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A busca por justiça na obra Deus e o diabo na terra do sol

A busca por justiça na obra Deus e o diabo na terra do sol

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A busca por justiça leva os personagens da obra cinematográfica a um caminho de vingança, violência e fanatismo, influenciados pelas difíceis condições sociais e de ambiente retratadas.

Resumo: “Deus e o diabo na terra do sol” é um filme brasileiro do ano de 1964 dirigido e escrito por Glauber Rocha. O longa-metragem retrata as desventuras dos personagens Manoel e Rosa no sertão brasileiro no final da década de 1930, época e local marcados pelo banditismo, movimentos messiânicos, latifúndios e sede de justiça social. O objetivo desse artigo é demonstrar como a busca por justiça leva os personagens da obra cinematográfica a um caminho de vingança, violência e fanatismo, influenciados pelas difíceis condições sociais e de ambiente retratadas. Como resultados e discussões, é possível perceber que a narrativa do filme parte de uma situação de violação de preceito de justiça corretiva e contratual. Foi um profundo sentimento de aviltamento que levou o personagem Manoel a envolver-se em uma luta que termina em homicídio, obrigando-o a fugir, com sua esposa, Rosa, para uma comunidade religiosa de culto fanático. Os membros desse culto estão unidos ao redor de um líder carismático e profético, o Santo Sebastião, que promete a instituição de um reino de justiça social, onde os humildes teriam terra para lavrar. A situação de pobreza, seca e ausência do Estado retratada na obra reforça a autoridade desse líder messiânico. Ao mesmo tempo em que pregam a religião e a justiça, os cultistas praticam saques e assassinatos para purgar seus pecados e garantir o sustento da comunidade. O culto do Monte Santo desperta a ira das autoridades locais, que contratam um matador de aluguel, Antônio das Mortes, para assassinar o Santo Sebastião. O pistoleiro dizima todos os seguidores do profeta, mas o encontra já morto por outra pessoa, sendo perceptível que o próprio matador é movido por um sentimento de justiça individual. Manoel e Rosa tem seu caminho cruzado por um bandido, Corisco, que também se vê como injustiçado. Esse fora-da-lei reafirma uma guerra contra fazendeiros, políticos e policiais para consertar o sertão nordestino e se vingar da morte do seu colega de bando, o famoso Lampião. Percebe-se aí a representação do cangaço-vingança, onde os bandoleiros se posicionavam como corretores das injustiças sociais por meio da força, de saques, assassinatos e estupros. Manoel e Rosa se filiam a esse grupo violento, na persistente busca por justiça, promovida, desta vez, por um líder que não usa artifícios para camuflar suas ações violentas. A vingança como imperativo de justiça leva Corisco ao seu fim pelas mãos de Antônio das Mortes, mas sem se entregar jamais. Manoel é o único que escapa com vida. À guisa de considerações finais, percebe-se que o ideal de justiça é o que move toda a obra. A busca por justiça motiva os personagens a atos de vingança, cada um movido por sua percepção individual do que é justo. A luta por justiça social, necessária em um ambiente tão hostil, desempenha papel central para o enredo, movendo duas personagens importantes, Santo Sebastião e Corisco, Deus e o Diabo, a atos de grave injustiça na terra do sol.

Palavras-chave: Deus e o Diabo na Terra do Sol. Busca por Justiça Social. Justiça social e vingança social.


INTRODUÇÃO

O sertão brasileiro caracterizou-se, ao longo dos séculos, como região pobre e semiárida do país. Desde o início do processo de colonização, o Nordeste brasileiro foi marcado por conflitos sociais que tinham em comum a exploração do povo humilde por ricos latifundiários e as tentativas deste povo de quebrar o sistema, às vezes, com violência. Muitas obras de arte retrataram esses conflitos sociais nas mais variadas formas, como literatura, pintura, música e, claro, o cinema. Deus e o Diabo na Terra do Sol e o Diabo na Terra do Sol é um filme brasileiro de 1964 dirigido e escrito por Glauber Rocha. O longa retrata as desventuras dos personagens Manoel e Rosa no sertão nordestino no final da década de 1930, época e lugar marcados pelo banditismo, movimentos messiânicos, latifúndio e sede de justiça social.

Este trabalho tenta captar, através da arte, os marcantes conflitos sociais do interior de

Brasil, tendo como tema central a busca por justiça social para o povo do sertão nordestino por meio de movimentos que podem ser vistos como de vingança social, como o cangaço e os cultos messiânicos.

O artigo tem como objetivo demonstrar como a busca por justiça leva os personagens da obra cinematográfica em análise para um caminho de vingança, violência e fanatismo, influenciados pelas difíceis condições sociais e ambientais retratadas. Para alcançar esse objetivo geral, foi necessário, como objetivos específicos, apresentar o histórico e contexto político da obra retratada em decorrência de sua época; analisar os dois centros temas do trabalho, banditismo social e messianismo; e demonstrar como o messianismo e o banditismo social foram retratados no filme como instrumentos de promoção do bem-estar social e justiça individual. Para isso, utilizou-se, além do necessário contato com a obra cinematográfica da arte estudada, fontes bibliográficas (livros, ensaios, artigos) sobre os temas enfrentados no filme. Esta pesquisa permitiu estabelecer os conceitos básicos (messianismo, bandido social, vingança, justiça) que foram utilizadas para os resultados e discussões do processo de pesquisa.

Na primeira seção do artigo foram apresentadas notas de contextualização sobre o trabalho em debate e o momento social e político que o Brasil e o mundo atravessavam até o início da década de 1960. Além disso, o enredo do filme, seus personagens e conflitos são apresentados de forma sintética, tudo para dar ao leitor uma nota contextual importante sobre o assunto em discussão.

Na segunda seção deste artigo, os temas mais relevantes de Deus e o Diabo na Terra do Sol são construídos a partir de uma perspectiva sociológica e antropológica: messianismo e banditismo social. Destaca-se o movimento brasileiro conhecido como cangaço, caracterizada pela resistência violenta por parte de certos grupos às injustiças sociais que marcou o início do século XX no Nordeste brasileiro.

Na terceira seção deste artigo fica evidenciado como o trabalho cinematográfico representa os movimentos sociais do messianismo e do banditismo como instrumentos de vingança, ou de uma justiça particular ou pela justiça social generalizada - que leva ao cangaço como instrumento de vingança contra a sociedade, que perpetua a miséria.

