Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/10972
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Débitos trabalhistas da administração pública e a nulidade do Enunciado nº 331 do TST

Débitos trabalhistas da administração pública e a nulidade do Enunciado nº 331 do TST

Publicado em . Elaborado em .

1. Rotineiramente, as administrações públicas vêm sofrendo condenações na justiça trabalhista, a título de responsabilidade subsidiária, por contratarem, na condição de tomadores de serviços, empresas prestadoras de serviços trabalhistas (por exemplo, ONGS, OSCIPS), que, ao ficar inadimplentes com seus empregados, acabam por ser reclamadas em ações trabalhistas. A justiça trabalhista, forte no Enunciado 331 do TST (Tribunal Superior do Trabalho), entende que a administração pública, contratante da terceirizada/empregadora, é responsável subsidiária, por culpa in eligendo ou in vigilando, ao lado do reclamado/empregador, pelas dívidas trabalhistas deste para com seus empregados contratados – afinal, a mão de obra serviu à administração pública.

2. Diz o Enunciado nº. 331 do TST, verbis:

"TST Enunciado nº. 331 - Revisão da Súmula nº. 256 - Res. 23/1993, DJ 21, 28.12.1993 e 04.01.1994 - Alterada (Inciso IV) - Res. 96/2000, DJ 18, 19 e 20.09.2000 - Mantida - Res. 121/2003, DJ 19, 20 e 21.11.2003

Contrato de Prestação de Serviços - Legalidade

I - A contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se o vínculo diretamente com o tomador dos serviços, salvo no caso de trabalho temporário (Lei nº 6.019, de 03.01.1974).

II - A contratação irregular de trabalhador, mediante empresa interposta, não gera vínculo de emprego com os órgãos da administração pública direta, indireta ou fundacional (art. 37, II, da CF/1988). (Revisão do Enunciado nº 256 - TST)

III - Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei nº 7.102, de 20-06-1983), de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta.

IV - O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços, quanto àquelas obrigações, inclusive quanto aos órgãos da administração direta, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista, desde que hajam participado da relação processual e constem também do título executivo judicial (art. 71 da Lei nº 8.666, de 21.06.1993). (Alterado pela Res. 96/2000, DJ 18.09.2000)". (grifos deste autor).

3. De fato, ao lermos tão-somente o inciso IV deste Enunciado do TST, temos a falsa impressão de que a justiça trabalhista brasileira está agindo corretamente na aplicação do direito; afinal, a redação é clara quando diz que há responsabilidade trabalhista do tomador de serviços, ainda que se trate de administração pública, pelo inadimplemento de obrigações trabalhistas do empregador. Todavia, a aplicação deste Enunciado encontra óbice intransponível no art. 71, § 1º da Lei de Licitações e Contratos Públicos e na melhor teoria geral do direito, como doravante será visto.

4. Assim prescreve o art. 71, § 1º da Lei de Licitações e Contratos Públicos (Lei nº 8.666/93), verbis:

"Art. 71. O contratado é responsável pelos encargos trabalhistas, previdenciários, fiscais e comerciais resultantes da execução do contrato.

§ 1º. A inadimplência do contratado com referência aos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais não transfere à Administração Pública a responsabilização por seu pagamento, nem poderá onerar o objeto do contrato ou restringir a regularização e o uso das obras e edificações, inclusive perante o Registro de Imóveis". (grifos deste autor).

5. Eis aí uma aporia frontal entre o Enunciado 331, inciso IV, do TST e a Lei Nacional de Licitações e Contratos Públicos em seu art. 71, § 1º: o primeiro responsabiliza a administração pública subsidiariamente, o segundo exclui a responsabilidade subsidiária da administração pública. Como resolver este aparente conflito de normas? Qual a melhor resposta jurídica a ser aplicada a esta contradição normativa? Melhor ainda, a referida contradição normativa é aparente ou real?

6. Vamos beber na fonte límpida e cristalina do maior jurista do século XX: Hans Kelsen. Foi Kelsen quem nos ensinou a diferença entre norma jurídica e proposição jurídica e, por conseguinte, a distinção entre ciência do direito e direito. As normas jurídicas, objeto da ciência do direito, estão na linguagem-objeto, e são os textos jurídicos prescritivos (leis, leis complementares, emenda constitucional, medida provisória) introduzidos no sistema pelas autoridades competentes, qual seja os legisladores; já a ciência do direito, metalinguagem, ou linguagem de sobrenível, é emitida pela doutrina, jurisprudência ou enunciados dos tribunais, e estão num outro patamar, uma vez que não prescrevem condutas, não obrigam, tão-somente descrevem como o direito deve ser segundo tal e qual ótica.

7. Portanto, são dois planos de linguagem jurídica distintos: a ciência do direito e o direito. É o plano do direito que obriga e vincula os operadores do direito, porque deôntico, normativo, suas normas são válidas ou inválidas, é no plano do direito que podemos analisar e conhecer as espécies normativas, que são aquelas arroladas no art. 59 da Constituição Federal, a saber:

Art. 59. O processo legislativo compreende a elaboração de:

I - emendas à Constituição;

II - leis complementares;

III - leis ordinárias;

IV - leis delegadas;

V - medidas provisórias;

VI - decretos legislativos;

VII - resoluções.

Parágrafo único. Lei complementar disporá sobre a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis.

8. Já o plano da ciência do direito é apofântico, emite proposições jurídicas verdadeiras ou falsas, porque como ensina Lourival Vilanova,

"O cientista, porém, não faz o direito: fala sobre ele, menciona-o, toma-o em sua patente existência, pondo aspas nas normas para, em seu discurso de cientista, emitir enunciados sobre o direito." (Cf. "Níveis de Linguagem em Kelsen". In Escritos Jurídicos e Filosóficos. V.2. São Paulo: Axis Mvndi/IBET, 2003, p. 208).

