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Tribunal do júri: o questionário e o Projeto de Lei nº 4203/2001

Tribunal do júri: o questionário e o Projeto de Lei nº 4203/2001

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O trabalho analisa projeto em tramitação no Congresso, no que tange aos quesitos apresentados aos jurados nos julgamentos pelo Tribunal do Júri.

Resumo: Apresenta de maneira resumida o Tribunal do Júri e as polêmicas acerca de sua existência. Explica o funcionamento do questionário conforme a legislação atual. Apresenta o Projeto de Lei nº. 4.203/2001 e modificações nela propostas para o questionário. Apresenta a conclusão favorável às modificações propostas para o questionário.

Palavras-chave: Tribunal do Júri; Questionário; Quesitos; Projeto de Lei nº. 4.203/2.001


1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho visa apresentar e analisar as modificações propostas pelo Projeto de Lei nº. 4.203/2.001, em tramitação no Congresso Nacional, especificamente no que tange aos quesitos apresentados aos jurados nos julgamentos dos crimes dolosos contra a vida pelo Tribunal do Júri.

Serão apresentadas a sistemática atual da elaboração do questionário e as polêmicas suscitadas quanto a ela para, a seguir, enfrentar-se o novo sistema proposto pelo referido projeto de lei. Ao fim, analisaremos: a nova sistemática permitirá um melhor funcionamento do Tribunal do Júri ou simplesmente tornará ainda mais tortuosos os julgamentos?

O interesse nesta área de estudo vem de nossa atuação, de fevereiro de 2006 a janeiro de 2008, como escrevente juramentada junto à 4ª. Vara Criminal da Comarca de Cariacica, ES, onde tivemos a satisfação de acompanhar mais de uma centena de julgamentos. Tivemos a oportunidade de conviver diariamente com muitas questões polêmicas, como as seguintes: representatividade dos jurados, exigência de maioria simples de votos para condenação, a complicada tarefa da quesitação em alguns casos concretos, além de questionamentos sobre a real necessidade da existência do Tribunal do Júri.

A quesitação é uma das maiores causadoras de insegurança e nulidades nos julgamentos, daí o interesse em pesquisar o tema de maneira mais detalhada. Afinal, calcula-se que, de cada quatro julgamentos, dois sejam anulados por vícios do questionário ou por decisão contrária à prova dos autos [01]. E em nosso entender, a própria decisão contrária à prova dos autos pode ser ensejada por quesitação deficiente. Pode-se considerar os quesitos como a "alma" dos julgamentos.

Para iniciar nossa exposição, entendemos ser fundamental uma apresentação da instituição do Tribunal do Júri e da polêmica acerca de sua existência.

O Tribunal do Júri, com competência para julgamento dos crimes dolosos contra a vida, é previsto no art. 5º, inc. XXXVIII da Constituição Federal, sendo regulado pelos artigos 406 a 497 do atual Código de Processo Penal. É cláusula pétrea constitucional, sendo uma das garantias individuais do cidadão.

O júri, no modo em que funciona no Brasil, está presente em poucos países: Bélgica, Noruega, Espanha, alguns Cantões na Suíça, Austrália, África do Sul, Inglaterra e Estados Unidos. Na América Latina, só ocorre aqui e na Colômbia [02], existindo também em alguns Estados do México [03]. Está em expansão o modelo do escabinato, ou escabinado, onde fazem parte do Conselho de Sentença cidadãos leigos e juízes togados, que decidem de forma colegiada e, além de julgar, também fixam a pena. Tal sistema está presente, por exemplo, na França, Alemanha, Áustria, Grécia, Itália, Portugal e outros países da Europa Continental [04].

Sobre o significado da posição do Tribunal do Júri como garantia constitucional, escreveu Celso Ribeiro Bastos que:

"(...) nele continua a ver-se prerrogativa democrática do cidadão, uma fórmula de distribuição da justiça feita pelos próprios integrantes do povo, voltada, portanto, muito mais à justiça do caso concreto do que à aplicação da mesma justiça a partir de normas jurídicas de grande abstração e generalidade" [05].

Porém, se originariamente surgiu como uma forma de permitir o julgamento "do povo pelo povo", dos acusados por seus semelhantes, o Júri sofre atualmente muitas críticas relativas ao conceito de semelhantes que sua sistemática permite existir. Afinal, para ser jurado, somente é exigido algo muito abstrato, difícil de conceituar: notória idoneidade. Na prática, o conceito de idoneidade refletirá as crenças do magistrado responsável pela seleção do corpo de jurados. E a partir de tal composição, delineia-se o padrão de comportamento a ser exigido da sociedade.

O problema é que os jurados são, em geral, funcionários públicos, professores, profissionais liberais, empresários. A própria necessidade de se estar a disposição do júri por toda uma sessão – que, no caso de Cariacica, dura um mês – já dificulta a escolha e permanência de jurados, por exemplo, que trabalhem na economia informal. Afinal, quem irá sustentar seus gastos domésticos durante o período?

Do outro lado, temos os réus: em regra, pobres, traficantes de drogas ou, no mínimo, pessoas que não tiveram acesso a sequer metade das oportunidades de educação e emprego da vasta maioria dos jurados. Em regra, serão duas realidades muito distantes. Podem ser mesmo chamados, jurados e réus, de semelhantes?

Tratando da simbologia presente no Tribunal do Júri, Streck [06] chega mesmo a demonstrar que as desigualdades sociais, no âmbito econômico e cultural, transparecem até mesmo na forma espacial de organização dos locais onde funcionam as sessões do Júri. Destaca o autor que o público é separado geopolíticamente do plano onde ficam os advogados, estudantes de direito e jornalistas – estes ficam mais perto do local onde a ação acontece. O Promotor de Justiça fica ao lado direito do juiz-presidente do Júri, e, à esquerda deste, o escrivão, que só anota o que lhe é ditado pelo juiz. O Defensor do réu fica abaixo do tablado. O réu fica no centro da sala, em regra, ladeado pelos policiais que fazem sua escolta.

Questões como estas alimentam a eterna polêmica acerca da existência ou não do júri.

Nelson Hungria chegou a conceituar o Tribunal do Júri como "osso de megatério a pedir museu" [07].

