro e coragem.

6.3.1. Tribunal recusa a renúncia da vítima e determina o desarquivamento de processo

Apreciando recurso do Ministério Público, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal entendeu que as renúncias podem ser recusadas pelo juiz. Eis a íntegra da inédita decisão:

Recurso em sentido estrito. Lesão corporal leve. Violência doméstica e familiar contra a mulher. Exegese dos artigos 16 e 41 da lei nº 11.340/2006. Necessidade de representação. Retratação da representação. Não aceitação. Provimento do recurso.

(...)

Já o artigo 16 da lei nº 11.340/2006 impõe que a "renúncia" à representação, na realidade, retratação da representação, "só será admitida perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público". O claro objetivo é que o ministério público e o juiz fiscalizem a retratação da representação, para evitar que ela ocorra por ingerência e força do agressor. Esse o ponto nodal da questão. Atentou a nova lei, precisamente, para que pode a mulher, vítima da lesão corporal, "desistir" do prosseguimento da ação contra seu marido ou companheiro, em face de coação ou violência deste. Daí a necessidade da audiência. Manifestada a retratação antes do recebimento da denúncia, deve designar o juiz audiência para, ouvido o Ministério Público, admiti-la, se o caso. Não se trata aqui de mera homologação da retratação. O objetivo da lei, dever do ministério público e do juiz, é perquirir, efetivamente, por todos os meios, a motivação do pedido da vítima. Ouvido o Ministério Público e convencido o juiz de que a retratação é espontânea, tendo por fim a efetiva reconciliação do casal, a real preservação dos laços familiares, e havendo condições a tanto favoráveis, deve admitir o pedido, pondo fim ao processo. Caso contrário, não. Na dúvida, é de recusar-se a retratação, pelo relevo que merece a proteção à vítima da violência doméstica e familiar. Reiteração da violência doméstica e familiar, maus antecedentes criminais do agressor, seriedade e gravidade das circunstâncias de que resultantes as lesões, apesar de leves, tudo isso milita contra a aceitação da retratação. Imprescindível, portanto, o exame de cada caso concreto.

No caso, é inaceitável a retratação. O relatório técnico elaborado pela promotoria de justiça da infância e da juventude informa que a situação de violência perpetrada pelo denunciado contra sua companheira e seus filhos menores ocorre desde o ano de 2004, culminando com o abrigo destes em instituição própria para crianças em estado de risco. De especial relevo a manifestação técnica de que "a genitora não consegue proteger seus filhos, estando ela mesma fragilizada e à mercê da violência do seu companheiro". Somam-se condenações criminais do denunciado, inclusive reincidências em crimes de roubos.

Nesse contexto, há de se recusar a pretendida retratação, possível em tese, mas seguramente não espontânea no caso concreto e não servindo ao restabelecimento de uma saudável convivência familiar.

Recurso provido para, cassada a decisão que aceitou a retratação, e prevalecendo o recebimento da denúncia, determinar o prosseguimento do feito, como de direito.

Decisão. Prover: unânime. [41]

No caso referido, a 2º Promotoria de Samambaia, apoiando-se em que o crime de lesão é de ação incondicionada, insurgiu-se contra a rejeição da denúncia ministerial, operada pela primeira instância. O Tribunal rechaçou o argumento ministerial, alegando que o crime imputado depende de representação, porém deu provimento ao recurso para determinar o recebimento da denúncia, sustentando que o juiz pode recusar a renúncia das vítimas.

A solução encontrada pela Corte de Justiça foi sem dúvida ousada e pioneira. Para sustentar a posição de que o crime de lesão depende de representação, buscou o julgador uma saída discricionária, ao decidir que o juiz pode escolher se processará ou não determinadas lesões.

Porém, como exposto, o fundamento utilizado não é aceitável em nosso ordenamento jurídico. Não é possível no Brasil recusar a renúncia nos crimes de ação penal condicionada à representação. Para o fato analisado, a Lei Maria da Penha estabelece a melhor solução, ou seja, o crime é de ação penal pública incondicionada. É dispensável perquirir se a ofendida quer renunciar ou se sua vontade deva ser recusada. Foi nesse sentido que fundamentou o Ministério Público em suas razões de recurso, verbis:

"Os partidários da "política do arquivamento" defendem a "autonomia de vontade" das vítimas espancadas cotidianamente.

Essa pretensa autonomia, porém, mostra-se uma falácia na prática, eis que referidas vítimas geralmente não podem medir forças com o agressor. É o que demonstram todos os estudos sociológicos e antropológicos sobre a questão. Explica SAFFIOTI:

"Fica patente que a mulher já entra no contrato de casamento em situação de inferioridade. Isto lembra Mathieu quando mostra a incapacidade das mulheres de consentir na violência contra elas praticadas pelos homens. A rigor, as mulheres não podem contratar, uma vez que não detêm o mesmo poder que os homens. É exatamente por isso, como afirma Mathieu, que, diante das ameaças de violência, as mulheres cedem, mas não consentem, pois o ato de consentir exige autonomia, sobretudo se se usar este termo no sentido que lhe empresta Jonhnson. Desta sorte, o homem já entra no contrato de casamento empoderado; e o contrato o torna ainda mais poderoso....Não há propriamente obediência, mas impossibilidade, via de regra, de medir forças com o dominador." (Heleieth I. B. SAFFIOTI, Gênero e Patriarcado: a necessidade da violência. In "Marcadas a Ferro, violência contra a mulher, uma visão multidisciplinar". Secretaria Especial de Política para as Mulheres. 2005)

Os autos comprovam essa assertiva. Maria Lúcia Alves [42], juntamente com seus filhos, passou a ser violentada pelo Apelado logo após ele ter cumprido penas por crimes de roubo.

Por isso, o d. Juízo a quo condenou o Apelado anteriormente pela prática do crime de maus tratos, conforme cópia da sentença acostada às fls. 67/74, em cuja fundamentação consta:

MARIA LÚCIA ALVES , companheira do réu, disse que no dia do fato ele chegou em casa bastante nervoso, sendo que já havia ingerido bebida alcoólica. Informou que sua filha CRISTIANE estava lavando o banheiro, quando o acusado começou a agredi-la. Esclareceu que também apanhou do réu e que era comum ele bater nas crianças" (grifado na origem)

Frise-se que o Denunciado, na mesma sentença acima referida, também foi condenado por crime de desacato, eis que proferiu diversos xingamentos contra mulheres que trabalham na escola de seus filhos, as quais haviam detectado as marcas de sua violência nas crianças.

Apesar da condenação, as agressões continuaram, levando o Juízo da Infância a retirar do casal a guarda dos filhos. O Relatório psicossocial daquele juízo, datado de 13/09/06, confirma (v. fls. 75 a 82):

Percebeu-se, durante o estudo, que a genitora não consegue proteger seus filhos, estando ela mesma fragilizada e a mercê da violência do seu companheiro. Pelo observado, a Sra. MARIA LÚCIA protege o Sr. EDSON em detrimento dos filhos. (grifado na origem)

Cumpre lembrar que a denúncia ora rejeitada narra que o acusado desferiu violentos socos em MARIA LÚCIA, arrancando-lhe alguns dentes. O Laudo de Lesão na mão do acusado comprova a violência da agressão (fls. 91/2):

relata lesão na mão após ter agredido sua esposa com um soco, na data de ontem, e atendido no HRT. Edema traumático na mão direita. (grifado na origem)

Observa-se, assim, que o terror é a tônica da relação do Denunciado com sua família, motivo que explica a necessidade da vítima tentar "retirar a queixa".