Ao final, espera-se que o leitor tenha assimilado alguns das complexidades e muitas nuances presentes nos movimentos sociais populares que surgiram no Sertão brasileiro no passado. Este tema continua sendo um campo rico para discussões e questões sobre o papel do Estado, do Direito e da Justiça para as pessoas mais humildes e como podem combater situações de injustiça social. O filme “Deus e o Diabo na Terra do Sol” fornece uma representação artística historicamente importante de todas essas questões.

“Tá contada a minha história, verdade, imaginação.

Eu espero que o sinhô tenha tirado uma lição:

que assim mal dividido esse mundo anda errado,

que a terra é do homem, não é de Deus nem do Diabo!”


ENREDO E CONTEXTO HISTÓRICO DA OBRA DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL

Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) é uma obra cinematográfica do cineasta brasileiro Glauber Rocha que retrata as desventuras de Manoel e Rosa, nordestinos que, sobrevivendo à pobreza do Sertão brasileiro e à exploração dos menos favorecidos, acabam por se juntar a um grupo de cangaceiros em busca de vingança pelos seus anos de sofrimento e exploração.

Os versos lançados na epígrafe, escritos por Rocha, elucidam um dos objetivos centrais da obra: a dúvida e a mistura do que seria sagrado e satânico/certo e errado no cenário de extrema miséria demonstrada no sertão nordestino.


Resumo do enredo, personagens e conflitos

Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) é visto como um marco do Cinema Novo brasileiro (BRAGA, 2001). Ambientado no sertão nordestino, o filme conta a história do sertanejo Manuel e sua esposa Rosa, que vivem miseravelmente em localidade imprecisa do Nordeste brasileiro (as locações se deram no estado da Bahia) e narra as desventuras pelas quais o casal passa, enfrentando dois fenômenos marcantes para a história do interior do Brasil no final do século XIX e início do século XX: o messianismo religioso e o banditismo social.

Logo nas primeiras cenas do filme, trata-se Manuel seguindo para a cidade com o propósito de apresentar um rebanho de vacas pertencentes ao Coronel Moraes para realizar uma divisão, já que a remuneração de Manuel por pastorear os animais seria a metade do rebanho. Durante o percurso, exatamente metade do gado morre e, ao chegar na cidade, o dito Coronel afirma que a metade das vacas mortas corresponderia aquela a que Manuel teria direito, negando-se a entregar qualquer animal ao vaqueiro como pagamento pelo seu trabalho. Diante disso, os dois discutem, vindo Manuel a perder o controle e apunhalar o Coronel, matando-o.

O casal Manuel e Rosa começa a vagar pelo sertão, fugindo da perseguição dos homens do Coronel morto. Em busca de um sentido para a vida, Manuel começa a integrar o grupo de seguidores de Sebastião, um beato que prega a liberdade e assegura que um dia, o sertão irá progredir. Rosa segue o marido, mas sem se envolver tanto com o grupo messiânico. Seguindo as orientações do beato, Manuel se torna vítima de diversas formas de violência física e mental, totalmente iludido e crente das promessas de Sebastião.

Inconformados com a proporção que o movimento messiânico do beato Sebastião estava tomando em busca da luta pelos direitos dos pobres e reforma agrária, os ruralistas da região e membros da Igreja contratam um matador de aluguel, de nome Antônio das Mortes, para perseguir e dizimar o beato e seus seguidores.

Durante um ritual religioso, Rosa é hostilizada e Sebastião é induzido a matar uma criança recém-nascida como sacrifício pedido pelo beato. Revoltada, Rosa mata Sebastião.

O casal novamente parte sertão adentro. Manuel e Rosa encontram pelo caminho Corisco, o líder de um dos grupos cangaceiros da região. O sertanejo, novamente na procura de uma direção, manifesta sua vontade de participar do bando. Corisco aceita e batiza o novo integrante de “Satanás”. O grupo segue praticando crimes pela região. A narrativa gira em torno do conflito de Manuel entre seguir Deus (o líder messiânico Sebastião) ou o Diabo (o cangaceiro Corisco).

Com a morte do beato por Rosa, o novo interesse de Antônio das Mortes é assassinar Corisco, que, por sua vez, acredita que o mesmo matou Lampião, a quem considerava como seu padrinho. Manuel percebe as atrocidades realizadas pelo grupo e decide abandonar de vez os cangaceiros, seguindo novamente com Rosa pelo sertão nordestino.

Corisco tem seu fim nas mãos de Antônio das Mortes, que o assassina à queima roupa. Enquanto agoniza, o cangaceiro profere suas últimas palavras: “mais fortes são os poderes do povo”.

No final da obra, Rosa e Manuel correm desesperados ao som de “o sertão vai virar mar”. Rosa chega a cair no meio do caminho, ficando para trás, mas Manuel segue sua corrida com a sensação de infinito. Logo que o casal se separa, uma onda de mar aparece em cena, demonstrando que Manuel será mais um dos retirantes que vai para o litoral em busca de uma vida melhor.

Um dos pontos de destaque da obra é o impacto que a aridez da seca causa nos personagens, quando, na cena inicial do filme, aparecem imagens do chão rachado do sertão seguida da imagem de uma carcaça bovina e do rosto desamparado do personagem principal. Esta sequência relaciona elementos importantes da pobreza da região nordestina brasileira e o que eles representam (a seca, a morte e a fome), adiantando que será aquela a história tratada em grande parte do enredo.

Ao longo de sua jornada, Manuel passa por diversos momentos complicados que o conduzem para incessantes mudanças de comportamento. O filme leva o espectador a perceber a miséria absoluta de Manuel, um vaqueiro sertanejo simples, que, por causa de um desentendimento com um coronel, acaba matando-o e começa uma fuga com Rosa, sua mulher.

Apesar de Manuel ser um personagem central na narrativa, o tom documental da obra faz com que Manuel tenha muito mais a função de observador. Ele segue o fluxo dos acontecimentos e está presente em momentos cruciais de uma espiral decadente que acaba simbolizando o nordeste brasileiro. O desespero do personagem diante dos fatos é perceptível e sentido.

Rosa percebe as dificuldades pelos quais os dois passam e sabe que mesmo que Manuel insista ser capaz de trocar duas vacas por um terreno próprio, isso não seria possível. A previsão de Rosa se torna realidade, e com a fuga dos dois a qualidade de observador de Manuel fica mais evidente.