Para José Frederico Marques,

"(...) a independência dos juízes togados no Estado de Direito, e as transigências dos jurados com os "senhores do dia" em democracias de pouca vitalidade ou em regimes autoritários, mostraram que no plano político não há mais razão de ser para a manutenção do júri. (...) Na terra da Common Law, onde o mecanismo das instituições jurídicas, com seu funcionamento todo peculiar, tanto difere dos sistemas dos demais países onde impera a tradição romanística, é o Júri um instituto secular e florescente, cuja prática tem produzido os melhores resultados." [08]

Para o referido autor, o júri, nos países cujo direito se inspira no modelo romano, teria perdido seu aspecto político com a conquista da independência pelo poder judiciário – a liberdade dos cidadãos não seria mais tutelada pelo Júri, e sim pelo regime democrático - e sua inferioridade com relação ao julgamento técnico, com base no direito e na razão, teria se tornado patente, pois sua objetividade e rigidez não significariam crueldade, e sim repúdio à impunidade [09].

Também fez críticas à instituição do Júri o juiz Walter Mayerovitch, em debate com o advogado criminalista Alberto Zacharias Toron promovido pela Folha de São Paulo, publicado em 31/05/1997, debate este que sintetizou em boa medida a discussão acerca da existência do instituto [10].

Mayerovitch relatou casos de influência direta da imprensa nos julgamentos e destacou a necessidade de os juízes especializados fundamentarem minuciosamente seus julgamentos, enquanto o mesmo não é exigido do júri popular.

Alberto Zacharias Toron contra argumentou afirmando que, apesar de ter defeitos, o júri ainda não encontrou concorrente à altura que o substituísse com vantagem. Acredita que o júri oxigena a justiça brasileira, e vê como incorreto o pensamento de que só o julgamento técnico é acertado e capaz de fazer justiça pois, para ele, os juízes togados não estão a salvo de critérios ideológicos e emoções. Aliás, para ele, pode-se chegar, em determinados casos, a um julgamento mais próximo da realidade através de jurados leigos do que através de juízes togados, pois a maior exigência destes quanto à prova, por exemplo, muitas vezes a inviabiliza.

Toron destaca o papel do júri de representar o pensamento de uma época, prestigiando teses inovadoras, pois nosso ordenamento, como é por todos sabido, não consegue acompanhar as mudanças sociais, razão pela qual prevê institutos para garantir que continue servindo a seu propósito, a Justiça. O júri seria, portanto, um dos modos de oxigenar o judiciário.

Deve ser mencionado ainda que, apesar de toda a polêmica, há quem proponha a ampliação da competência do Tribunal do Júri. É o caso de Gusman:

"(...) outros delitos, definidos como graves, podem ser objeto de julgamento pelo juízo monocrático, é de ser julgado coletivamente, o que por certo despertaria no cidadão maior sentido de responsabilidade ao ser escolhido para julgar outros crimes com resultado morte, que agridem a ordem, causam intranqüilidade em um momento que a imprensa mundial taxa-nos de violentos, que a sociedade se revolta contra o Poder Judiciário, nada é mais justo que ela também possa participar, cooperando para a ampliação de julgamentos pelo Tribunal Popular do Júri e que ocorra a simplificação de seus quesitos para tornar mais fácil a tarefa de aplicar a lei."cil a tarefa de aplicar a lei" mais fr do Jde violentaara julgar outros crimes com resultado morte, que agridem a ordem, causam [11]

Todavia, independente de haver ou não consenso a respeito de sua existência, o júri aí está, consolidado, cláusula pétrea em nosso ordenamento. Questioná-lo deve ser meramente um caminho para aperfeiçoá-lo, e é com este espírito que analisaremos as mudanças propostas para seu funcionamento..


2 A SISTEMÁTICA ATUAL DO QUESTIONÁRIO

Os quesitos são as perguntas que o juiz faz ao Conselho de Sentença a fim de colher sua decisão, que será retratada na Sentença que decidirá o destino do réu. Devem tratar do fato criminoso e suas circunstâncias, além das teses sustentadas por Acusação e Defesa.

Há quesitos obrigatórios, que são os decorrentes da classificação penal constante da pronúncia e articulada pelo libelo, além do quesito genérico sobre atenuantes.

Os quesitos são formulados com base nas seguintes fontes: o libelo-crime acusatório e seu eventual aditamento, a acusação oral, a contrariedade do libelo, quando oferecida, o interrogatório do acusado, a defesa oral, os debates (quando tratar-se de agravantes ou desclassificação favorecedora do réu, casos em que o Órgão acusatório ou a Defesa devem requerer os quesitos apropriados) e, por fim, o juiz presidente, ao formular quesitos sobre as atenuantes que entenda adequadas ao caso [12].

O art. 484 do Código de Processo Penal traz as regras para a formulação dos quesitos:

"Art. 484. Os quesitos serão formulados com observância das seguintes regras:

I - o primeiro versará sobre o fato principal, de conformidade com o libelo;

II - se entender que alguma circunstância, exposta no libelo, não tem conexão essencial com o fato ou é dele separável, de maneira que este possa existir ou subsistir sem ela, o juiz desdobrará o quesito em tantos quantos forem necessários;

III - se o réu apresentar, na sua defesa, ou alegar, nos debates, qualquer fato ou circunstância que por lei isente de pena ou exclua o crime, ou o desclassifique, o juiz formulará os quesitos correspondentes, imediatamente depois dos relativos ao fato principal, inclusive os relativos ao excesso doloso ou culposo quando reconhecida qualquer excludente de ilicitude;

IV - se for alegada a existência de causa que determine aumento de pena em quantidade fixa ou dentro de determinados limites, ou de causa que determine ou faculte diminuição de pena, nas mesmas condições, o juiz formulará os quesitos correspondentes a cada uma das causas alegadas;

V - se forem um ou mais réus, o juiz formulará tantas séries de quesitos quantos forem eles. Também serão formuladas séries distintas, quando diversos os pontos de acusação;

VI - quando o juiz tiver que fazer diferentes quesitos, sempre os formulará em proposições simples e bem distintas, de maneira que cada um deles possa ser respondido com suficiente clareza.

Parágrafo único. Serão formulados quesitos relativamente às circunstâncias agravantes e atenuantes, previstas nos arts. 44, 45 e 48 do Código Penal, observado o seguinte:

I - para cada circunstância agravante, articulada no libelo, o juiz formulará um quesito;

II - se resultar dos debates o conhecimento da existência de alguma circunstância agravante, não articulada no libelo, o juiz, a requerimento do acusador, formulará o quesito a ela relativo;

III - o juiz formulará, sempre, um quesito sobre a existência de circunstâncias atenuantes, ou alegadas;

IV - se o júri afirmar a existência de circunstâncias atenuantes, o juiz o questionará a respeito das que Ihe parecerem aplicáveis ao caso, fazendo escrever os quesitos respondidos afirmativamente, com as respectivas respostas."