Estes autos demonstram, portanto, o quão acertada foi a solução da nova Lei 11.340/06, ao retirar o pesado fardo da representação das costas das vítimas de espancamentos domésticos. (grifado na origem)"

É certo que, apesar da fundamentação diversa utilizada pelo Tribunal, foi atingido o objetivo perseguido pelo Ministério Público de tentar restaurar a dignidade de um ser humano violentado, torturado, humilhado, rejeitado e desconsiderado pela Justiça por anos a fio. No entanto, a simples aplicação da Lei Maria da Penha, que dispensa a representação para tais casos, é mais simples e justa.

6.3. 2. "Curando" a desobediência feminina

Poder-se-ia argumentar, em socorro ao fundamento do Tribunal, que existem situações mais graves que outras. Umas mereceriam processo, outras não. É o dilema muito utilizado em matéria de violência contra a mulher, sintetizada na expressão: "há situações e situações!". Para essa corrente, é conveniente interpretar que o crime de lesão deve continuar dependendo de representação, para não processar agressões "insignificantes".

Esse argumento não convence, porque a questão é perfeitamente resolvida pelo legislador, responsável por excelência pela política criminal majoritária.

Realmente, um "simples" tapa ou empurrão, que não resulte lesão física, é tipificado como contravenção de vias de fato, que a própria Lei Maria da Penha manteve no rol das infrações de menor potencial ofensivo. Permite, assim, a aplicação de todas as medidas despenalizadoras da Lei 9099/95 (o art. 41 da Maria da Penha excluiu apenas os crimes).

Já o crime de lesão corporal qualificado pela violência doméstica (art. 129, § 9º, CP), é apenado com 3 meses a 3 anos de prisão. Bastante elástico e diferenciado, portanto, o instrumento coercitivo à disposição do juiz, hábil a permitir a perfeita individualização da pena. Esta função - maior expressão da política criminal e vinculada exclusiva e discricionariamente ao Poder Judiciário -, tem seu preceito regulamentado no art. 59 do Código Penal. Se bem utilizada, nenhuma injustiça ou desigualdade se abaterá sobre os condenados.

Quanto aos crimes que dependem de representação, como ameaça ou injúria, a intervenção multidisciplinar, razão de ser do art. 16, poderá ser a melhor alternativa quando, presentes fatores de risco, desejar a ofendida renunciar.

Percebe-se, assim, que a Lei Maria da Penha foi extremamente equilibrada ao dispensar representação aos crimes de lesão qualificados pela violência doméstica.

O que não é lícito é que os agentes estatais escolham os fatos que considerem "aceitáveis", permitindo bater dessa mas não daquela forma, com esse mas não com aquele objeto. Essa situação é impensável num Estado Democrático de Direito.

É certo que algumas culturas e sociedades, ao garantir ao homem o direito de castigar suas mulheres, estabelecem limites e "regrinhas", ensinando a melhor forma de exercer esse mister, com o fim de "curar a desobediência feminina". Alguns países, por exemplo, sugerem que o marido não tire sangue, não quebre ossos e que preserve as crianças, ou seja, espanque a mulher com a porta do quarto fechada [43].

Nesse contexto, esclarecedor o "ensinamento" do Sheikh Muhammad Kamal Mustafá: "O espancamento [da esposa] nunca deve ser em fúria cega e exagerada de modo a que se evitem danos sérios... É proibido bater-lhe nas partes sensíveis do corpo, tais como a cara, peito, abdômen e cabeça. Em vez disso, deverá bater-se-lhes nos braços e nas pernas, usando uma vara que não deve ser rígida mas fina e leve de modo a não deixar feridas, cicatrizes ou nódoas". E continua: "Da mesma forma, os golpes não devem ser fortes." [44].

Por incrível que pareça, o sistema dos JECrim no Brasil foram mais perversos. Por aqui valia (continua valendo?) tudo, como quebrar ossos, tirar sangue, arrancar os dentes, queimar. O limite era (ainda é?) a criatividade!


7. Dos fatores de risco

A 2ª Promotoria do Juizado de Samambaia elegeu pontualmente os fatores de risco, baseada na experiência ministerial e na literatura especializada, que obrigam intervenção multidisciplinar [45]. São eles:

7.1.Indícios de intimidação da ofendida;

7.2.Agressões anteriores, registradas ou noticiadas nos autos;

7.3.Periculosidade do agressor e crueldade contra animais;

7.4.Agressor possuidor de armas ou integrante da segurança pública;

7.5.Tentativa de separação e inconformismo do agressor;

7.6.Envolvimento com álcool ou drogas;

7.7.Crianças, adolescentes, idosos ou deficientes, vítimas ou presentes nos conflitos;

7.8.Gravidez da ofendida;

79. outros fatores macros.

7.1. Indícios de intimidação da ofendida para renunciar

"Se procurar a polícia, vai morrer!", "Posso ser preso, mas quando sair vou te matar!", "Se eu te matar, sua desgraçada, não vai dar em nada. Eu vou preso, mas depois eu vou ser solto. Quem vai ficar presa pelo resto da vida é você, debaixo da terra" [46]

Estas ameaças são comuns após a violência ou o registro da ocorrência policial. Muitas são consumadas, resultando novas agressões e até o assassinato.

Tais intimidações vão além da simples ofensa a um direito individual. É uma verdadeira afronta à Justiça, já que a finalidade do agressor é evitar que o promotor e o juiz tenham conhecimento de seus crimes. O ato intimidatório é dirigido ao Estado, numa tentativa de impedir sua livre atuação no combate às infrações penais. É, sem exagero, uma ameaça ao livre exercício dos Poderes estatais.

Por não tolerar esse tipo de situação, o Código de Processo Penal, por exemplo, determina a prisão preventiva quando o réu estiver intimidando vítimas ou testemunhas – para garantir da instrução criminal (art. 312) - e o Código Penal tipifica o crime de coação no curso do processo (art. 344).

Nesse contexto, e com muito mais razão, se a coação é dirigida à própria vítima, para que ela não denuncie às autoridades ou para que "retire a queixa", o Estado deve intervir contundentemente para restaurar o Estado Democrático de Direito e sua própria autoridade.

O seguinte caso ilustra a importância de "desconfiar" das renúncias das vítimas:

"Cansada de apanhar, Edileuza (nome fictício) denunciou seu marido à polícia. Na mesma noite, o agressor colocou uma peixeira embaixo do travesseiro, mandou a vítima deitar e advertiu que, caso ela não retirasse a queixa, amanheceria morta. Após uma noite em claro, "dormindo com o inimigo", não foi surpresa seu retorno à Delegacia, logo de manhã, para "retirar a queixa". Apesar da renúncia policial, o casal, intimado para audiência no Juizado, à requerimento do Ministério Público, não compareceu. Conduzidos coercitivamente, a vítima foi ouvida em separado, tendo narrado o porquê de seu medo. Interviemos imediatamente, encaminhando as partes a acompanhamento psicossocial e ao AA-Alcóolicos Anônimos. Foi o agressor advertido da gravidade de seus atos, ficando claro que foram cometidos contra o Estado e que terá sérias conseqüências se voltar a cometê-los. Ambos participaram ativamente do acompanhamento, não tendo havido notícias de repetição de violência. Resultado: o agressor não conseguiu seu intento de passar incólume por mais uma agressão doméstica. Percebeu que a coação não será suficiente para afastar a atuação ministerial e judicial doravante."

7.2. Agressões anteriores, registradas ou noticiadas nos autos

A violência doméstica raramente ocorre isoladamente. Ela se inicia com palavras duras, evolui para o tapa e acaba na pancadaria desenfreada. A maioria das vítimas leva pelo menos 8 anos para registrar a primeira ocorrência. Quando o fazem, é preciso que o Estado esteja preparado para ouvir e agir para cessar o martírio.