9. Pois bem. O Enunciado 331 do TST está em qual plano da linguagem jurídica, o da ciência do direito ou o plano do direito? Está no plano da ciência. Portanto, o Enunciado 331 TST é de ordem descritiva, apofântica, isto é verdadeiro ou falso em relação ao ordenamento jurídico que tenta descrever. Por estar em plano distinto do art. 71, § 1º da Lei de Licitações e Contratos Públicos (que é norma jurídica!), não pode se SOBREPOR ou REVOGAR tal artigo, uma vez que o Enunciado 331 do TST é metalinguagem científica FALSA ou NULA porque não retrata fielmente o ordenamento jurídico, pelo contrário, FALSEIA-O ao tentar inserir no ordenamento jurídico uma NORMA JURÍDICA que só pode ser inserida via LEGISLADOR, este sim, autoridade competente para introduzir normas jurídicas no plano do direito.

10. Insista-se: os planos de linguagem jurídica são incomunicáveis, no sentido de que um plano de linguagem não pode "REVOGAR" disposições do outro. A saber, o comentário do cientista, uma jurisprudência, um enunciado do TST, não pode revogar uma norma jurídica introduzida por lei no ordenamento jurídico, assim como não faz nenhum sentido que uma norma jurídica do ordenamento tente "revogar" a disposição de uma doutrina, jurisprudência ou enunciado, ou seja, norma revoga norma, ciência revoga ciência.

11. A ciência do direito funda-se no direito, descreve o direito de forma verdadeira (quando coerente com os textos) ou de forma falsa (quanto tende a negar os textos jurídicos), a ciência do direito emite atos de conhecimento (doutrina, jurisprudência, enunciados dos tribunais) que são chamados de atos secundários ou atos teoréticos, já que os atos primários são as normas jurídicas, conforme aponta mestre Vilanova,

"As proposições jurídicas provêm de atos teoréticos e em seu conjunto articulado constituem o sistema da ciência jurídica (dogmática). São atos secundários, fundados nos atos primários, os objetivantes de normas jurídicas". (Cf. Lourival Vilanova, "Níveis de Linguagem em Kelsen", op. cit. p. 207).

12. Ato secundário (enunciado do TST) não pode revogar ato primário (norma jurídica contida no Art. 71, § 1ª da Lei de licitações). Só norma jurídica pode revogar norma jurídica. Portanto, o Enunciado nº 331 do TST é NULO ou FALSO quanto tenta "revogar" o art. 71, §1º da Lei de Licitações e Contratos Públicos. Da mesma maneira, não se sustenta toda a interpretação jurídica que os tribunais vêm ofertando a este conflito aparente de normas. Aparente por quê? Porque não há conflito entre planos de linguagem distintos, já que o art. 71, § 1º é norma jurídica, porém, o Enunciado 331 do TST não o é, ou seja, não é norma jurídica, mas sim proposição jurídica, logo, o conflito não existe.

13. A doutrina oferta outras vertentes de críticas à interpretação que os juízos e tribunais trabalhistas vêm concedendo ao Enunciado 331 do TST no que concerne a responsabilizar a administração pública subsidiariamente pela condenação dos tomadores de serviços. Citamos, aqui, apenas dois dos mais importantes argumentos: A)- o contrato de prestação de serviços entre a empresa/tomadora de serviços e o ente público é contrato administrativo, portanto, regido por normas de direito público, logo, não há que se aplicar a ele as disposições do direito do trabalho; B)- O Enunciado 331 do TST implica em ofensa ao art. 37, II da Constituição Federal, que exigem aprovação em concurso público para ingresso no serviço público e, ao se impor à administração a responsabilização subsidiária pelos débitos trabalhistas da empresa contratada, acaba por se reconhecer, ainda que indiretamente, uma relação de emprego em afronta ao Texto Constitucional.

14. Finalizando, gostaríamos de frisar que admitir que o Enunciado nº 331 do TST, fruto de uma linguagem de sobrenível, não prescritiva e não normativa, possa revogar a aplicação do art. 71, § 1º da Lei de Licitações e Contratos Públicos, este sim, norma jurídica, prescritiva e deôntica, é antes de tudo ignorar raciocínio básico de teoria geral de direito, qual seja, a distinção entre ciência do direito e direito, e, sobretudo, ferir de morte o Texto Constitucional, porque ao responsabilizar subsidiariamente a administração pública na justiça trabalhista acaba por transformar em servidores públicos, funcionários das empresas tomadoras de serviços, em malferimento do art. 37, II da Constituição Federal.


Autor

  • Roberto Wagner Lima Nogueira

    mestre em Direito Tributário, professor do Departamento de Direito Público das Universidades Católica de Petrópolis (UCP) , procurador do Município de Areal (RJ), membro do Conselho Científico da Associação Paulista de Direito Tributário (APET) é autor dos livros "Fundamentos do Dever Tributário", Belo Horizonte, Del Rey, 2003, e "Direito Financeiro e Justiça Tributária", Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2004; co-autor dos livros "ISS - LC 116/2003" (coord. Marcelo Magalhães Peixoto e Ives Gandra da Silva Martins), Curitiba, Juruá, 2004; e "Planejamento Tributário" (coord. Marcelo Magalhães Peixoto), São Paulo, Quartier Latim, 2004.

    Textos publicados pelo autor

    Fale com o autor

    Site(s):

Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NOGUEIRA, Roberto Wagner Lima. Débitos trabalhistas da administração pública e a nulidade do Enunciado nº 331 do TST. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1695, 21 fev. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10972. Acesso em: 28 mar. 2024.