O personagem de Sebastião simboliza o fundamentalismo religioso e a personificação de um ideal. Nem mesmo no grupo do beato o povo encontra a paz que procura, pois a esperança de se chegar a uma terra prometida, plena de paz, e o discurso do Beato, prometendo que os ricos ficarão pobres e os pobres, ricos, mostram-se controversa à prática dos seguidores de Sebastião, que chegam a realizar saques e espancamentos contra aqueles que não seguem o grupo.

Levado pelo comportamento coletivo, Manuel também se entrega à esperança que o Beato representa. Rosa, por outro lado, mantém-se com dúvidas quanto ao caminho trilhado pelo marido. Num dos pontos marcantes para a narrativa, Manuel testemunha e participa de um sacrifício humano, a morte de uma criança. O Beato Sebastião insiste que apenas pelo sangue dos inocentes os pecados serão expiados. O religioso vira assassino.

Em paralelo a esses eventos, o filme narra outra demonstração de violência motivada pela religião. A Igreja Católica Romana mostra-se preocupada com o movimento messiânico do Beato Sebastião, a ponto de encomendar a morte do líder religioso e do seu grupo ao assassino Antônio das Mortes. O matador de aluguel vai cumprir com sua incumbência, encontrado Manuel e Rosa na situação do sacrifício narrado anteriormente. Antônio das Mortes dizima os seguidores do Beato mas o encontra sem vida, morto pelas mãos de Rosa.

Deus e o Diabo na Terra do Sol de duas formas de resposta social ao descaso das autoridades, à desigualdade social, à concentração de terra que afetam as condições de vida dos sertanejos: o movimento messiânico e o cangaço, que representam, respectivamente, Deus e o Diabo.


Contexto histórico da obra

Gravado em 1963 em Monte Santo, região onde viveu e pregou Antônio Conselheiro no conhecido movimento de Canudos, o filme estreou nos cinemas três meses depois do movimento de tomada de poder no Brasil realizado por um golpe militar, em Abril de 1964. A temática do conflito pela terra e busca por reforma agrária provocaram impacto. A obra foi aclamada no Festival de Cannes e premiada em diversos outros festivais, como no Festival de Cinema Livre na Itália, em 1964 (BRAGA, 2001). Algum tempo depois, veio a ser censurada pelo regime antidemocrático que o Brasil estava vivendo.

Deus e o Diabo na Terra do Sol foi gravado durante a agitação política que o Brasil viveu entre 1963 para 1964, e lançado nesse país apenas em três cinemas do Rio de Janeiro-RJ, no dia 10 de julho de 1964. Suas primeiras sessões, privadas, foram realizadas meses antes da estreia nacional, já provocavam espanto nos convidados do jovem diretor, Glauber Rocha, que tinha seus 25 anos. (JUNIOR, 2013).

Apesar de ter estreado em um momento de convulsão política para o Brasil, o enredo da obra volta-se mais à identidade do brasileiro do que ao contexto político que o país vivenciava então. O filme traz como uma de suas referências a peça ateia-existencialista O Diabo e o Bom Deus”, de Jean-Paul Sartre, traçando uma profunda e inteligente análise sobre as relações entre religião e poder no sertão e sua relação com o uso da violência, a serviço de um, de outro ou de ambos. (XAVIER, 2002).

Glauber Rocha e o Cinema Novo

Na década de 1950, um grupo de jovens brasileiros começou a debater a ideia de um novo cinema nacio­nal, que construísse uma identidade político-cultural. Posteriormente, criou-se o movimento chamado Cinema Novo. O ponto de partida seria uma imersão na realidade sócio-político-cultural brasileira, da mesma forma que fez o movimento modernista cerca de trinta anos antes. (SIMONARD, 2003).

O Cinema Novo pode ser visto como uma ligação entre a revolução de uma esquerda contestadora nas décadas de 1910, 1920 e 1930 e o avanço crítico que o cinema nacional vem vivenciando desde a década de 1990. A cultura de resistência dos cineastas engajados com a política nacional garantiu um cinema brasileiro de qualidade nos anos 1960 e impactando a realidade do período de crise ideológica e política. (REINA, PEREIRA, 2017).

Glauber Rocha é considerado um nome de relevo no cinema brasileiro. Suas obras contribuíram para o desenvolvimento da linguagem cinematográfica do século XX e se destacou pelo discurso nunca antes exposto no cinema ou mesmo nas artes em geral do Brasil. Como um intelectual que trouxe à tona discussões sobre um cinema imitador e alienante praticado no Brasil, seu discurso possibilitou uma nova análise sobre o cinema nacional. A técnica utilizada refletia o pensamento de Rocha e os filmes estavam sempre apresentando um brasileiro inconformado com o extrativismo cultural do seu país. (JUNIOR, 2013).

O Cinema Novo criou uma nova aparência para a arte brasileira, tendo como foco um universo ambientado em sertão, favela, subúrbio, vilarejos do interior, dentre outros que estão presentes na filmografia nacional até hoje. O diálogo girava em torno de questões coletivas sobre lutas de classe, religião, política, anticolonialismo e a libertação do oprimido. A grande relevância do Cinema Novo foi mostrar as inúmeras possibilidades de se fazer e ver o cinema, sem partir de uma realidade importada, mas sim de uma realidade vivenciada.

Contexto político do Brasil em 1964

No ano de 1961, Jânio Quadros tomou posse como Presidente da República no Brasil. Pouco tempo depois, renunciou ao mandato na esperança de que pudesse aplicar um autogolpe, saindo para depois voltar ao poder por meio de um pedido da população, pedido este que somente aceitaria diante de uma proposta de poderes absolutos. Isso não funcionou, e seu vice-presidente, João Goulart, assumiu a presidência. João, mais conhecido como Jango, representava um ideário progressista relacionado a pautas de esquerda, e, por ser considerado uma ameaça, foi acusado pelos militares de ser comunista. (TOLEDO, 2004).

Os principais fatores que influenciaram e permitiram a ocorrência do Golpe Militar brasileiro em abril de 1964 foram a instabilidade política durante o governo de João Goulart, o alto custo de vida enfrentado pela população, a promessa de reformas de base como a reforma agrária, o medo que a classe média tinha da implementação do socialismo no Brasil e o apoio que os militares brasileiros receberam da Igreja Católica, dos setores conservadores, da classe média e dos Estados Unidos. (TOLEDO, 2004)

A conspiração contra o governo de João Goulart foi resultado do temor dos grupos conservadores com a ascensão dos movimentos sociais. A sociedade brasileira estava rachada ideologicamente entre direita e esquerda. Assim, em abril de 1964, o golpe foi, então, plenamente vitorioso.