É bom lembrar que a violência geralmente é seguida pelo "arrependimento" do agressor, o que pode justificar a tolerância da vítima por anos seguidos. Com sua larga experiência na área, a pesquisadora Bárbara Musumeci [47] explica:

"A violência doméstica segue, muitas vezes, um ciclo composto por três fases:

1º Fase - A construção da tensão no relacionamento: Nessa fase podem ocorrer incidentes menores, agressões verbais, crises de ciúmes, ameaças, destruição de objetos, etc. Nesse período de duração indefinida, a mulher geralmente tenta acalmar seu agressor, mostrando-se dócil, prestativa, capaz de antecipar cada um de seus caprichos ou buscando sair do seu caminho. Ela acredita que pode fazer algo para impedir que a raiva dele se torne cada vez maior. Sente-se responsável pelos atos do marido ou companheiro e pensa que se fizer as coisas corretamente os incidentes podem terminar. Se ele explode, ela assume a culpa. Ela nega sua própria raiva e tenta se convencer de que "...talvez ele esteja mesmo cansado ou bebendo demais".

2º Fase – A explosão da violência – descontrole e destruição: a segunda fase é marcada por agressões agudas, quando a tensão atinge seu ponto máximo e acontecem ataques mais graves. A relação se torna inadministrável e tudo se transforma em descontrole e destruição. Algumas vezes a mulher percebe a aproximação da segunda fase e acaba provocando os incidentes violentos, por não suportar mais o medo, a raiva e a ansiedade. A experiência já lhe ensinou, por outro lado, que essa é a fase mais curta e que será seguida pela fase 3, da lua-de-mel.

3º Fase – A lua-de-mel – arrependimento do(a) agressor(a): terminado o período da violência física, o agressor demonstra remorso e medo de perder a companheira. Ele pode prometer qualquer coisa, implorar por perdão, comprar presentes para a parceira e demonstrar efusivamente sua culpa e sua paixão. Jura que jamais voltará a agir de forma violenta. Ele será novamente o homem por quem um dia ela se apaixonou."

Dessa forma, registros policiais anteriores ou a simples informação da vítima de que a violência já ocorreu anteriormente é motivo suficiente para intervenção especial, uma vez que a "lua de mel" geralmente termina quando o agressor se sente impune.

7.3. Periculosidade do agressor e crueldade contra animais

Antecedentes de crimes graves, principalmente praticados com grave ameaça ou agressão física, indicam a propensão dos agressores à violência. A agressividade demonstrada em público geralmente é dirigida também à família.

Importante considerar, também, eventual notícia de que o agressor seja violento com animais. Estatísticas demonstram que pessoas acusadas de crueldade contra animais costumam cometer violência doméstica na mesma proporção [48]. Estudos indicam que indivíduos que abusam de animais são mais controladores e usam formas mais perigosas de violência contra as parceiras [49].

Comprovam esta assertiva, os seguintes casos detectados pela Segunda Promotoria de Samambaia (citamos apenas os mais recentes), em que:

- para se vingar da esposa, marido estrangulou o animal de estimação da família, um gato, na presença dos filhos. Apurou-se, posteriormente, que tanto a esposa quanto o gato eram objeto de agressões físicas constantes, entre os anos de 2001 e 2007 (proc. nº 7070-6/07)

- jovem deu uma facada na cabeça do cachorro, que o incomodava com seus latidos. No dia 26/11/2006 queimou sua mulher no rosto com um cigarro (proc. nº 18787-2/06);

- ex-marido desferiu tiros contra um cavalo do vizinho, matando-o (05/03/2003). Anos depois, causou profunda ferida numa égua e numa vaca (15/07/2006), machucando as partes traseiras dos animais. Por fim, no dia 19/01/2007, desferiu facadas na ex-esposa e num amigo, matando-os (proc. nº 2007.04.1.000541-5).

7.4. Agressor possuidor de armas ou integrante da segurança pública

A presença de armas é um fator que pode potencializar a agressividade e a audácia dos agressores. Mesmo os mais experientes e profissionais não são imunes ao sentimento de poder que a arma proporciona.

Por isso, cautela deve sempre preceder a atuação quando há o envolvimento de profissionais da área de segurança pública ou privada (integrantes da Justiça, Ministério Público, polícias ou vigilantes). São profissões que demandam o exercício do poder, muitas vezes pela força, situação que pode influenciar negativamente a vida privada dos envolvidos.

A atividade policial, por exemplo, é muito penosa e desgastante. Policiais podem desenvolver neuroses e agressividades, que atingirão diretamente sua família. A atuação das corporações policiais para minimizar essa situação, através de treinamentos e orientações psicológicas, ainda é precária e deficiente.

Nesse contexto, havendo notícia da prática de crime no âmbito doméstico, a situação deve ser mais bem averiguada, pois o agressor pode estar se prevalecendo da situação para amedrontar a vítima e seus familiares, com conseqüências imprevisíveis.

7.5. Tentativa de separação e inconformismo do agressor

A representação ou renúncia ao processo criminal representa uma situação dramática e angustiosa para as vítimas de violência doméstica, que pode significar o aumento da violência, ou até sua própria morte.

A Organização Mundial de Saúde-OMS estima que 70% das mulheres assassinadas no mundo são vítimas de seus próprios companheiros [50]. Nos dois meses do verão de 2004, foram assassinadas 29 mulheres na França, por terem decidido se separar [51]. As estatísticas brasileiras são igualmente espantosas:

- 66,3% dos acusados de homicídio contra mulheres no Brasil são seus parceiros [52];

- No Distrito Federal, somente em duas semanas do mês de julho de 2006, foram assassinadas 7 mulheres, perfazendo uma aterradora média de um homicídio a cada dois dias [53].

Tais estatísticas comprovam que a simples representação contra o agressor pode significar a morte da mulher, a qual prefere a impunidade em troca da própria vida. Praticamente todos os casos de assassinatos no âmbito privado foram precedidos de ocorrências policiais arquivadas anteriormente nos juizados especiais, sob alegação de "falta de interesse" das vítimas.

Essas situações, não raro, geram tragédias familiares, com o assassinato da mulher, dos filhos e outros parentes, culminando com o suicídio do agressor.

Nesse contexto, a atuação estatal deve ser obrigatória, aplicando-se medidas pontuais, exigindo outro comportamento do agressor e buscando o término da violência, além de promover o acompanhamento e orientação especializada, sem a qual não promoverá o livre desenvolvimento da personalidade (e da dignidade).

7.6. Envolvimento com álcool ou drogas

O álcool é um droga psicoativa cujo uso inadequado pode ocasionar uma série de efeitos devastadores, em nível orgânico, psicológico-psiquiátrico ou social [54]. Doenças crônicas, alteração de comportamento e problemas sociais (desemprego, indigência, etc.) são apenas alguns exemplos.

Infelizmente, apesar de algumas medidas restritivas, como a proibição de propagandas em determinados horários, o álcool é uma droga lícita, muitas vezes exaltado como símbolo nacional, sempre associado, pelos meios de comunicação, a momentos de felicidade, prestígio, sucesso e aprovação social. Isso faz com que o álcool apresente, quantitativamente, mais problemas orgânicos e sociais do que as drogas ilícitas.

Em se tratando de violência doméstica, o risco se duplica porque o abuso de álcool pode gerar uma constante relação conflituosa, potencializando a violência, com conseqüências imprevisíveis. Dos problemas sociais ligados ao abuso de álcool, as questões familiares são as que mais preocupam, uma vez que atinge toda a família, indistintamente, causando separação, traumas, perturbação do desenvolvimento de crianças e conflitos violentos

Não causa surpresa, portanto, que cerca de 70% dos atos de violência noticiados na polícia, tratem de violência doméstica ou não, ocorram sob a influência de álcool e que a maioria das violências físicas cometidas pelos filhos contra os pais idosos está associada a alcoolismo (deles próprios ou dos pais idosos), segundo a pesquisadora Maria Cecília de Souza Minayo [55].