Em atendimento ao disposto no inciso VI, a respeito da necessidade da clareza nos quesitos, Adriano Marrey e Alberto Silva Franco destacam que a forma negativa não deve estar presente no questionário, pois proposições ao mesmo tempo interrogativas e negativas podem ser confusas aos jurados, tornando suas respostas duvidosas, ambíguas, contraditórias [13]. Os quesitos não devem ser formulados na forma negativa nem mesmo quando o texto legal estiver redigido de forma negativa. Por exemplo, no caso da embriaguez não completa por força maior ou caso fortuito, prevista no artigo 28, inc. II, §2º do Código Penal:

"A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, por embriaguez, proveniente de caso fortuito ou força maior, não possuía, ao tempo da ação ou da omissão, a plena capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento." (grifo nosso)

Poder-se-ia pensar que esta seria a forma correta de elaborar o quesito, com relação à primeira parte (entender o caráter ilícito do fato):

"O réu, (...), em virtude de embriaguez, não possuía, ao tempo do crime, a plena capacidade de entender o caráter ilícito do fato?"

Mas se o quesito for colocado desta forma, o significado de uma resposta "sim" seria ambíguo. Como saber se o jurado quis dizer "sim, a proposição é verdadeira, o réu não possuía", ou "sim, ele possuía"? Ou ainda "Não, o réu não possuía" ou "Não, a proposição não é verdadeira, o réu possuía?".

Eis a forma mais acertada de se formular o quesito, mesmo tendo o Código Penal utilizado a forma negativa:

"O réu, (...), em virtude de embriaguez, possuía, ao tempo do crime, a plena capacidade de entender o caráter ilícito do fato?"

Desta forma, se a resposta for "sim", claramente entendeu o jurado que o réu tinha plena capacidade. Se a resposta for "não", entendeu o jurado que o réu não tinha a plena capacidade, e ocorrerá a redução da pena.

A jurisprudência é pela nulidade do júri em caso de quesito redigido na forma negativa:

"HC 66494 / SP - SÃO PAULO. Relator: Ministro Francisco Rezek. Publicação: DJ 16-09-1988. Ementa: ''HABEAS CORPUS''. JÚRI. QUESITAÇÃO DEFEITUOSA. INDAGAÇÃO EM FORMA NEGATIVA. NULIDADE. ANULA-SE O JÚRI ONDE FORMULADAS INDAGAÇÕES NA FORMA NEGATIVA, VISTO QUE SEMELHANTE PRATICA PRODUZ COMPLEXIDADE E FAVORECE O ERRO NA MANIFESTAÇÃO DOS JURADOS. ''HABEAS CORPUS'' CONCEDIDO."

Haverá tantas séries de quesitos quanto forem os réus, e se forem diversos os pontos de acusação (ou seja, se houver pluralidade de crimes), também deverão ser formuladas séries distintas para cada um.

Os quesitos devem ser apresentados, em regra, na seguinte ordem: quesito sobre o fato principal, seguido pelos relativos às teses da Defesa e, após, os quesitos relativos às qualificadoras. Por fim, os relativos às causas de aumento e diminuição de pena. A presença, ao fim, de um quesito geral sobre atenuantes é obrigatória, sob pena de nulidade. Detalhemos melhor cada uma destas etapas.

2.1 QUESITOS REFERENTES AO FATO PRINCIPAL

O quesito inicial deve tratar da materialidade do fato criminoso e da autoria. Destaque-se aqui que, no dia a dia forense, se há confissão do réu e a tese da defesa não é a negativa de autoria, o quesito, com a anuência das partes, não costuma ser votado.

Em caso de crime tentado, na seqüência deve ser elaborado o quesito que trata da existência ou não de animus necandi, e sua resposta pode ocasionar tanto o reconhecimento de uma tentativa de homicídio quanto uma desclassificação para outro crime.

Em caso de crime consumado, elaborar-se-á, ao invés do quesito sobre a tentativa, o relativo à letalidade, ou seja, será perguntado aos jurados se as lesões ocasionadas pelo agir do réu foram a causa eficiente da morte.

Em que pese o posicionamento de alguns advogados, que solicitam quesito específico também para a desistência voluntária quando esta é a tese por eles defendida, entendemos que a hipótese de desistência voluntária já está inserida na resposta a este quesito. Afinal, se desistiu voluntariamente, tal desistência, por não se tratar de circunstância alheia à vontade do réu, é que impediu a consumação do crime. Bastaria que o jurado respondesse negativamente ao quesito. Tal é o posicionamento que vem sendo adotado nos julgamentos na Comarca de Cariacica. E não é outro o posicionamento adotado pelo STJ:

"(...) 2. Em respondendo a defesa com a tese da desistência voluntária à acusação de homicídio tentado, a formulação de um único quesito decide a tese acolhida pelos jurados que, afirmando ou negando a tentativa, negarão ou afirmarão a desistência, respectivamente, bem certo que, no caso de homicídio tentado, o quesito a ela relativo há de anteceder aos da defesa alegada, porque próprio do fato principal" (STJ - HC 28623 / PR – Rel: Min. Hamilton Carvalhido - DJ: 21.11.2005)

De destaque o posicionamento de Hermínio Alberto Marques Porto, que entende que há hipóteses de teses defensivas que não conseguem apreciação se só forem formulados os quesitos acima descritos [14]. Eis o exemplo: em julgamento, suposta conduta do réu seria a de efetuar disparos de revólver, tendo projéteis lesado a vítima. A Defesa pode: a) aceitar a autoria dos disparos, podendo ainda: a.1) dizer que foram efetuados contra a vítima ou a.2) que não foram efetuados contra a vítima. Mas, em qualquer dos casos, pode negar que a vítima tenha sido atingida por qualquer projétil que tenha vindo da arma do réu, e sim, por projétil que tenha vindo da arma de terceira pessoa. A Defesa pode ainda: b) aceitar a autoria dos disparos, mas alegar que a vítima também tenha sido ferida por projéteis de arma de terceira pessoa, aceitando assim parte das lesões constantes do laudo. A solução, para o autor, é a divisão do primeiro quesito, para tratar exatamente sobre que projéteis atingiram a vítima, sobre que lesões foram efetivamente causaram os projéteis que as atingiram e foram provenientes de arma do réu.