As forças políticas vitoriosas por meio do movimento político-militar trataram, desde a primeira hora, de mostrar a que vinham: sustaram a democracia e desencadearam uma verdadeira razia política (suspensão de direitos políticos, cassação de mandatos, intervenção em sindicatos e outras organizações, invasão e depredação de sedes de uniões estudantis, perseguições, prisões, assassinatos, tortura). O regime ditatorial, sob o invólucro militar, procurou a legitimação do movimento autoproclamando-se “revolução”. (SEGATTO, 2014).

Inúmeras revistas acadêmicas e não acadêmicas, semanários e jornais difundiam correntes teóricas e ideológicas contra o golpe de 1964. O Cinema Novo colocou as camadas populares como protagonistas centrais de suas narrativas. Assim, os primeiros filmes de Glauber Rocha, por exemplo, se tornaram possíveis a partir desse novo contexto político e ideológico que se constituía no país. (TOLEDO, 2004).


BANDITISMO SOCIAL E MOVIMENTO MESSIÂNICO NO SERTÃO DO NORDESTE BRASILEIRO

Ao pensar na região Nordeste e nos problemas que ela enfrenta desde o início de sua história é possível encontrar diversos pontos de contraste que a localidade enfrentou através do tempo. O movimento messiânico e o cangaço, por exemplo, foram dois movimentos sociais de origem popular e grande importância para o sertanejo.

Esses movimentos enfrentaram forças governamentais e são representados como resultado de uma região vítima de desastres naturais, exploração de mão de obra e estereótipos. Foram movimentos sociais que tornaram o nordeste notório. (SILVA, 2014).


Formação social e política do sertão nordestino brasileiro

A expressão “nordeste” possui significados complexos que rememoram a uma série de imagens, retratando tanto as suas características geográficas, quanto culturais, sociais e econômicas.

A formação do que viria a ser o Nordeste está diretamente ligada à história da colonização com base na exploração. As imagens sociais do sertão nordestino estão sempre vinculadas ao coronelismo, ao movimento do cangaço e à persistência de formas arcaicas de relações sociais, situadas no universo do pré-capitalismo. (BERNARDES, 2007).

A ditadura civil-militar instaurada em 1964, obteve no Nordeste uma importante base de apoio, entre parte da classe política e a quase totalidade dos proprietários e empresários, de parte do clero e muito da classe média. Interesses de classes, agressivo anticomunismo e oportunismo deslavado juntaram-se para apreciar a “revolução redentora”. Foram feitas muitas promessas de desenvolvimento, fim da miséria e de um novo Nordeste.

Porém, durante o final dos anos 1960 e o início dos anos 1970, a região passou pelo auge de sua decadência, provocada por uma conjunção de fatores externos e internos, cuja causa remota ainda se vê no século anterior e se estenderam até a segunda metade do século XX. Viu-se o curso de um projeto de manutenção da região nordestina brasileira subdesenvolvida para que esta viesse a exportar mão de obra barata para outras regiões e assim sustentar a industrialização de outros estados. (BERNARDES, 2007).

Breves menções históricas ao processo de colonização do Nordeste brasileiro

O período inicial da história da região nordeste, após a chegada de europeus no Brasil, está diretamente ligado com o início da formação econômica do território nacional, pois a exploração de povos nativos do território começou por essa região localizada ao norte do país, banhada pelo Oceano Atlântico. Como normalmente ocorre com regiões que foram colonizadas por países europeus durante o período das Grandes Navegações, o nordeste do Brasil foi colonizado inicialmente pelo litoral. (GONÇALVES, ARAÚJO, 2015).

A região, logo de início, serviu de ponto de retirada de recursos naturais, como o pau-brasil. Foi importante também para o cultivo da cana-de-açúcar, que se tornou o produto mais importante do nordeste brasileiro por muito tempo.

Em meados do século XVI, época de povoamento e colonização efetiva do território brasileiro, as primeiras mudas de cana-de-açúcar, trazidas de Portugal, foram plantadas e cultivadas no espaço que hoje compõe parte do Nordeste, principalmente nas áreas litorâneas da região. Com base na mão de obra escrava (composta por africanos e índios nacionais), a exploração da cana-de-açúcar, que era praticamente voltada para abastecer o mercado europeu, foi, na época, a produção mais lucrativa da Coroa portuguesa, dando início às atividades exploratórias da região, com produções voltadas ao mercado externo. (GONÇALVES, ARAÚJO, 2015).

Com o clima do litoral perfeito para o cultivo de diversas plantações, durante muito tempo todo o restante do território nordestino, o interior do continente, continuou praticamente desabitado, passando a ser chamado de “deserto” pelos portugueses, ou simplesmente de “desertão”, o que acabou dando origem ao termo “sertão”, tão comum atualmente. (BERNARDES, 2007)


Banditismo Social

Ao se falar em banditismo, surge no imaginário a imagem do fora da lei em confronto com toda a sociedade, infrator de regras legais e morais, sujeito desprovido de um propósito superior, que no intuito de satisfazer apenas seus próprios interesses, age em detrimento até mesmo dos seus iguais. Via de regra, não se faz, portanto, qualquer distinção entre as diversas formas como esse fenômeno pode se manifestar. (LOPES, 2016).

Existe, no entanto, uma modalidade bastante específica de banditismo que chamou a atenção dos historiadores e sociólogos. Denominado, pioneiramente, por Eric Hobsbawm, de banditismo social. Esse fenômeno social, de abrangência universal, reúne pressupostos e características bastante peculiares capazes de permitir sua diferenciação do banditismo convencional, como observado na obra “Bandidos”:

“deixavam de ser vistos como simples bandidos e passavam a ser considerados bandidos “especiais” ou sociais. Por isso gozavam de proteção [...] à custa dos aldeões. [...] À parte essa situação especial, o banditismo, como fenômeno social na [...] sua história, está relacionado à classe, à riqueza e ao poder nas sociedades camponesas” (HOBSBAWM, 2010)

Segundo a teoria do banditismo social, o bandido comum não demonstra nenhum tipo de comprometimento com os valores e interesses da comunidade em que vive, importando, apenas a satisfação de suas inclinações pessoais, não existindo qualquer consciência de classe. Nos dizeres de Eric Hobsbawm, o submundo comum do crime: “é uma antissociedade, que existe pela inversão dos valores do mundo ‘decente’ – é um mundo, segundo sua própria definição, ‘transviado’ –, mas possui com este uma relação parasitária”. (HOBSBAWM, 2010).