Isso não significa que o usuário de álcool ou o alcóolico sejam por natureza violentos, nem que irão obrigatoriamente agredir alguém. Mas a pessoa violenta, quando embriagada, tende a demonstrar sua agressividade. Significa que não é o álcool que gera a violência, mas a predisposição de seu usuário, o qual geralmente é violento, mesmo sem sua ingestão.

Nas audiências, porém, os agressores alegam: "Eu bati porque tinha bebido, mas não me lembro de nada!". As vítimas também tentam justificar as agressões, com dizeres do tipo: "Ele é uma ótima pessoa, mas quando bebe, perde o controle!".

Apesar destas justificativas, na maioria dos casos, o abuso de álcool é constante, e a violência também, demonstrando que não é o álcool o vilão, mas a vontade do próprio agressor em continuar violentando a vítima, utilizando o álcool como desculpa. Tanto que todos os agressores afirmam que nunca agrediram os patrões, amigos ou terceiros sob a influência de álcool (nas audiências advertimos que, com muito mais razão, não devem agredir pessoas com quem têm relações afetivas, pois sabem muito bem o que estão fazendo e que a bebida não é justificativa aceitável para a violência!).

Outro fator importante é que muitos tentam fugir de problemas emocionais, familiares ou profissionais com o uso de álcool. Tudo é motivo para "encher a cara", evitando-se encarar a realidade. Tal atitude pode gerar, a médio prazo, dependência e violência.

Assim, sempre que a violência é precedida do uso de álcool ou outra substância, sejam os agressores alcoólicos, dependentes de drogas, ou não, devem ser encaminhados aos Alcoólicos Anônimos ou Narcóticos Anônimos, sem prejuízo de outra intervenção multidisciplinar simultânea (Grupo de Homens Envolvidos com Violência Doméstica, por exemplo).

A medida visa alertar os agressores da gravidade de seus atos e da possibilidade de ficarem gravemente doentes, quando ainda não forem dependentes. Quanto aos alcoólicos ou dependentes, objetiva estabelecer um primeiro contato com aquelas instituições, reconhecidas como um dos melhores caminhos para o controle do vício.

Observe-se que o comparecimento é obrigatório. Apesar disso, a abordagem deve ser feita de maneira amigável, visando o convencimento do acerto da medida. O alerta de que o alcoólico, segundo especialistas, passa por perdas progressivas - geralmente na seguinte ordem: emprego, amigos, família, saúde, liberdade, vida – tem forte aceitação, eis que muitos já sofreram, ou estão prestes a sofrer, umas das perdas referidas.

É necessário, portanto, conhecer a problemática do álcool. Um exemplo que ilustra a assertiva é o de determinado agressor que compareceu ao Fórum completamente embriagado. Remarcada a audiência para outra data, compareceu sóbrio, mas tremia sem parar. Sequer conseguia assinar o Termo de Audiência. A Advogada sugeriu que ele estava com medo de ser preso. Errado! Ele, na verdade sofria de delirium tremens, síndrome da abstinência do álcool.

Os resultados dos encaminhamentos foram positivos. Muitos dos que ofereceram resistência inicial, alegando não serem alcoólicos ou dependentes, continuaram a freqüentar o AA, mesmo depois do prazo estabelecido judicialmente. Outros diminuíram o uso de álcool ou drogas, reduzindo consideravelmente a violência. Vale citar esse exemplo:

Em audiência realizada na Promotoria, a vítima Nair Pinheiro (nome fictício), ouvida em separado, declarou: "em 17 anos de casamento, os últimos 6 meses foram os melhores de minha vida!" O próprio marido, ouvido em seguida, apresentou melhor aparência, reconhecendo que a vida familiar estava mais afetuosa.

Exageros à parte, uma coisa é certa: pela primeira vez, em 17 anos de violência conjugal, um órgão estatal exigiu mudança de postura e controle da bebida. Sentiu-se o agressor exposto e, por que não?, com vergonha de ter agredido uma mulher, percebendo que os fatos, doravante, não ficariam mais encobertos no âmbito familiar, ou engavetados nos juizados! Poderíamos simplesmente ter arquivado mais um processo, sem qualquer atuação, já que a vítima já tinha renunciado. O Projeto de Samambaia, porém, não permitiu a omissão.

7.7. Crianças, adolescentes, idosos ou pessoas deficientes, vítimas ou presentes nos conflitos

As crianças, os adolescentes, os idosos e as pessoas deficientes são as vítimas prioritárias da violência doméstica. Concorrem com as mulheres entre os preferencialmente atingidos, segundo as estatísticas. As vulnerabilidades próprias destas pessoas, que geralmente não têm como se defender, e a construção social da discriminação contra elas, as colocam à mercê da força bruta e da covardia. A hierarquia familiar, baseada na idade e no sexo, sempre justificou e naturalizou essa violência.

Isso explica a subnotificação das agressões contra essas vítimas que, por razões óbvias, não podem denunciar. A sociedade geralmente silencia sobre a questão.

Nesse contexto, qualquer notícia de violência no núcleo familiar, mesmo que não envolva diretamente as pessoas aqui referidas, deve servir de alerta aos agentes estatais e motivar investigações, inclusive psicossociais.

7.7.1. Crianças e adolescentes

A Constituição da República determina que a criança e o adolescente são prioridades absolutas do Estado brasileiro, sendo-lhes assegurado o direito à convivência familiar e a proteção contra toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (art. 227).

Apesar disso, cerca de 18 mil crianças, entre sete e catorze anos, sofrem maus-tratos físicos todos os meses no Brasil [56]. Entre 45% a 59% das mulheres que sofrem violência são mães de crianças que sofrem maus tratos [57].

Estas estatísticas não causam surpresa. Se uma mulher adulta - que, a princípio, poderia denunciar a agressão ou pedir socorro -, é violentada no lar, é óbvio que as crianças ou adolescentes sob sua responsabilidade estão sob perigo também. Estas geralmente vivem sob total dependência da vítima ou do próprio agressor, situação que, por si só, justifica uma intervenção, mesmo contra a vontade da mulher agredida.

Além do mais, não é incomum que mulheres vítimas de violência cometam agressões contra seus filhos [58]. De agredidas, passam a agressoras, repetindo o mesmo comportamento "natural" de seus maridos: imposição da vontade pela força física [59]. A frustração, a baixa auto-estima e a raiva podem explicar esse comportamento, principalmente porque a educação dos filhos ainda é função deixada ao cargo da mulher: "como educadora, cabe à mãe transmitir aos filhos os valores da sociedade, preparando-os para nela desempenhar futuramente seu papel. Ela se torna assim a reprodutora por excelência da ideologia dominante e dos estereótipos sexuais, dos quais é a própria vítima" [60].

Por outro lado, mesmo que as crianças não estejam sendo agredidas diretamente, a violência praticada pelo pai ou padrasto contra sua mãe causam conseqüências semelhantes à agressão sofrida diretamente por elas. Pesquisa da OMS-Organização Mundial de Saúde, aplicada em São Paulo e Pernambuco, mostrou que os filhos de 5 a 12 anos das mulheres agredidas apresentavam diversas seqüelas, como: pesadelos, chupar dedo, urinar na cama, timidez e agressividade, além de repetência escolar (SOARES, 2005).

Por isso, não há dúvidas de que a violência doméstica é um dos fatores responsáveis pela delinqüência juvenil. Os menores agredidos devolvem à sociedade a violência aprendida em casa. Adverte o Promotor de Justiça Anderson Pereira Andrade: "...sabe-se que muitos dos desvios psíquicos graves e condutas criminosas observadas em nosso meio são conseqüências de uma experiência de brutalidade vivida na infância ou na adolescência..." [61]. Contra a omissão estatal, é pertinente indagação do Promotor de Justiça Ricardo Wittler Contardo: "Será que o CAJE (centro de prisão para menores) estará preparado para recebê-los num futuro próximo, quando fugirem do "harmônico ambiente familiar" para resgatar sua auto-estima traficando, matando, espancando suas namoradas?"