Nas hipóteses "a", respondendo-se somente aos quesitos tradicionais sobre materialidade e autoria, a Defesa ficaria impossibilitada de obter a desclassificação (em a.1., para homicídio tentado, e em a.2., para crime de perigo de vida). Torna-se necessária a divisão do primeiro quesito

Na hipótese a.1, primeiro se perguntará aos jurados se o réu efetuou disparos e, num segundo momento, sobre o relacionamento da ação do réu com as lesões da vítima ("Projéteis dos mencionados disparos atingiram a vítima, causando-lhe as lesões de fls. (...)?"). Se a resposta for "sim" a ambos, o crime terá sido considerado conforme classificado na pronúncia. Se a resposta for "sim" ao primeiro quesito e "não" ao segundo, será elaborado o terceiro quesito, que indagará a respeito da tentativa, na forma tradicional.

Na hipóteses a.2, de forma semelhante, aos jurados será perguntado se o réu efetuou disparos e, num segundo momento, sobre o relacionamento da ação do réu com as lesões da vítima ("Projéteis dos mencionados disparos atingiram a vítima, causando-lhe as lesões de fls. (...)?"). Se a resposta for "sim" a ambos, o crime terá sido considerado conforme classificado na pronúncia. Se for "não" ao segundo quesito, a tese defensiva resta vitoriosa, ficando a cargo do Juiz Presidente a valoração das ações cometidas.

Na hipótese "b", a tese da defesa pode ter duas implicações possíveis: b.1) aceitar a autoria do homicídio, mas para efeitos de aplicação da pena, debates sobre qualificadoras, etc, pode a defesa desejar a especificação das lesões causados pelo réu; b.2) repelir o nexo entre as lesões e a morte, para que o réu responda por b.2.a)lesões corporais ou b.2.b)tentativa de homicídio.

Na hipótese b.1. primeiro deverá ser elaborado quesito especificando as lesões ("No dia, local, hora, com emprego de revólver, o réu efetuou disparos contra a vítima que, atingida, sofreu as lesões seguintes: (...), descritas no laudo de fls.?"). Após, para que o fato classificado na pronúncia seja integralmente votado e para que os jurados possam se manifestar sobre as totalidade das lesões, será colocado novo quesito ("As demais lesões descritas no laudo de fls... foram causadas pelo réu?"). Por fim, terceiro quesito relacionará as lesões que foram aceitas pelo Conselho de Sentença como sendo praticadas pelo réu com a morte do ofendido (quesito tradicional sobre a letalidade). Se for entendido que o réu só causou algumas lesões, ou mesmo todas as lesões, mas estas lesões não foram a causa suficiente da morte, o crime é desclassificado. E se as lesões causadas pelo réu foram relacionadas como a causa da morte, obviamente, consumado restará o crime.

Na hipótese b.2.a., os quesitos serão escrito na ordem e forma acima, sendo que, se aceito o primeiro quesito, a tese defensiva vence, cabendo ao Juiz Presidente decidir sobre as lesões. Se aceito o segundo, o terceiro será votado sem a limitação das lesões especificadas e, se este for votado negativamente, novamente caberá ao Juiz valorar as lesões.

Na b.2.b., se indagará dos jurados sobre as lesões efetivamente causadas pelo réu e, das que forem consideradas por ele causadas, se se relacionam com a morte. Caso não se relacionem, será feito quesito sobre a tentativa.

Em caso de autoria de crime de homicídio tentado, com resultado de lesões na vítima, se a defesa nega a autoria dos disparos, a tese estará satisfeita, na independência de quesitos especiais, com a negativa do primeiro quesito que cuida da autoria e lesões. Mas se a defesa aceita a autoria dos disparos, 1. negando que a vítima tenha sido atingida por eles ou 2. aceitando ter causado somente algumas lesões, o réu 1. não será punido por crime de lesões ou 2. somente será punido por crime de lesões ou ficará limitado às penas relativas aos incisos do §1º. do art. 129. Em suma, também se aplica a divisão do quesito sobre o fato principal em crime tentado, de forma semelhante à descrita para o consumado.

2.2 QUESITOS REFERENTES ÀS TESES DEFENSIVAS

A seguir, serão apresentados os quesitos da Defesa, que se originam nas fontes anteriormente mencionadas. Teses defensivas são as decorrentes do art. 484, III do Código de Processo Penal, ou seja, deferentes a circunstâncias que por lei isentem de pena, excluam o crime ou o desclassifiquem. Ou, conforme o inc. IV, que possibilite a diminuição da pena. Há também as teses defensivas que não implicam a redação de quesitos, basta a resposta negativa a quesitos obrigatórios para acolhê-las – é o caso, por exemplo, da negativa de autoria, e de quando se nega a relação entre as lesões e o resultado morte.

Porto destaca que as hipóteses previstas no art. 386 do Código de Processo Penal são impróprias para apresentação de quesitos, por serem destinadas ao Juiz togado singular e aos integrantes (também togados) de órgãos colegiados. O autor menciona exemplo de julgamento em que foi indagado dos jurados se "as provas contidas nos autos são insuficientes para a condenação no réu?" [15] – tratava-se de julgamento do Processo n. 786/99, da Comarca de Curionóponis e Município de Eldorado dos Carajás, em que o réu era oficial da Polícia Militar.

Tal quesitação, segundo o autor, seria desnecessária. Afinal, se a defesa sustenta a inexistência de prova de ter o réu concorrido para a ação penal, basta que os jurados neguem o quesito que relacione o réu com a materialidade do fato. Se, por outro lado, pretende a defesa que o Conselho de Sentença reconheça causa que exclua o crime ou isente o réu de pena, articulará oralmente os motivos e fontes doutrinárias para tal. Por fim, se alega que não há prova suficiente para a condenação, deve mostrar aos jurados que a dúvida deve ensejar uma solução que beneficie o réu.

Devido à aplicação do princípio da ampla defesa, a Defesa pode defender teses contraditórias, e exigir a quesitação das mesmas. É defeso ao juiz, portanto, se uma tese for negada pelos jurados, dar uma outra como prejudicada por ser com a primeira conflitante.