O tema do banditismo social é bastante recorrente em sociedades com forte presença rural, como na América Latina. As literaturas nacionais dessas regiões apresentam referências aos tipos rurais e, entre estes, os camponeses revoltados, de forma individual ou coletiva. (FERRERAS, 2003).

A natureza de bandido social é realçada por qualidades de valentia, ousadia, força e aventureirismo. São justiceiros, repartidores públicos, cangaceiros, bandoleiros ou mesmo matadores de aluguel. Nesta mistura de valores e de códigos os contornos de uma determinada forma de justiça, uma “justiça paralela”, são traçados. O bandido pode ser o criminoso, como também o protetor, o justiceiro, o repartidor público, o herói. Não existe nestas circunstâncias um culpado a ser punido, mas sim, um meio social adverso, injusto, que propicia o surgimento desses bandidos-heróis. (BARREIRA, 2010).

A análise de Hobsbawm sobre o banditismo social é baseada na existência de três tipos de sujeitos: o bandido nobre, como Robin Hood; os guerrilheiros primitivos; e o vingador, como Lampião. Estas formas diferem segundo as regiões em que o banditismo social se desenvolveu. (FERRERAS, 2003).

O cangaço é considerado uma das formas de banditismo social típica. Fenômeno que ocorreu no Nordeste brasileiro entre os séculos XIX e XX, teve sua gênese em questões sociais e também fundiárias da região, caracterizando-se por atitudes e acontecimentos violentos de grupos ou mesmo de indivíduos isolados. (LIRA, SILVE, MARTINS, 2014).


O Cangaço

Não existe uma interpretação consensual sobre o movimento do cangaço, seja na visão popular ou dos especialistas no assunto. Sobre esse fenômeno social sempre predominou uma percepção dualista, para a qual, ou o cangaceiro era o herói vingador dos pobres do campo, ou, simplesmente, um bandido comum, motivado apenas por interesses pessoais. Na sociologia e historiografia, já se coletou farto material sobre o tema, surgindo inclusive teorias sobre esse fenômeno social. (LOPES, 2016).

Desde o século XVII existem relatos históricos das ações de grupos de bandoleiros, no litoral nordestino, causando medo e insegurança na população. Contudo, somente no século XIX, com seu florescimento no sertão, que tal forma de banditismo ganha relevo e singularidade. (LOPES, 2016).

O cangaço era constantemente visto como uma forma de revolta frente às mazelas que assolavam a região sertaneja, como a seca, a fome e a exploração do trabalhador. Com o passar dos anos as pesquisas sobre o tema indicaram que nas décadas de 1920 e 1930 as razões que levavam um indivíduo a tornar-se um cangaceiro se modificaram e um dos principais motivos seria a vingança pessoal. A característica de “lavar a honra” com o sangue do inimigo era bastante atribuída ao estereótipo sertanejo do início do século XX. (SILVA, 2014).

Os primeiros bandos de cangaceiros, portanto, eram formados por homens que observavam no sistema econômico da época uma opressão. Eram contra o Estado, saqueavam vilarejos e matavam pessoas vinculadas ao governo. De acordo com a análise de Pernambucano de Mello, existiam três modalidades de cangaço:

São em número de três essas formas básicas: o cangaço-meio de vida; o cangaço de vingança e o cangaço-refúgio, tais como as intitulamos no estudo citado. A primeira forma caracteriza-se por um sentido nitidamente existencial na atuação dos que lhe deram vida. Foi a modalidade profissional do cangaço, que teve em Lampião e Antônio Silvino os seus representantes máximos. O segundo tipo encontra no finalismo da ação guerreira de seu representante, voltada toda ela para o objetivo da vingança, o traço definidor mais forte. Foi o cangaço nobre, das gestas fascinantes de um Sinhô Pereira, um Jesuíno Brilhante ou um Luís Padre. Na terceira forma, o cangaço figura como última instância de salvação para homens perseguidos. Representava nada mais que um refúgio, um esconderijo, espécie de asilo nômade das caatingas, como dissemos no trabalho mencionado. (MELLO, 2011).

Ao contrário do movimento messiânico, o cangaço tinha no banditismo uma prática de transformação da realidade, uma vez que os alvos reais eram detentores do poder. Eles não se baseavam em uma ideologia utópica para acabar com o sofrimento do povo, mas sim no reconhecimento da estrutura de poder e das condições sociais a que o povo era submetido.

Quando se fala em cangaço, o nome mais conhecido é o de Lampião (Virgolino Ferreira da Silva). Lampião nasceu em 1898 em Vila Bela, no município de Serra Talhada em Pernambuco e morreu em Angicos no estado de Sergipe, em 1938. Como era comum ao se pensar no cangaço, era tido como bandido para alguns e justiceiro para outros. (LIRA, SILVE, MARTINS, 2014).

Um importante aspecto de Lampião a ser ressaltado ao longo de sua trajetória no cangaço foi sua sociabilidade. Lampião fez alianças com importantes figuras nordestinas, entre eles estava Padre Cícero (1844-1934), mais famoso líder religioso da região do cariri cearense. (SILVA, 2014). Outra marcantes característica da personalidade contraditória de Lampião era a sua religiosidade. Apesar de sua vida de cangaceiro e das influências de violência extrema do cangaço, Lampião nunca abandonou a sua fé e devoção em Deus, nos santos da igreja católica, e também no Padre Cícero Romão do Juazeiro do Norte, Ceará, que para ele, era um homem santo. (AZEVEDO, 2011).

Lampião passou em torno de 20 anos no movimento. Transformou-se em símbolo de força e coragem do sertão nordestino, um dos mais famosos líderes do cangaço. Após sua morte e a de seu bando, o movimento não ficou sem líder por muito tempo, outro membro assumiu: Cristino Gomes da Silva Cleto (1907-1940), conhecido como Corisco. Corisco não consegue manter relações tão diplomáticas com os coronéis da região, sendo morto em 1940, simbolizando a extinção do movimento dos cangaceiros em definitivo. Nenhum líder teve sua trajetória tão retratada quanto Lampião. (SILVA, 2014).