Saliente-se, por fim, que a o juízo criminal deverá comunicar os fatos ao juízo da infância e da juventude, que poderá aplicar as medidas protetivas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente. É óbvio que atuação deve ser simultânea; uma não exclui a outra. É que a competência para apurar e processar os crimes praticados contra menores é dos juízos criminais. Ao juízo da infância e juventude é reservada a atuação administrativa para proteção dos menores em situação de risco. As atuações judiciais se complementam. Em matéria de violação de direitos humanos, o excesso de zelo é sempre positivo.

7.7.2. Pessoas idosas

A Constituição Federal determina que é dever do Estado amparar as pessoas idosas, "defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida" (art. 230). Com a mesma firmeza, preconiza o Estatuto do Idoso :

Art. 4º (...)

§ 1º É dever de todos prevenir a ameaça ou violação aos direitos do idoso.

Art. 10. (...)

"§ 2º O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, de valores, idéias e crenças, dos espaços e dos objetos pessoais.

§ 3º É dever de todos zelar pela dignidade do idoso, colocando-o a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor."

Para cumprir esse desiderato, é preciso que o Estado intervenha sempre que houver indícios de que idosos habitem um ambiente violento.

De fato, aproximadamente 90% dos casos de violência e negligência contra idosos (pessoas acima de 60 anos) ocorrem nos lares [62]. Os filhos (39,01%) e as filhas (15,71%) são os que mais agridem (totalizam 54,7%) [63]. Os cônjuges também compõem esta triste estatística como agressores [64]. As mulheres [65] e os pobres são especialmente vulneráveis (MINAYO, 2005, p. 9).

Quando agredidos, os idosos vivem uma situação dramática. O sentimento afetivo que nutrem pelo agressor, a dependência financeira e até pessoal para realizar atos da vida, gera um misto de perplexidade e impotência, que os fazem "perdoar" seus filhos ou cônjuges, para não prejudicá-los. O medo e a fragilidade física também são fatores que impedem qualquer reação ou a busca de ajuda.

Muitas vezes a violência física ou psicológica é acompanhada de abusos financeiros e econômicos, em que as vítimas são privadas de seus rendimentos e patrimônio, fator que aumenta sua fragilidade.

Reconhecendo a vulnerabilidade, a II Assembléia Mundial sobre o Envelhecimento, realizada pela ONU em abril de 2002, constatou: "O processo de envelhecimento traz consigo a redução da capacidade de se recuperar, razão pela qual, as pessoas idosas vítimas de maus-tratos, talvez nunca chegarão a se recuperar completamente, física ou emocionalmente, da experiência sofrida. O efeito da experiência traumática pode ser agravado pelo fato de que a vergonha e o medo produzem uma resistência em pedir ajuda" [66].

Portanto, o simples fato de a vítima ser idosa, exige atuação especial do Estado, conforme nosso projeto de Samambaia aplicado desde 2003. Porém, MINAYO (2005, p. 34) cita alguns sinais de vulnerabilidade e risco, que também devem ser considerados:

1.agressor viver na mesma casa da vítima;

2.o fato de filhos serem dependentes financeiramente de seus pais de idade avançada;

3.os idosos dependerem da família de seus filhos para sua manutenção e sobrevivência;

4.abuso de álcool e drogas pelos filhos, por outros adultos da casa ou pelo próprio idoso;

5.os vínculos afetivos entre os familiares serem frouxos e pouco comunicativos;

6.isolamento social dos familiares ou da pessoa de idade avançada;

7.idoso ter sido ou ser pessoa agressiva nas relações com seus familiares; haver história de violência na família; e

8.os cuidadores terem sido vítimas de violência doméstica, padecerem de depressão ou de qualquer tipo de sofrimento mental ou psiquiátrico.

7.7.3. Pessoas deficientes

A história das pessoas deficientes se confunde com a história da crueldade e covardia humanas. Preconceitos e desconhecimentos já levaram à tortura e extermínio em massa de pessoas consideradas "indesejáveis" ou "diferentes". Esta constatação é paradoxal - como todo ato preconceituoso humano -, porque em verdade todos somos diferentes e não há nenhum ser humano igual ao outro.

Por isso, e por sua própria condição de limitação e fragilidade, a pessoa deficiente é altamente vulnerável à violência doméstica.

A Declaração de Direitos da Pessoa Deficiente [67] definiu: "§1 - O termo "pessoas deficientes" refere-se a qualquer pessoa incapaz de assegurar por si mesma, total ou parcialmente, as necessidades de uma vida individual ou social normal, em decorrência de uma deficiência, congênita ou não, em suas capacidades físicas ou mentais". [68]

E o § 9 da mesma Declaração garante: " As pessoas deficientes têm direito de viver com suas famílias ou com pais adotivos e de participar de todas as atividades sociais, criativas e recreativas. Nenhuma pessoa deficiente será submetida, em sua residência, a tratamento diferencial, além daquele requerido por sua condição ou necessidade de recuperação. Se a permanência de uma pessoa deficiente em um estabelecimento especializado for indispensável, o ambiente e as condições de vida nesse lugar devem ser, tanto quanto possível, próximos da vida normal de pessoas de sua idade".

Como toda violência doméstica, mormente a que aflige idosos e crianças, a violência contra deficientes, apesar de enorme, é totalmente subnotificada. O Estado, a sociedade e a família agem como se não existisse, de forma que não há estatísticas sobre a questão [69].

A delicadeza da situação, envolvendo pessoas com quem o deficiente tem relação de afeto ou dependência, potencializa a vulnerabilidade própria do deficiente. Maria Angélica Lauro Condé [70] aponta: "...o estudo do fenômeno envolve um componente ameaçador para seus protagonistas pelas conseqüências que acarreta na legislação (criminais para os agressores e a possibilidade de separação da criança dos pais pelas vias de institucionalização, guarda por terceiros, adoção)".

Além do mais, todas as dificuldades encontradas por uma pessoa "normal" para denunciar seus agressores, como já vimos, é duplicada nos deficientes. Condé [71] esclarece: "A violência contra crianças/adolescentes, geralmente, é desqualificada, não é dada credibilidade às vítimas, que são consideradas, pela pouca idade, incapazes de fornecerem informações precisas, principalmente, quando envolve vítimas com necessidades especiais". E finaliza com contundente indignação: "A maior tragédia dessa história, tenho certeza, é que as crianças confiam nos adultos. São jovens demais para adivinhar que nos tornarmos cegos, surdos e mudos. São puras demais para saber que preferimos conjugar o verbo ignorar ao verbo agir. São inocentes demais para compreender que somos uma sociedade autofágica que, ao matá-las, destruí-las e violá-las, nada mais faz do que se imolar. A maior tragédia dessa história é que as crianças só podem contar com os adultos".

Para ilustrar a importância da atuação estatal obrigatória, apresentamos abaixo um dos casos que atuamos, dentre as várias histórias de horror envolvendo pessoas deficientes :

I.F.L., em estado de embriaguez e após uma crise de ciúmes, se armou com uma faca e saiu correndo atrás de sua esposa M.L.S. para matá-la. Esta saiu em desabalada carreira, juntamente com os filhos pequenos do casal, que ficaram gritando desesperadas para o pai não matar a mãe. As vítimas conseguiram chegar ao Corpo de Bombeiros e o agressor foi impedido de entrar. As vítimas, como outras vezes, tiveram que passar a noite fora de casa para não serem assassinadas. A esposa renunciou ao processo, porém a Promotoria exigiu apuração multidisciplinar. Durante a atuação, descobrimos, para nossa surpresa, que a esposa tem um filho deficiente, com atrofia muscular, de 21 anos de idade, enteado do agressor, que ficava desesperado ao ver sua mãe sendo violentada rotineiramente, sem poder fazer nada. Quando esta fugia com os filhos menores, ficava o deficiente em casa, à mercê do descontrole do padrasto. Ao final, a vítima teve coragem de representar, o agressor foi condenado e não mais importunou a família.