Por exemplo, pode a Defesa pode sustentar a negativa de autoria, mas dizer que, caso os jurados entendam que foi o réu o autor do crime, que assim agiu por legítima defesa. E se assim não entenderem os jurados, que o homicídio foi privilegiado, por se tratar de reação a injusta provocação da vítima. Não é outro o entendimento do STF:

"HABEAS CORPUS. DIREITO PROCESSUAL PENAL. HOMICÍDIO QUALIFICADO-PRIVILEGIADO TENTADO. VIOLENTA EMOÇÃO. RECURSO QUE DIFICULTOU A DEFESA DA VÍTIMA. COMPATIBILIDADE DAS CIRCUNSTÂNCIAS. QUESTIONÁRIO. ORDEM LEGAL. TENTATIVA. RECONHECIMENTO. QUESITO SOBRE DESISTÊNCIA VOLUNTÁRIA. DESNECESSIDADE. (...) 2. Quando a defesa sustenta duas teses inconciliáveis - não participação do réu na autoria do delito e sua participação, mas em crime diverso - é incontornável que na formulação dos quesitos aflorem tais questões contraditórias; em tal caso, não há nulidade (CPP, art. 564, pár. único) quando não ocorre obstáculo à compreensão das teses pelos jurados, cujas respostas foram coerentes". (STF - HC 73930 – Rel. Min. Maurício Corrêa – DJ: 06.06.1997)

Porém, se foram apresentadas pelo réu diferentes versões para o crime e, devido aos debates, não foram formulados quesitos que abarcassem todas elas, contando tal decisão com a anuência das partes, em especial da Defesa, não se pode pleitear a nulidade com fundamento na ausência de tais quesitos. Sobre tal fato, observem-se o seguinte julgado:

"Direito Processual Penal. Júri. Teses da defesa. Quesitos. Nulidades. Tendo o réu apresentado versões contraditorias, nos interrogatorios a que se submeteu (no inquerito policial, na instrução judicial sumaria e em Plenário do Júri), e havendo o Defensor optado por tese compativel com uma delas, porque mais verossimil, ante os demais elementos dos autos, não e de se reconhecer a nulidade do julgamento, sob o fundamento de que os quesitos não abordaram as demais versões. Sobretudo em se verificando que o Defensor concordou com sua formulação, não arguindo a nulidade, nem mesmo em apelação. Indemonstrado, assim, prejuizo para defesa, denega-se o ´habeas corpus´". (STF – HC 70748 – Rel. Min. Sydney Sanches. DJU 23/09/1994).

2.3 QUESITOS REFERENTES ÀS QUALIFICADORAS

A seguir, devem ser elaborados os quesitos referentes às qualificadoras, que são quesitos legais, obrigatórios.

Tais quesitos devem, além das expressões usadas no Código Penal como, por exemplo, "motivo fútil", descrever a conduta que mereceu a condição de qualificadora. No entender de Porto, entretanto, em casos em que a conduta é de complexa e cumulada de circunstâncias, admite-se a simples menção da expressão legal, pois a descrição da conduta deve estar presente na denúncia ou queixa e tratada na pronúncia [16].

Porto destaca a importância de, no quesito sobre o fato principal, não ser utilizado o vocábulo previsto para qualificar, sob pena de condicionamento, pelos jurados, da resposta deste quesito ao da qualificadora [17].

A respeito do homicídio privilegiado qualificado, é majoritária na doutrina [18] a aceitação de sua existência, porém somente no caso das qualificadoras de cunho objetivo – por exemplo, o meio cruel. Assim também vem se firmando a jurisprudência. Sobre o assunto, destacamos outro trecho de julgado anteriormente citado, que reflete o posicionamento do STJ e do STF sobre o tema:

"HABEAS CORPUS. DIREITO PROCESSUAL PENAL. HOMICÍDIO QUALIFICADO-PRIVILEGIADO TENTADO. VIOLENTA EMOÇÃO. RECURSO QUE DIFICULTOU A DEFESA DA VÍTIMA. COMPATIBILIDADE DAS CIRCUNSTÂNCIAS. QUESTIONÁRIO. ORDEM LEGAL. TENTATIVA. RECONHECIMENTO. QUESITO SOBRE DESISTÊNCIA VOLUNTÁRIA. DESNECESSIDADE. 1. A jurisprudência dos Tribunais Superiores, incluidamente do Excelso Supremo Tribunal Federal, é firme na compreensão de que as circunstâncias privilegiadoras, de natureza subjetiva, e as qualificadoras, de natureza objetiva, podem concorrer no mesmo fato-homicídio, à falta de contradição lógica." (STJ - HC 28623 / PR – Rel: Min. Hamilton Carvalhido - DJ: 21.11.2005)

2.4 QUESITOS REFERENTES A CAUSAS DE AUMENTO OU DIMINUIÇÃO DE PENA, CIRCUNSTÂNCIAS AGRAVANTES GENÉRICAS E CIRCUNSTÂNCIAS ATENUANTES

A seguir, devem ser elaborados os quesitos sobre as causas de aumento e diminuição de pena, agravantes genéricas e atenuantes.

Circunstâncias agravantes são as previstas nos art. 61 e 62 do Código Penal. Sua inclusão no questionário depende de motivação da acusação, no libelo ou em plenário. Não podem estar presentes no questionário agravantes e qualificadoras com correspondência. Relativo a este assunto, interessante o seguinte julgado, implicação lógica do que foi afirmado:

"Tendo a sentença de pronúncia afastado as qualificadoras da denúncia, não pode o libelo acusatório referir-se às mesmas circunstâncias como agravantes genéricas" (RHG 79538 – STF – Rel. Min. Sydney Sanches – DJ: 04/04/2000).

Se os jurados reconhecerem agravante repelida por provas, trata-se de decisão manifestamente contrária à prova dos autos, ensejando novo julgamento [19].

Sobre as circunstâncias atenuantes, é obrigatório ao Juiz Presidente formular um quesito genérico ao final do questionário: "Existem circunstâncias atenuantes em favor do réu?"

Se os jurados responderem afirmativamente, o Juiz formulará quesitos específicos sobre cada atenuante prevista em lei (rol do art. 65 do Código Penal) que entender plausível no caso. Se não entender que nenhuma seja plausível, dará por encerrada a votação, considerando que a aceitação pelos jurados do quesito genérico seja uma manifestação deles por uma atenuação da pena.

Se a defesa propõe quesito específico sobre atenuante, este será colocado no final do questionário, mas antes do quesito genérico e, se aceito, a votação fica encerrada, por ter o quesito de informação genérica perdido sua motivação, satisfeita a obrigatoriedade. Se rejeitado pelos jurados, será votado o quesito genérico.


3 O PROJETO DE LEI Nº. 4.203/2.001

O Tribunal do Júri sofreu poucas alterações desde a entrada em vigor do Código de Processo Penal, em 01/01/1942. Por este motivo e pelos expostos na introdução deste trabalho, o Tribunal do Júri sempre sofreu críticas, entre as quais as seguintes: demora na realização dos julgamentos, excesso de formalismo, julgamentos demorados e grande número de processos anulados por questões formais. Para eliminar estes problemas, elaborou-se um anteprojeto de lei que tinha por objetivo simplificar e agilizar o Tribunal do Júri.