A vida e morte de Lampião e sua ligação com seu bando são cobertas de mistérios, criando um verdadeiro mito. Não são poucas as obras que procuram associar Lampião a um projeto de mudança social ou apresentá-lo como um Messias. (AZEVEDO, 2011).

Movimento messiânico

Numa visão abrangente e genérica, messianismo e movimento messiânico são conceitos parecidos, mas que diferem em alguns pontos. Desta forma, o primeiro diz respeito à crença em um salvador, o próprio Deus ou seu emissário, e à expectativa de sua chegada, que porá fim à ordem presente, tida como iníqua ou opressiva, e instaurará uma nova era de virtude e justiça; o segundo refere-se à atuação coletiva (por parte de um povo em sua totalidade ou de um segmento de porte variável de uma sociedade qualquer) no sentido de concretizar a nova ordem ansiada, sob a condução de um líder de virtudes carismáticas. (NEGRÃO, 2001)

Glauber Rocha abordou bastante ao longo da obra sobre a discussão religiosa, o conflito entre o certo e o errado que se encontra presente em todo o enredo. Manoel durante toda história se questiona sobre a presença de Deus e se suas condutas são pecaminosas ou justas, revelando a difícil relação entre o homem e o divino.

Os movimentos messiânicos possuíam em comum a figura do líder carismático. Era esse líder responsável por incutir em seus seguidores ideias que fundamentalmente estavam ligadas às questões muito concretas do cotidiano do povo. A vontade coletiva de mudança de estrutura acabava por fazer essa população refletir, mesmo que inconscientemente, sobre o desejo de ser incluído politicamente em sua sociedade. Se não existia essa inclusão de forma diplomática e democrática, os líderes religiosos tomavam este papel e faziam ao seu modo sua política social. (SILVA, 2014).

Diversos acontecimentos históricos provam que o conceito de religiosidade popular não entra efetivamente em um contexto sem ter suas raízes em práticas de dominação hegemônica desenvolvidas por grupos sociais que desde a antiguidade são motivadas permanentemente por interesses de poder, políticos e econômicos. (AZEVEDO, 2011).

O filme aborda o lado negativo do movimento messiânico, por meio da série de exigências que o beato faz a Manuel, causando até mesmo a morte de um inocente. O movimento faz promessas utópicas de uma existência mais confortável para uma população carregada de sofrimentos que lhes são impostos e obriga-os a uma série de expiações tendo como finalidade chegar ao paraíso prometido, mas não realiza nada para combater a miséria que assola seus seguidores.

É notável na película o quanto a presença do beato Sebastião deixa a elite local transtornada. Embora a obra de Glauber Rocha possua diversas críticas ao movimento messiânico, seu poder é reconhecido ao longo do enredo, visto a quantidade de seguidores que se reúnem pela causa.


A BUSCA POR JUSTIÇA EM DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL

Deus e o Diabo na Terra do Sol reúne personagens reais e fictícios numa narrativa que tem o sertão nordestino como cenário. Coronelismo, religiosidade e cangaço são elementos centrais da produção, que ao mesmo tempo assume um caráter documental e crítico da realidade brasileira da época, refletindo sobre as particularidades de um universo habitado por santos e demônios, muito presente no imaginário popular sertanejo. (SOUZA, 2011).

A temática abordada no filme é eminentemente social e política. O homem sertanejo protagoniza uma complexa narrativa de encontros e rupturas. A história de Manuel e Rosa, contada de forma semelhante a uma epopeia, mostra o misticismo e a violência em doses intensificadas pelas figuras do beato Sebastião e do cangaceiro Corisco. (SOUZA, 2011).

Na transição do Império para a República Velha vários movimentos sociais se fizeram presentes na realidade do brasileiro. Ao passo que no sertão nordestino alguns trabalhadores rurais, exauridos da exploração do trabalho no campo, procuravam adentrar em movimentos messiânicos com comunidades que pregavam um regime de igualdade para todos; outros sertanejos entravam no cangaço como forma de fazer justiça com as próprias mãos diante das suas dificuldades e injustiças sofridas.

As constantes secas que aconteciam no sertão nordestino desanimavam o trabalhador rural e o impulsionavam a buscar meios de superação. Foi assim que muitos abraçaram a fé através da religião. Alguns decidiam entrar no cangaço como um clamor por justiça social, num país onde não havia políticas sociais para diminuir as desigualdades e os direitos eram efetivados apenas através da lei do mais forte.

Na obra de Rocha são tratadas as temáticas do sacrifício, do genocídio populacional, da devoção, do descontrole e desesperança social. Trazendo cenas de violência, traição e desamparo, o filme provoca o sentimento de justiça e consciência social. (REINA, PEREIRA, 2017).

A diversidade de condições em que os seres humanos se encontram na sociedade traz à tona, dentre outras, a questão da justiça social, fundamentada nas ideias de igualdade e solidariedade, que começou a ser desenvolvida ainda no século XIX. Nessa época, a ideia de justiça social estava ligada à busca de um equilíbrio, de modo que todas as pessoas tivessem os mesmos direitos. Sendo assim, a noção moderna de justiça social passou a ser ligada à busca de uma sociedade igualitária, ideia amparada pela Constituição Federal brasileira de 1988.

A violência abordada na obra pode ser compreendida como um grito de justiça social diante de uma concentração de riqueza, ausência do Estado de direito e do controle exercido pela política coronelística. Não existiam direitos sociais e a lei do mais forte era a prevalente, de maneira que a justiça era realizada através da coragem das pessoas e de suas vinganças privadas.

A negação de justiça corretiva como elemento da narrativa

Os elementos narrativos centrais do filme se iniciam com a representação de uma disputa contratual instaurada entre os personagens Manuel e Coronel Moraes. Como se disse na sinopse da obra, acima, Manuel cuidava do rebanho do Coronel como meeiro, tendo direito a receber metade das vacas a título de pagamento. Um infortúnio levou à morte exatamente metade dos animais, motivando o Coronel, num artifício para evitar prejuízo, a estabelecer que o gado morto corresponderia ao que Manuel teria direito como pagamento.

Foi a negação de justiça contratual em favor de Manuel que o levou à revolta contra o Coronel Moraes. Sentindo-se aviltando e injustiçado, tomado pela fúria das agressões injustas, físicas, inclusivamente, da parte do Coronel, Manuel revidou e apunhalou o seu agressor. Esse acontecimento serviu de causa para todo o movimento narrativo apresentado na obra, uma vez que foi a fuga dos homens do Coronel assassinado que levou Manuel e Rosa a suas desventuras.