Este caso demonstra que, mesmo não havendo notícias de agressões diretas, é preciso atuar para garantir um mínimo de dignidade às pessoas vulneráveis.

7.8. Gravidez da ofendida

Em nossa atuação diária, impressionou-nos a quantidade de mulheres grávidas violentadas por seus parceiros. É como se a fragilidade própria da gravidez e o conseqüente aumento da dependência das mulheres, incentivasse a agressão gratuita e covarde.

Julia Garcia Durand, realizando pesquisa em postos de saúde, detectou que 33% (1/3) das mulheres disseram ter sofrido violência de parceiro intimo durante alguma gestação. [72] A autora frisa que "a gestação constitui momento da trajetória social que envolve passagem de um padrão identitário (identidade de marido e esposa) para outro (identidade de pai e mãe). Muitas vezes representa, concomitantemente, momento de passagem da vida solteira para a vida em comum".

Os tradicionais preconceitos que atingem as mulheres muitas vezes são usados para beneficiar os agressores. Elas próprias tentam justificar a atitude de seus parceiros, afirmando em audiência que ficam muito nervosas e intratáveis durante a gravidez. "Eu fico insuportável", foi uma das respostas obtidas por Julia Durand [73].

Por outro lado, a literatura internacional aponta os agravos à saúde dos infantes em conseqüência da violência, como baixo peso ao nascer, aborto, prematuridade, mortalidade perinatal e morbidades psiquiátricas [74]. Tal quadro, por si só, é um fator de risco a ser considerado.

7.9. Outros fatores de risco

Os fatores de risco acima elencados não afastam outros, provenientes, por exemplo, de discriminações raciais, de classe ou de opção sexual.

Safiotti [75] assinala que as relações sociais são atravessadas por três eixos principais de hierarquização: o de classe social, subordinação de muitos por poucos, o de raça, que permite ao branco determinar o lugar do negro na estrutura social e o de gênero, que legitima a assimetria de subordinação entre os sexos.

Com efeito, estatísticas revelam que mulheres negras são as que mais apanham de seus companheiros, sejam eles brancos ou negros [76].

Por outro lado, apesar da violência atingir todas as classes sociais, as dificuldades financeiras e o desemprego geram contextos propícios à violência. É comum o homem, quando não atende os "ideais masculinos" de provedor e auto-suficiência, tentar desqualificar e agredir suas parceiras para, através da violência, reafirmar sua superioridade e mascarar sua sensação de fragilidade ("síndrome do pequeno poder"). A pressão da sociedade de consumo potencializa a violência, na medida em que as necessidades e aspirações devem ser satisfeitas com rendimentos precários. Safiotti denomina o fenômeno como "síndrome do pequeno poder" social, em que o homem procura resgatar algum poder em suas relações interpessoais. [77]

Por fim, os casais homossexuais (de homens ou mulheres) tendem a repetir os estereótipos masculino e feminino em suas relações, gerando a mesma violência caracterizada como "tipicamente masculina", fator agravado pela repressão moral a esses grupos, que gera sua invisibilidade social [78].

7.10. Violência física como fator de risco e a Lei Maria da Penha

Espancamentos, uso de armas (faca, revólver, etc.), afogamentos, queimaduras, eletrochoque ou enforcamento, por razões óbvias, foram também fatores de risco considerados pela Promotoria no projeto de Samambaia. Por incrível que pareça, tais fatos eram arrolados como de "menor potencial ofensivo" pela Lei 9099/95, que também passou a exigir representação das vítimas para os denominados crimes de lesão corporal "leve". Segundo o Código Penal, essa "leveza" é caracterizada nos casos em que as vítimas sobrevivem e se recuperem até o 30º dia da agressão, sem apresentar seqüelas.

Neste contexto, muitas vítimas procuram justificar a própria agressão sofrida e isentar o agressor de culpa, alegando que as diversas lesões sofridas resultam de sua "pele muito branquinha, basta encostar que fica vermelho!". Acontece que este simples "encostar" significa, na prática, horas seguidas de chutes, socos, tapas e esganaduras, que as vítimas, em seu medo e fragilidade, tentam atenuar para evitar novas agressões.

No entanto, com a Lei Maria da Penha, o crime de lesão não é mais considerado juridicamente insignificante ou de menor potencial lesivo, porque prevê pena de 3 anos de prisão, e não mais depende de representação. O Ministério Público deve agir de ofício. O acompanhamento multidisciplinar, se necessário, deve acontecer simultaneamente ao processo criminal.

7.11. Medindo o nível do risco

Bárbara Musumeci Soares construiu interessante tabela com o nível de risco de casos, dividindo-os em médio, alto e extremo. Suas observações sobre estas e outras questões são de consulta obrigatória a todos que operam com a violência doméstica. O texto integral está disponível para consulta no site da Secretaria Especial de Política Para As Mulheres: www.presidencia.gov.br/estrutura_presidencia/sepm/.


8. Os fatores de risco e o exemplo da legislação chilena

Desde 2003, aplicamos em Samambaia os fatores de risco mencionados. Causou-nos enorme satisfação a superveniência da Lei de Violência Intrafamiliar do Chile, em novembro de 2005, a qual estabeleceu algumas situações idênticas, que obrigam atuação do Judiciário Chileno:

"Artículo 7º - Situación de riesgo. Cuando exista una situación de riesgo inminente para una o más personas de sufrir um maltrato constitutivo de violencia intrafamiliar, aun cuando éste no se haya llevado a cabo, el tribunal, com el solo mérito de la denuncia, deberá adoptar las medidas de protección o cautelares que correspondan.

Se presumirá que existe uma situación de riesgo inminente como la descrita en el inciso anterior cuando haya precedido intimidación de causar daño por parte del ofensor o cuando concurran además, respecto de éste, circunstâncias o antecedentes tales como: drogadicción, alcoholismo, una o más denuncias por violência intrafamiliar, condena previa por violencia intrafamiliar, processos pendientes o condenas previas por crimen o simple delito contra las personas o por alguno de los delitos establecidos em los párrafos 5 y 6 del titulo VII, del libro Segundo del Código Penal o por infracción a la ley nº 17.798, o antecedentes psiquiátricos que denoten características de personalidad violenta.

Además, el tribunal cautelará especialmente los casos em que la victima esté embarazada, se trate de uma persona con discapacidad o tenga una condición que la haga vulnerable."

O Legislativo chileno chegou à mesma conclusão nossa, aprovando proposta que já tínhamos apresentado ao Congresso Nacional brasileiro em 2004, como visto no item 4 (ainda temos esperança que a Lei Maria da Penha preveja expressamente os fatores de risco que apresentamos, como fez o chileno).

Essa coincidência demonstra, como cediço, que a violência doméstica é igual em qualquer lugar do mundo, independentemente da cultura, religião predominante ou sistema político. A disseminação da violência e seus motivos se apresentam sempre da mesma forma e não existe fórmula milagrosa para enfrentá-la; basta vontade e coragem!


9. Da intervenção multidisciplinar: formando uma rede de atendimento

Não há possibilidade de se fazer um trabalho eficiente de enfrentamento à violência doméstica sem o apoio de profissionais especializados, com cabedal para interpretar e buscar soluções para tão delicado e complexo problema.

Por isso, a Lei Maria da Penha prevê que os juizados de violência doméstica poderão criar uma equipe de atendimento multidisciplinar, para subsidiar as decisões e orientar os envolvidos.