A Comissão de Reforma teve como base, principalmente, o Projeto nº. 4.900/1.995 (elaborado pela Comissão de Reforma do Código de Processo Penal), que teve como relator René Ariel Dotti. Ele foi relator também na nova comissão, a chamada "Comissão Pelegrini", mas posteriormente, por renunciar ao cargo, foi substituído por Rui Stoco. A versão final do anteprojeto, já incluídas as sugestões feitas após debates públicos promovidos, foi aprovada em 10 de outubro de 2000, durante a 11ª. Reunião da Comissão de Reforma do Código de Processo Penal, que ocorreu no Tribunal de Alçada de São Paulo.

Após passar pelo Ministro da Justiça e Presidência da República, o projeto foi encaminhado à Câmara dos Deputados em 08/03/2001. Em 20/12/2001, o relator da Comissão de Constituição e Justiça e de Redação, Deputado Ibrahim Abi-Ackel, apresentou parecer pela aprovação do projeto, com uma emenda ao art. 327. Em 13/03/2002, a Comissão de Constituição e Justiça e de Redação opinou unanimemente pela aprovação do projeto com a emenda, conforme o parecer do Relator.

Cinco propostas de emendas ao projeto foram apresentadas no Plenário da Câmara dos Deputados em 06/03/2007. Devido ao escopo deste trabalho, cabe destacar aqui somente uma das modificações propostas pela EMP-4/2007, a do art. 483, que passa a prever quesitos com relação a excesso culposo de legítima defesa, participação dolosamente distinta, desistência voluntária e erro de tipo ou de proibição inescusável, cuja formulação deverá ser feita oportunamente. A formulação de quesitos sobre tais assuntos era séria lacuna apontada pela doutrina.

A redação final, com a aceitação parcial das mudanças propostas nas cinco emendas, foi aprovada pela Câmara dos Deputados em 07/03/2007. Foram aceitas todas as modificações referentes aos quesitos. Remetida ao Senado para apreciação, foi aprovada em 27/12/2007, sem modificações (a única emenda proposta não foi encaminhada a votação).

Tratemos agora das mudanças propostas no projeto, especificamente, quanto à quesitação. Para maiores informações sobre as demais modificações propostas pelo projeto de lei, bem como suas alterações ocorridas durante sua tramitação, remetemos a nossa monografia [20], mais extensa e detalhada, sobre o tema, e recomendamos também a obra de Ferrari [21]. A tramitação atual do projeto de lei pode ser consultada nos sites da Câmara dos Deputados e do Senado Federal [22], em consulta simples pelo número do projeto.

3.1. O QUESTIONÁRIO NO PROJETO DE LEI Nº 4.203/2.001

De plano, o projeto de lei altera as fontes de elaboração do questionário, que passam a ser a decisão de pronúncia, o interrogatório do acusado e as alegações das partes.

Ressalvamos que, obviamente, alegações da acusação não podem aumentar a carga acusatória pendente sobre o réu, sob pena de surpreender a defesa e fugir dos termos da pronúncia. Mas nem por isso deixa de ser fonte, pois o representante do Ministério Público pode alterar o posicionamento anteriormente assumido quanto aos fatos, pedindo, por exemplo, o reconhecimento de excesso culposo ou doloso, em fato que anteriormente classificara como homicídio qualificado.

É prevista a existência de três quesitos básicos, sendo o primeiro, sobre a materialidade do fato, o segundo, sobre a autoria ou participação, e, por fim, se as respostas a estes dois quesitos forem afirmativas, um terceiro, que representa a maior inovação no projeto concernente ao questionário: o quesito "Deve o acusado ser absolvido ou condenado?". Ou seja, além das cédulas com as respostas "sim" e "não", os jurados integrantes do Conselho de Sentença recebem também cédulas com as palavras "absolvo" e "condeno". Se a votação for negativa em um dos dois primeiros quesitos, a votação estará encerrada e o réu, absolvido.

Com a existência deste terceiro quesito, torna-se desnecessário questionar os jurados sobre causas de exclusão de ilicitude ou culpabilidade pois, se os jurados entenderem estar presentes quaisquer causas que tenham este efeito sobre o réu (ainda que sequer presentes em lei), basta que votem pela absolvição do réu no terceiro quesito.

Se o posicionamento dos jurados for pela condenação, serão formulados mais dois quesitos, relativos à existência de causa de diminuição de pena alegada pela defesa e à existência de qualificadora ou causa de aumento de pena.

Se for sustentada a desclassificação, de acordo com o art. 483, §6º., deve ser formulado quesito a ser respondido em seguida à afirmação da autoria ou participação.

De acordo com o projeto, não serão mais questionados os jurados sobre a existência de circunstâncias agravantes ou atenuantes, passando a decisão sobre tais causas para a competência do Juiz Presidente, ao prolatar a Sentença.

Por fim, o projeto propõe a exigência da redação dos quesitos em proposições afirmativas (artigo 482).

Citaremos a seguir os problemas apontados por Ferrari na nova sistemática proposta no texto original do projeto. [23]

A primeira questão problemática vista pelo autor ocorreria no caso de a defesa alegar, como tese principal, a ocorrência de uma excludente de ilicitude e, como tese secundária, o excesso culposo, enquanto a acusação sustenta, por exemplo, a condenação por homicídio doloso. Neste caso, se os jurados desejarem adotar a tese principal da defesa, responderão, no terceiro quesito, "absolvo". Mas se responderem "condeno", como saber se estarão adotando a tese secundária da defesa, ou acolhendo a tese da acusação? Para o autor, a solução seria prever a possibilidade de formulação de um quesito específico para os casos de desclassificação imprópria, após a votação do terceiro quesito, se a resposta for "condeno" [24]. Relembramos que, no projeto de lei original, somente estava previsto o quesito sobre a desclassificação própria, conforme o artigo 483, §6º., que deveria ser respondido em seguida à afirmação de autoria ou participação.

Ousamos pontuar que o problema ocorreria mesmo em hipótese mais simples. Senão, vejamos. Para o autor, se a defesa adota como tese a ocorrência de excludente de ilicitude e a acusação muda a tese, admitindo a excludente mas alegando que houve excesso doloso ou culposo, e os jurados respondem "condeno" ao terceiro quesito, estariam "automaticamente" acolhendo a tese do excesso sustentada pela acusação. Para nós, não é realista esta aceitação automática. Não estando os jurados "presos" ao entendimento Promotor de Justiça, poderiam, por exemplo, desejar condenar o réu por homicídio doloso, quem sabe até qualificado, se assim for possível, de acordo com a pronúncia. Interromper a votação após a resposta "condeno" não nos parece razoável, por impedir a manifestação plena do Conselho de Sentença.