Pode-se analisar a narrativa à luz do pensamento aristotélico a respeito da justiça, notadamente o exposto em Ética a Nicômaco, no Livro V.

Nessa obra Aristóteles expõe a Justiça como a virtude mais elevada, que sintetiza todas as outras. Diz O Filósofo: “because it is the use of complete virtue; it is complete because he who possesses it is able to use virtue also in relation to another, and not only as regards himself.” (ARISTÓTELES, 2011, p. 90).1

Aristóteles sistematiza suas ideias de Justiça apresentando duas acepções para esse conceito: justiça geral e justiça particular. A justiça geral diz respeito ao respeito dos indivíduos às leis da pólis, ligando-se ao elemento de sociabilidade inerente à própria natureza do homem como animal político (BITTAR, 2003)2. É dito em Ética a Nicômaco (1130b): “the law commands us to live in accord with each virtue and forbids us to live in accord with each corruption. Things productive ofthe whole ofvirtue are all those legislative acts pertaining to the education to the common [good]” (ARISTÓTELES, 2011, p. 92).

Já a outra acepção da justiça vista em Aristóteles é aquela ligada às relações particulares entre os indivíduos, e não entre os indivíduos e a comunidade política (pelo menos, não diretamente). Trata-se da acepção da justiça como justiça particular. Esse tipo de justiça, por sua vez, divide-se em justiça distributiva e justiça corretiva. (BITTAR, 2003).

A justiça distributiva liga-se a distribuição de honras, dinheiro e outros bens entre aqueles que fazem parte da sociedade numa relação tetralógica: os sujeitos A e B recebem os bens C e D guardando uma proporção entre a distribuição desses bens. Essa proporção, chamada de geométrica (1131b), leva em consideração os méritos dos indivíduos na determinação dos bens que cada indivíduo receberá (BITTAR, 2003).

A justiça corretiva, é reconhecida como aquela aplicável às transações entre pessoas, sejam voluntárias, sejam involuntárias. Aristóteles relaciona essa forma de justiça a uma espécie de igualdade, manifestada numa proporção aritmética: “The just in transactions is a certain equality, and the unjust, a certain inequality, yet not in accord with the proportion just indicated but in accord with an arithmetic one.” (ARISTÓTELES, 2011, p. 97).

A ideia de proporção aritmética se liga à ideia de igualdade. Nas transações, onde são indiferentes as características do homem lesado ou do que lesiona (ARISTÓTELES, 2011), leva-se em conta, para efetivar a justiça, o elemento da igualdade entre perdas e ganhos. É justiça, portanto, justiça essa efetivada pelos juízes, se necessário, que as perdas e ganhos dos envolvidos em uma transação estejam igualados com precisão matemático-aritmética.

Em Aristóteles (2011, p. 98; 1131b-1132b), vê-se, sobre ganhos e perdas:

For when, of two equal things, a part is subtracted from one and added to the other, then the latter exceeds by twice the part subtracted from; for if the one is subtracted from, but the other not added to, then the latter exceeds only by one. Therefore, the latter exceeds the middle term by one, and the middle term exceeds the one subtracted from by one. By this, then, we will know both what we ought to subtract from the person who has the greater share and what we ought to add to him who has the lesser: we ought to add that which exceeds the middle term to the person with the lesser, and to subtract from the one who has the greatest that by which the middle term is exceeded.

Todos os conflitos de Deus e o Diabo na Terra do Sol se dão porque a proporção aritmética na transação entre Manuel e o Coronel Moraes, vista por Aristóteles como imperativo de justiça particular e, portanto, como imperativo de Justiça, foi violada. Em verdadeiro ato de injustiça, o Coronel Moraes exige que lhe seja entregue todo o gado remanescente, não aceitando dividir os prejuízos com Manuel. É o sentimento de injustiça que leva Manuel a brigar com o Coronel, em disputa corporal que acaba com a morte deste último.

A se aplicar o pensamento aristotélico de justiça corretiva, as perdas no rebanho deveriam ser experimentadas por ambos, de modo que o gado restante deveria ser partilhado, igualmente, em proporção aritmética, entre Manuel e o Coronel. Isso satisfaria a noção de justiça como medianeira, proposta por Aristóteles (BITTAR, 2003).

Foi a falta de justiça corretiva que levou Manuel a praticar o crime que movimenta todo seu processo de fuga. O filme em evidência nesse estudo, que denuncia fortemente as injustiças sociais, também tem na injustiça contratual um elemento central, posto que é o estopim para toda a quebra da harmonia tratada na obra.

A busca por justiça social no movimento messiânico

Conceituam-se como movimentos messiânicos, milenaristas ou messiânico-milenaristas desde controvérsias pacíficas e simples relacionadas a elementos da vida social, até rebeldias armadas, ambos os tipos associados ao universo ideológico religioso, capazes de, concomitantemente, identificar as causas dos problemas e angustias e indicar caminhos para sua superação, desde os mais racionais até os mais fantasiosos. (NEGRÃO, 2001).

O enaltecimento a Cristo como ser espiritual, sofredor, em constante luta pela justiça social e pela redenção dos homens, e que por causa desses ideais teria morrido, serviu de incentivo para o surgimento de movimentos messiânicos que foram difundidos em diversos continentes. Partindo de diferentes realidades, os movimentos messiânicos tinham como característica comum a reunião de homens, mulheres, jovens e crianças excluídas socialmente e sustentadas espiritualmente pela fé, professada por beatos, considerados homens santos, que propagavam a chegada de novos tempos de justiça para todos. A redenção seria assegurada com a vinda próxima do Salvador - o Messias. (SOUSA, CARVALHO, 2013).

Os movimentos messiânicos, mesmo com suas características próprias, possuem em comum a negação da opressão como uma das formas de resistência dos oprimidos em relação as estruturas de dominação. Os sertanejos envolvidos com esses movimentos eram líderes reformistas que participavam de lutas políticas, porém sempre aliados a mandatários regionais ou locais.

Tais movimentos não são anormais e nem sequer considerados uma patologia social, como foram vistos durante muito tempo, mas sim respostas de sociedades tradicionais em momentos de crise, de anomia social ou de mudança na sua estrutura interna. O apelo a valores religiosos não seria uma atitude alienada, mas a expressão da revolta por meio do único caminho naquele contexto sociocultural. (NEGRÃO, 2001).