É de todo conveniente que o Poder Judiciário comungue esforços para cumprir a Lei, através de previsão orçamentária sugerida no art. 32, devendo o Ministério Público velar pela sua rápida implementação.

Porém, enquanto as equipes não são estruturadas, e considerando as dificuldades próprias de várias Comarcas no Brasil, é preciso que o juiz e o promotor de justiça, com criatividade, busquem parcerias em sua localidade, visando garantir a melhor atuação nessas causas.

Na experiência do projeto da cidade de Samambaia/DF, iniciado no ano de 2003 (item 3), esse foi o principal desafio enfrentado para dar cumprimento aos objetivos propostos. O NUPS, órgão psicossocial de excelência do Judiciário local, apesar de continuar sendo um dos nossos fundamentais parceiros, não poderia suportar sozinho o aumento da demanda, já que também atende as varas de família de todo o Distrito Federal.

Por isso, o Ministério Público de Samambaia, através de sua CEMA-Central de Medidas Alternativas, buscou o apoio de diversos órgãos, privados e públicos.

Assim, fizemos parceria com o CDM-Conselho dos Direitos da Mulher/DF, o qual estabeleceu um Núcleo de Violência Doméstica Permanente no Fórum de Samambaia, para atendimento em grupo e individual de agressores e vítimas. Em novembro de 2005, o CDM instaurou também um grupo de reflexão apenas para homens agressores, nos moldes do projeto iniciado pelo NOOS, ONG do Rio de Janeiro.

Em parceria com a Universidade Católica do Distrito Federal, estabelecemos grupos de reflexão para usuários de drogas e para pessoas envolvidas com maus tratos de crianças/adolescentes.

Os Alcoólicos Anônimos(AA) e os Narcóticos Anônimos(NA) também se constituíram parceiros imprescindíveis, já que cerca de 60% dos agressores são encaminhados a um deles. O anonimato e a voluntariedade, princípios caros a estas instituições, não foram prejudicados (a questão foi levantada num encontro regional de AAs, do Centro-Oeste, ocasião em que os membros e organizadores do AA ratificaram seu apoio ao encaminhamento judicial, afirmando: "Quem faz o encaminhamento ao AA não é o que nos interessa: é o bebedor-problema que desperta nosso interesse" [79]). É que, apesar do caráter obrigatório do encaminhamento, a abordagem é feita de maneira amigável, inclusive com o apoio de psicólogos, se necessário, para convencimento do acerto da medida.

É muito interessante também a participação dos Grupos Familiares Al-Anon [80], que é uma entidade voltada para os familiares e amigos dos alcoólicos. São grupos de reflexão, semelhantes ao AA, mas voltados às pessoas cujas vidas foram afetadas pela maneira de beber de um familiar ou um amigo. Ajuda as pessoas a entender a questão e a tentar ajudar outros que estejam na mesma situação.


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Notas

01 O legislador, à partir da Lei 9.099/95 (art. 74, parágrafo único), tem usado o termo "renúncia" quando quer na verdade se referir ao instituto da "retratação". Apesar da impropriedade técnica, utilizaremos neste trabalho o termo "renúncia" como sinônimo de "retratação".

02 Tais fatores, por sua importância, também podem orientar os profissionais nas diversas e espinhosas decisões referentes à violência doméstica, como prisão, liberdade, condenação ou absolvição.

03 Grupo instituído pelo Decreto n° 5.030, de 31/03/2004.

04 Marcelo Lessa Bastos, Violência Doméstica e Familiar...

05 v. também a severa crítica feita pelo Advogado Alexandre Wunderlich, A vítima no processo penal, p. 40.

06 Carmen Hein de Campos, Violência doméstica no espaço da Lei, p. 301 a 322.

07 Stela Valéria Soares de Farias Cavalcanti, Violência doméstica..., p. 169.

08 Pesquisa realizada pelo Ministério Público e Universidade Católica, em processos de 2003 a 2006, comprovou que a Segunda Promotoria, dentre as demais pesquisadas, foi a única que não negociou cestas básicas com agressores.

09 O relato da vítima ou as informações da equipe multidisciplinar podiam indicar a necessidade de prorrogação da suspensão, mediante novo compromisso de participação e não agressão.

10 A Convenção assinada pelo Brasil em 09/06/94, ratificada pelo Congresso Nacional em 27/11/95, através do Decreto Legislativo nº 107/95, entrou em vigor no dia 27/12/95. Foi promulgada em 01/08/96, pelo Decreto nº 1973.

11 Foge ao fôlego deste artigo a análise da eficácia dos tratados internacionais. Esclarecemos, porém, que a doutrina mais autorizada, a qual no filiamos, mesmo antes da reforma do judiciário de 2004, que estabeleceu quorum qualificado para aprovação de tratados internacionais (em matéria de direitos humanos), com eficácia de emenda constitucional, já reconhecia a estatura constitucional de tais atos internacionais. É a única conclusão plausível interpretando-se sistematicamente o § 2º, art. 5º, da Constituição Federal, o qual determina que os direitos fundamentais previstos na Constituição não excluem outros decorrentes de tratados internacionais. Nesse sentido, Flávia Piovesan, A incorporação, a hierarquia e o impacto dos tratados internacionais..., p. 153-179.

12 Ingo Wolfgang Sarlet, em seu livro Dignidade da Pessoa Humana..., ensina: "a dignidade da pessoa humana, na condição de valor (e princípio normativo) fundamental "atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais", exige e pressupõe o reconhecimento e proteção dos direitos fundamentais de todas as dimensões (ou gerações, se assim preferirmos). Assim, sem que se reconheçam à pessoa humana os direitos fundamentais que lhe são inerentes, em verdade estar-se-á lhe negando a própria dignidade".

13 SARLET cita J. González Pérez, La dignidade de la persona, p. 59.

14 Gerente Elisabete Pereira.

15 Grupo sob a coordenação da Assessora Jurídica e Ouvidora Ana Paula Schwelm Gonçalves e da Subsecretária Aparecida Gonçalves, ambas da Secretaria de Políticas para as Mulheres-SPM.

16 Entre elas, a CFEMEA, representada por Myllena Calasans de Matos, foi uma das mais atuantes.

17 Tentou-se acrescentar, na Câmara dos Deputados, um parágrafo ao artigo, que possibilitasse ao juiz recusar a renúncia, solução que foi acertadamente descartada. Sobre essa questão, v. item 6.1.

18 Merece destaque o esforço do Assessor da Senadora, Fabrício da Mota Alves, que, após obter a concordância da Secretaria de Políticas para as Mulheres, buscou a inclusão da questão no relatório final para votação plenária.

19 Do autor, O papel do promotor no combate à violência doméstica....

20 Nesse sentido, vide Joaquim B. Barbosa Gomes, O debate constitucional sobre as ações afirmativas.

21 Do autor, idem, p. 73.

22 Fernando Antônio Tavernard Lima, Crimes de ação penal pública condicionada..., p. 3.

23 Sérgio Ricardo de Souza, Comentários à Lei de Combate à violência..., p. 98.

24 Sobre a utilização da psiquiatria para a manutenção da família tradicional, v. Maria Amélia Azevedo, Políticas sociais e violência doméstica contra crianças..., p. 261.

25 Guilherme de Souza Nucci, Leis penais..., p. 874.

26 Maria Berenice Dias, A lei Maria da Penha da Justiça, p. 115.

27 Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto, Violência doméstica..., p. 77.

28 Maria Berenice Dias, A Lei Maria da Penha na Justiça, p. 114 e 115.

29 Reclamação nº 20070020010016RCL Acórdão: 269081 Julgamento: 29/03/2007 Relator: MARIO MACHADO DJU: 09/05/2007

30 Voto em separado apresentado pelo Deputado Antônio Biscaia no dia 06/12/2005, acatado pela relatora da CCJ, Deputada Iriny Lopes e aprovado pela Câmara dos Deputados.