Outro problema apontado por Ferrari ocorreria no caso em que a Defesa, apresentando duas teses, alegasse primeiramente a ocorrência de uma excludente de ilicitude, por exemplo a legítima defesa, e subsidiariamente, a inimputabilidade. Para adotar quaisquer das teses, bastaria a resposta "absolvo" para o terceiro quesito. Mas novamente surge o problema: como saber qual foi a tese adotada pelos jurados? Se a primeira, tratar-se-á de absolvição plena; se a segunda, de absolvição imprópria, com a imposição de medida de segurança.

De igual forma, a resposta "condeno" não poderia ensejar a adoção da tese subsidiária, pela natureza de sentença condenatória, pois poderia haver conflito com a tese sustentada pela acusação. O autor propõe a previsão de um quesito específico sobre a inimputabilidade, no caso do art. 26, caput, que deveria ser votado após a afirmação da absolvição, se a tese for sustentada por qualquer das partes.

De nossa parte, pensamos que, com as alterações ao projeto trazidas pela aprovação da EMP-2/2007 pela Câmara dos Deputados, que modificou o parágrafo único do art. 415, dando ao juiz a possibilidade de conceder ao réu a absolvição imprópria, aplicando medida de segurança, se houver prova cabal da inimputabilidade, a não ser que exista tese defensiva subsidiária cuja aceitação pode levar à absolvição plena, a situação mudou. Deixarão de ir à júri os casos em que exista prova cabal da inimputabilidade, por trata-se de prova estritamente técnica, em nossa opinião (prova que só poderia ter questionada sua validade e a forma de sua obtenção, mas nesse caso, através das devidas impugnações, e não por votação em plenário! E processo com este tipo de pendência não poderia ir a julgamento).

Destarte, se os jurados responderem "absolvo" ao terceiro quesito, significa que aceitaram a tese que levou à absolvição plena, se responderem condeno, significará que aceitaram a tese da acusação – neste momento, o Juiz Presidente decidiria sobre aplicação de medida de segurança, se existir prova cabal da inimputabilidade. Preferimos acreditar, aliás, que a própria acusação a pedirá, em caso de existência de prova... Se não houver tal prova, a condenação seria a prevista para o crime, nos limites fixados em lei, ou seja, seria tomado o procedimento normal para aplicação da pena. Mesmo antes da EMP 2/2007, já acreditávamos que a decisão de julgar o réu inimputável ficaria a cargo do Juiz Presidente, e não dos jurados.

Continuando, Ferrari vê como problemática também a ausência de previsão, no referido projeto de lei, de quesito específico sobre a "participação em crime menos grave" – novamente, seria impossível conhecer a real vontade dos jurados com a resposta "condeno". Em seu entender, a questão poderia ser solucionada pela inclusão de quesito sobre a participação em crime menos grave, ou também pela formulação de quesito para a desclassificação imprópria após a resposta do terceiro quesito, se entender-se que há desclassificação imprópria em caso de participação de crime menos grave. Entendemos que a primeira solução seria mais acertada e exata. E o projeto, com as últimas alterações, passou a prever quesito sobre participação dolosamente distinta.

Por fim, o autor também indica a necessidade de formulação de quesito sobre a desclassificação imprópria, em caso de possibilidade de ocorrência de erro de tipo vencível e erro de proibição vencível. Tais quesitos passaram, efetivamente, a poder constar do questionário após as alterações no projeto anteriormente citadas.


4 CONCLUSÃO

Certa feita, foi a julgamento em Cariacica um jovem rapaz que desferira disparos de arma de fogo, anos antes, em seu padrasto, que felizmente não faleceu. O rapaz era réu solto, e em seu interrogatório foi de extrema sinceridade: sim, atirou com o intuito de matar. Não, não desistiu porque quis: desistiu pela possibilidade de machucar outras pessoas que chegaram ao local após ter iniciado os disparos. Reperguntado, não hesitava em afirmar que desejava matar a vítima no momento em que disparou contra a mesma. O motivo? Desde a infância, via o padrasto espancar sua mãe e os irmãos, e não conseguiu convencer a mãe a deixá-lo. Saiu de casa e anos depois, crescido, resolveu ajudar a mãe a sua maneira. Disse que se arrependia sim, e que hoje faria diferente, mas que estava pronto a assumir as conseqüências de seus atos.

A tese defensiva era a do homicídio privilegiado tentado.

Os jurados votaram o quesito sobre autoria e materialidade unanimemente, afinal, não havia como negar os atos praticados e confessados pelo réu. Mas a surpresa veio na votação do quesito referente a tentativa, em que os jurados votaram entendendo que o réu, agindo daquela forma, não havia iniciado a execução de crime de homicídio que somente não se consumara por circunstâncias alheias à sua vontade! Claramente os jurados, comovidos, tentaram ajudar o réu, entendendo estar beneficiando-o de algum modo desclassificando o crime. Tal entendimento não foi censurado pelo Juiz, pelo Promotor ou pela Defesa. Não houve recurso.

Neste dia, começamos a pensar em como era insuficiente a lei, por nem sempre permitir que fosse refletido o real pensamento dos jurados - este, por vezes, não pode ser "enquadrado" no texto da lei, mas nem por isso deixa de ser justo, nem por isso é censurável.

Em outra ocasião, em conversa com uma jurada antiga, esta mencionou o fato de lamentar sua votação em um julgamento em que integrara o Conselho de Sentença. Explicou que a tese da defesa era a da inexibilidade de conduta diversa. Ela entendia que a ré podia ter agido de outra forma, sim – chamando a polícia, tomando outras providências - e por isso optou por negar a tese. Mas, em seu íntimo, apesar de entender que a ré poderia ter agido de outra forma, ela achava que a forma escolhida pela ré era válida, e que ela deveria ter sido absolvida.

Também já tivemos a oportunidade de vivenciar diversos julgamentos onde a presença de qualificadoras foi aceita pelos jurados, apesar do entendimento contrário do Promotor de Justiça (que assim posicionou-se ante a inexistência de provas ou inadequação das mesmas constatadas no decorrer da instrução e do próprio julgamento), aparentemente, demonstrando vontade dos jurados de prejudicar o réu. A situação inversa também ocorre, com o não reconhecimento de qualificadoras indubitavelmente presentes, com o possível objetivo de beneficiar o réu.