Os movimentos sociais e religiosos que surgiram no sertão nordestino brasileiro foi a síntese das lutas campesinas. Foram lutas populares de resistência a uma condição de opressão e de miséria que constituía o cenário do sertão.

A busca por justiça social na luta pelo cangaço

A mitificação dos cangaceiros passou por diversos usos dentro da história brasileira. O caráter insurrecional do movimento e o modo como foi vinculado à luta da população pobre contra os grandes proprietários de terra do nordeste brasileiro foram muito explorados para legitimação de discursos e autopromoção dos indivíduos. (CARNEIRO, 2010).

De acordo com relatos passados ao longo do tempo, o cangaço foi motivado por conflitos familiares, desigualdade social, injustiças e ausência total de assistência do Estado, tornando-se uma questão social.

Movimento que nasceu desprovido de qualquer coesão, intuito de mudança social classista ou ideário político, o cangaço transformou-se em uma das principais referências às lutas proletárias. A transfiguração do bandoleirismo no sertão ultrapassa o social e chega até o político. (CARNEIRO, 2010).

A rejeição por camponeses, a fome, os males do monopólio da terra e a vigência da grande propriedade territorial capitalista faziam parte do cotidiano sertanejo e serviram de base para a formação de justiceiros em algumas regiões do Brasil. Na busca por sobreviver ao panorama socioeconômico da época, muitas pessoas utilizavam-se de práticas criminosas como saquear, sequestrar e assassinar pessoas ligadas ao poder, a fim de fazer justiça com as próprias mãos frente às desigualdades sociais que castigavam a população rural, especificamente a nordestina, tornando-se bandidos.

A palavra bandido deriva do italiano bandito, que significa homem banido. Banidos da sociedade elitista que crescia no período, diversos homens buscavam no banditismo social uma resposta para a injustiça social da época. A maioria dessas práticas ilícitas deu-se em áreas rurais do Nordeste brasileiro, com disputas por terra e combate às imposições do coronelismo latifundiário. (SANTOS, 2015).

O banditismo social fundamenta-se no estudo de três tipos de bandido: o bandido nobre, o guerrilheiro e o vingador. O bandido nobre possui idealismo e consciência social, entra para a vida do crime como vítima da sociedade em que vive, sendo reconhecido como agente da justiça. O guerrilheiro atua em grandes grupos, contando com auxílio externo e são organizados ideologicamente. O vingador seria um bandido nobre com sede de justiça, incorporando a postura de um líder que mata para satisfazer sua vontade. O cangaceiro é considerado um bandido vingador. (HOBSBAWM, 2010).

O cangaço foi uma forma dos sertanejos não permanecerem estagnados diante da dominação latifundiária, pois se a terra é para ele inacessível, ou quando possui uma nesga de chão vê-se importunado pelo domínio do latifundiário, monopolizador de todos os privilégios e ditador das piores torpezas, a única solução viável seria rebelar-se, pegando em armas, sem objetivos claros, apenas para sobreviver no meio que é seu. (FACÓ, 1991).

O movimento representa uma dualidade: boas ações e crueldade. Representa um duplo estatuto, tanto para atender ao seu grupo ou quanto aos interesses de outros grupos sociais, ora sendo o das classes menos favorecidas ou mesmo das mais favorecidas. Nesse sentido Hobsbawm ressalta que:

“A moderação ao matar e agir com violência faz parte da imagem do bandido social. Não há razão para esperarmos, mais do que se espera do cidadão comum, que, como grupo, ajam de conformidade com padrões morais que eles próprios aceitam e que seu público espera deles.” (HOBSBAWM, 2010)

Bandido errante, Lampião foi e ainda é para muitos um herói ambíguo que em suas jornadas pelo sertão adentro, ao enfrentar a volante, agia em nome de um povo marcado pelos crimes que também eram cometidos por aqueles que deveriam assegurar a proteção e a ordem social. (SANTOS, 2015).


CONSIDERAÇÕES FINAIS

A obra de arte cinematográfica retratada, como já explicado, reflete as adversidades de Manoel e Rosa no sertão nordestino no final da década de 1930, um tempo e um lugar marcado pelo banditismo, movimentos messiânicos, latifúndios e sede de justiça social. Pode-se notar que a narrativa do filme parte de uma situação de violação de uma regra de justiça corretiva e contratual.

Conforme estudado no desenvolvimento do trabalho, foi um profundo sentimento de degradação que levou o personagem Manoel a se envolver em uma luta que termina em homicídio, obrigando-o a fugir com Rosa para uma comunidade religiosa de amadores adorar e posteriormente interagir com um bando de cangaceiros.

A primeira seção do artigo trata do enredo e do contexto histórico em que a obra está inserida. Nesta primeira parte é demonstrado como o filme é um marco para a revolução cinematográfica que estava acontecendo no país, bem como é gravada e lançada em um momento conflituoso na política brasileira com o início de uma ditadura civil-militar que cessou diversos direitos fundamentais.

A segunda seção tratou dos principais movimentos sociais apresentados no filme e que foram de relevante importância para o sertanejo brasileiro. Deus e o Diabo na Terra do Sol aborda formas de resposta social à ausência do Estado, às desigualdades e ao acúmulo de terras nas mãos de poucos que afetam diretamente a vida do Nordeste: o movimento messiânico e o cangaço, que representam respectivamente, Deus e o Diabo.

Na terceira e última seção, foi discutida a busca pela justiça social no cenário da obra. A violência abordada no filme pode ser percebida como um apelo à justiça social diante das desigualdades já abordadas durante o trabalho. Não havia direitos sociais e a lei do mais forte prevalecia para que a justiça fosse feita através a coragem do povo e a sua vingança privada.

Por fim, observou-se que o ideal de justiça é o que move toda a obra. A busca por justiça motiva os personagens a atos de vingança, cada um movido por suas percepções do que é justo. A luta pela justiça social, necessária num contexto tão hostil ambiente, desempenha um papel central na trama.


REFERÊNCIAS

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  1. ARISTOTLE. Aristotle's Nicomachean ethics. University of Chicago Press, 2011, p. 90.

  2. BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. Curso de filosofia aristotélica. Editora Manole Ltda, 2003.


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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIANA, Lissa Furtado; LUNA, Luan Victor de Souza. A busca por justiça na obra Deus e o diabo na terra do sol. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7471, 15 dez. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/107647. Acesso em: 17 maio 2024.