31 Pertinente a constatação de Carnelutti sobre o sistema inquisitivo: "Empenhado assim o juiz, sem limites, na busca das provas e das razões, é inevitável que se converta, segundo uma frase célebre, no inimigo do imputado". Francesco Carnelutti, Lições sobre o Processo Penal, Vol. I, p. 217.

32 Fernando da Costa Tourinho Filho, citando Manzini, Carnelutti e Fenech, constata a obrigatória imparcialidade inerente aos órgãos acusatórios num regime democrático, Código de Processo Penal Comentado, p. 415.

33 Flávia da Almeida Conceição Miller, A densidade normativa do princípio acusatório...

34 Dispõe o Código Penal argentino: "art. 72. Son acciones dependientes de instancia privada las que nacen de los siguientes delitos: 2º.. Lesiones leves, sean dolosas o culposas. Sin embargo, en los casos de este inciso se procederá de oficio cuando mediaren razones de seguridad o interés público."

35 Pedro J. Bertolino, La víctima en el proceso penal, p. 34.

36 Maurício Zanoide de Moraes, Política Criminal, Constituição e Processo Penal, p. 187

37 Eugênio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli constatam: "o controle social tende a ser mais anestésico entre as camadas sociais mais privilegiadas e que adotam padrões de consumo dos países centrais", Manual de Direito Penal..., p. 61.

38 Do autor, Violência doméstica e lesão corporal..., p. 13.

39 Maurício Zanoide de Moraes, Política Criminal, Constituição e Processo Penal..., p. 195.

40 Patrícia Cóppola, Política criminal y Discriminación hasta las mujeres.

41 Processo: 20060910172536RSE DF, Acórdão: 277342 Julgamento: 12/07/2007 DJU: 01/08/2007

42 Nome fictício.

43 Abdullah Aal Mahmud, Clérico do Bahrain, ensina os limites maritais, em entrevista concedida à televisão do seu país no dia 20/06/2005.

44 Sheikh Muhammad Kamal Mustafa, Iman da Mesquita da Cidade de Fuengirola, Espanha e segunda autoridade mulçumana daquele país, A mulher no Islã, p. 86 e 87.

45 Como vimos, alguns destes fatores constavam expressamente na proposta original que gerou o art. 16.

46 processo nº 2007.09.1.000653-0 da 2º Promotoria de Samambaia.

47 Bárbara Musumeci Soares, Enfrentando a Violência Contra a Mulher..., p. 23.

48 HUMANE SOCIETY OF THE UNITED STATES, A conexão: violência contra animais e violência contra humanos.

49 Catherine A. Simmons e outra, Exploring the link between pet abuse...

50 Organização Mundial de Saúde, Informe Mundial sobre Violência e Saúde, 2002.

51 Maria do Carmo Ibiapina de Menezes, Quando o risco está em casa: violência e gênero na França na virada do século, p. 185.

52 Pesquisa realizada em 1998 pelo Movimento Nacional de Direitos Humanos ("Primavera já partiu").

53 Jornal Correio Braziliense, A morte como ela é, Jornalista Ana Beatriz Magno, dia 23/07/06, p. 30/1.

54 Sérgio Luiz Junkes, Uma política jurídica para a redução do consumo de bebidas alcoólicas.

55 Maria Cecília de Souza Minayo, Violência contra idosos..., p. 34.

56 Relatório UNICEF, Situação Mundial da Infância, 2000.

57 AGENDE, 10 anos da adoção da Convenção Interamericana..., p. 12, citando pesquisa desenvolvida nos Estados Unidos da América, pela Federação Internacional de Planejamento da Família em parceria com a Associação Médica Americana.

58 Lilia Blima Schraiber at al, Violência dói e não é Direito..., p. 37.

59 Segundo o Banco Mundial, a violência de gênero é o maio causador de danos à saúde de mulheres e meninas e o maior fator de transmissão da violência dos pais para os filhos (2006).

60 Cristina Bruschini, Teoria crítica da família, p. 70.

61 Anderson Pereira de Andrade, Violência doméstica contra crianças..., p. 159.

62 CHAVEZ, em Violence against elderly e KLEINSCHIMIDT (1997), em Elder abuse: a review, citados por MINAYO, Violência contra Idosos, o avesso de respeito..., p. 33.

63 Vicente de Paula Faleiros, Violência contra a pessoa idosa, p. 371.

64 2/3 dos agressores são filhos ou cônjuges das vítimas, segundo REAY A. M. e BROWNE (2001), citados por MINAYO, Violência contra idosos, o avesso de respeito..., p.33.

65 Vicente de Paula Faleiros, Violência contra a pessoa idosa, p. 367.

66 Plano de Ação Internacional para o Envelhecimento, Orientação prioritária III, Tema 3, Abandono, maus tratos e violência, item 108.

67 Aprovada pela Assembléia Geral da ONU em 09/12/75.

68 A deficiência tem a seguinte definição pela Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência: "O termo deficiência significa uma restrição física, mental ou sensorial, de natureza permanente ou transitória, que limita a capacidade de exercer uma ou mais atividades essenciais da vida diária, causada ou agravada pelo ambiente econômico e social".

69 Pesquisa feita por Maria Angélica Lauro Condé (2003) comprova a assertiva: diversos profissionais que atuam em Escola voltada para deficientes lhe falaram que sabiam de vários casos de violência doméstica contra os alunos, porém todos se omitiam para não se envolver, em Violência doméstica e o portador de necessidades especiais...

70 Maria Angélica Lauro Condé, idem.

71 Maria Angélica Lauro Conde, idem.

72 Julia Garcia Durand, Gestação e violência...

73 Julia Garcia Durand, idem, p. 129.

74 Julia Garcia Durand, idem, p. 63.

75 Heleieth Safiotti, A síndrome do pequeno poder, p. 13-21.

76 "Em Pernambuco, as relações sociais histórica e culturalmente construídas carregam uma forte marca de patriarcalismo e desigualdade racial, que tiveram na violência sexual contra as mulheres negras uma de suas mais visíveis expressões. Ainda hoje, são as mulheres negras e pobres as principais vítimas fatais da violência. A legitimidade da violência sexual contra a mulher negra foi construída no pensamento sociológico de Gilberto Freyre, que ainda hoje tem muita influência não apenas na compreensão da formação social brasileira, como também na visão predominante do que é a sociedade brasileira hoje." Verônica Ferreira, Violência contra a mulher..., p. 182.

77 Safiotti, citada por Julia Durand, idem, p. 48.

78 "Isso não acontece apenas nas relações entre um homem e uma mulher, mas entre parceiros do mesmo sexo. No entanto, essa questão tem sempre um caráter de gênero, isto é, está inserida em relações desiguais, assimétricas, em que, a um dos pares, estão conferidos maior poder e autoridade, atribuições constituídas pela cultura – modo de vier em sociedade – como identidade masculina. A violência praticada por parceiro íntimo, que poder ser o marido ou o parceiro atual, mas também o anterior, isto é, o ex-parceiro ou ex-marido, é mais estudada nas relações de gênero entre homens e mulheres." Lilia Blima Schraiber at al, Violência dói e não é Direito..., p. 28.

79 Encontro realizado no Distrito Federal, em que o autor proferiu a palestra "Justiça e alcoolismo", no dia 29/05/04.

80 O AL-Anon surgiu em Nova York (EUA) em 1951, espalhando-se mundialmente. Existe no Brasil desde 1965, com sede em São Paulo, contando com milhares de grupos em todo país.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

, Fausto Rodrigues de Lima. A renúncia das vítimas e os fatores de risco à violência doméstica. Da construção à aplicação do art. 16 da Lei Maria da Penha. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1615, 3 dez. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10718. Acesso em: 28 mar. 2024.