Estes casos nos levaram a pensar sobre os motivos da existência do julgamento pelo Tribunal do Júri. Ora, se o legislador desejasse julgamentos feitos com apuro técnico, teria deixado os crimes dolosos contra a vida como de competência do Juiz Singular. E seriam, sem dúvida, julgamentos adequados e corretos, ao menos é o que se pode esperar. Não haveria que se falar em prejuízo para o réu, pois hoje, felizmente, em nosso ordenamento jurídico, não se pode falar em juízes comprometidos com o poder dominante, como na época do surgimento da instituição do júri.

Ao optar, ainda hoje, pela manutenção do Júri, imaginamos que se deseja saber qual o sentimento da sociedade com relação aos fatos em julgamento. E nem sempre este sentimento estará exatamente de acordo com a lei, afinal, a sociedade não é estanque, e muda em velocidade bem maior do que é possível modificar o ordenamento.

Nesse sentido, pensamos ser altamente benéfica a existência do quesito sobre o réu dever ser condenado ou absolvido, por permitir ao jurado demonstrar sua íntima convicção, independente dos comandos legais. E sem ter de votar complicadas teses defensivas, com desdobramentos de quesitos, ante a necessidade de compreender conceitos jurídicos complexos...

Salutar é, também, o fato de que não haverá mais votação sobre circunstâncias atenuantes ou agravantes. Não há motivo razoável para questionar se o Conselho de Sentença entende se houve ou não confissão, ou se o acusado era ou não menor de 21 anos ao tempo do crime, por exemplo. Tais circunstâncias devem ser alegadas pelas partes e, caso se verifique sua efetiva existência, devem ser consideradas pelo Juiz.

O Projeto de Lei nº. 4.203/2.001, inicialmente, deixava lacunas quanto a situações mencionadas no capítulo anterior, em que a nova forma de redação dos quesitos não permitia a exata compreensão do pensamento dos jurados. Acreditávamos que, mesmo sem previsão, seriam formulados e apresentados aos jurados os quesitos faltantes no projeto. Porém, com as alterações aprovadas pela Câmara dos Deputados, acreditamos que não haverá problemas com a quesitação. Resta verificar a aplicação efetiva, após a aprovação.

Entendemos que o projeto é, em linhas gerais, benéfico ao desenvolvimento do Tribunal do Júri, em especial no que tange à redação dos quesitos. Novas pesquisas teóricas a respeito, novas discussões e estudos sobre a efetiva repercussão das mudanças são bem-vindas e por nós aguardadas. Esperamos ter contribuído de alguma forma para o desenvolvimento do Tribunal do Júri.


5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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SATIRO, Evandro Rocha. A nova redação dos quesitos no PL nº 4.203/2001 (reforma do Tribunal do Júri). Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1079, 15 jun. 2006. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/8534>. Acesso em: 19 mar. 2007.

STRECK, Lenio Luiz. Tribunal do Júri. Símbolos & Rituais. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2001.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. 5ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.


NOTAS

01 SATIRO, Evandro Rocha. A nova redação dos quesitos no PL nº 4.203/2001 (reforma do Tribunal do Júri). Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1079, 15 jun. 2006. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/8534>. Acesso em: 19 mar. 2007.

02 GUSMAN, Ulysses. A Simplificação dos quesitos e a ampliação dos julgamentos para outros crimes pelo Tribunal Popular do Júri. Justiça & Trabalho – Informativo trabalhista e Judiciário, Vitória, ES, ano VIII, ed. 30, p. 07, 2003.

03 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. 5ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. Pg.626.

04 Fernando da Costa TOURINHO FILHO, ob. cit., pg. 626.

05 Bastos apud CADY, Melissa Campos; ARAÚJO FILHO, Jorge Pereira de, YIN, Cheng Wai et al. Tribunal do Júri: uma breve reflexão. Jus Navigandi. Teresina, ano 8, n. 203, 25 jan. 2004. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/4720>. Acesso em: 29 out. 2006.

06 STRECK, Lenio Luiz. Tribunal do Júri. Símbolos & Rituais. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2001. Pg.107.

07 Hungria apud GUSMAN, Ulysses, ob. cit., pg. 07.

08 MARQUES. José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal – Volume I. 2. ed. Rio-São Paulo: Forense, 1965. Pg.221/222.

09 José Frederico MARQUES, ob. cit., pg. 224/225.

10 Lenio Luiz STRECK, ob. cit., pg. 171 e 172.

11 Ulysses GUSMAN, ob. cit., pg. 10.

12 FRANCO, Alberto Silva. MARREY, Adriano. STOCO, Rui. Teoria e Prática do Júri. 6ª. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. Pg. 426.

13.. Alberto Silva FRANCO, Adriano MARREY, Rui STOCO, ob. cit., pg. 426.

14 PORTO, Hermínio Alberto Marques. Júri. Procedimentos e Aspectos do julgamento. Questionários. 11ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. Pg. 154-160.

15 Hermínio Alberto Marques PORTO. ob. cit., pg. 164.

16 Hermínio Alberto Marques PORTO, ob. cit., pg. 178 e 179.

17 Hermínio Alberto Marques PORTO, ob. cit., pg. 179.

18 Aníbal Bruno, Heleno Cláudio Fragoso, Damásio E. de Jesus, Paulo José da Costa Júnior, Fernando Capez. Contra a compatibilidade, Hermínio Alberto Marques Porto.

19 PORTO, Hermínio Alberto Marques. ob. cit., pg. 177.

20 GASPARINI, Danielle Claudino de Freitas. TRIBUNAL DO JÚRI: O QUESTIONÁRIO E AS MODIFICAÇÕES PROPOSTAS PELO PROJETO DE LEI Nº. 4203/2001. 2007. 87 f. Monografia (apresentada ao final do curso de graduação em Direito) – Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, Espírito Santo.

21 FERRARI, Eduardo Reale. Código de Processo Penal. Comentários aos projetos de reforma legislativa. Campinas: Millennium, 2003. Pgs. 167-221.

22 http://www.camara.gov.br e http://www.senado.gov.br, respectivamente.

23 Eduardo Reale FERRARI, ob. cit., pg. 206-211.

24 O autor aponta a mesma solução para os casos em que a defesa alegar o arrependimento eficaz ou a desistência voluntária e os jurados responderem "condeno", a fim de saber se condenam negando a ocorrência do arrependimento eficaz/desistência voluntária ou se condenam acolhendo tal tese.


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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GASPARINI, Danielle Claudino de Freitas. Tribunal do júri: o questionário e o Projeto de Lei nº 4203/2001. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1750, 16 abr. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11166. Acesso em: 4 maio 2024.