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A falsa maioria do inciso III e § 2º do art. 483 do Código de Processo Penal.

Lei nº 11.689/2008

A falsa maioria do inciso III e § 2º do art. 483 do Código de Processo Penal. Lei nº 11.689/2008

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I – Parte. O jurado absolve o acusado?

O Tribunal do Júri nunca foi unanimidade entre nós juízes, promotores e advogados. Está previsto no petrificado artigo 5.º, inciso XXXVIII, [01] da Constituição da República. É uma realidade constitucional cuja observância e obediência obriga a todos.

Os jurados, pessoas do povo, sabidamente são juízes de fato. [02] Ao comporem o Conselho de Sentença, os jurados têm um único compromisso: apreciar os fatos e julgá-los conforme sua consciência e ditames de justiça. Outro, aliás, não é o conteúdo da solenidade de juramento estampado no antigo artigo 464 do Código de Processo Penal, integralmente reproduzido no artigo 472 da recém publicada Lei 11.689, de 9 junho de 2008, norma federal que promoveu diversas modificações no procedimento do Júri.

Avançando no tema, importa dizer que a Constituição traça um quadro mínimo da ritualística procedimental do Tribunal do Júri. Por si só, estabelece competência do Tribunal Popular para apreciar e julgar os crimes dolosos contra vida, [03] garantindo às partes, leia-se acusação e defesa, paridade de armas, [04] respeitando-se sempre o devido processo legal, o contraditório, a ampla defesa e a plenitude dela. Traz, implicitamente, garantia ao não cerceamento da defesa nem tampouco da acusação. Veda a acusação deficiente. Proíbe a defesa técnica deficiente. Como imperativo lógico, protege os veredictos dos Senhores Jurados com o manto da soberania, [05] que, numa visão didático constitucional, a) afirma a qualidade de juízes dos jurados sorteados para formarem o Conselho de Sentença com a correspondente obrigação de todos em respeitar o conteúdo de suas decisões; [06] b) garantir uma metodologia eficiente, infalível, absolutamente fiel à convicção dos jurados, livre de desembaraço, pressões e influências internas e/ou externas, quer durante a tomada de decisão dos jurados, quer quando da aferição ou reprodução das suas decisões. [07]

O Código de Processo Penal, lei ordinária que é, deve estrita obediência ao desenho constitucional conferido ao Tribunal Popular. Quer dizer que, no exercício da organização procedimental do Tribunal do Júri, tem obrigação de respeitar as balizas constitucionais sobre o tema, delas não podendo se furtar sequer por um fugidio espaço de tempo ou limite. Tem o legislador infraconstitucional obrigação de obedecer aos parâmetros principiológicos [08] da Constituição, no lado norte e no lado sul, no leste e no oeste, sob pecha de flagrante inconstitucionalidade.

Infelizmente, esse quadro mínimo constitucional foi desrespeitado pelo legislador na Lei 11.689, de 9 junho de 2008, especialmente, no inciso III e no § 2.º do artigo 483 do Código de Processo Penal.

Esses dispositivos criam a probabilidade da FALSA MAIORIA.

A matemática, ciência divinamente exata, explica como a vontade de diferentes jurados votando isoladamente, em franca minoria, pode virar dois, três ou quatro votos, maioria, no resultado final do julgamento. O exemplo adiante facilitará o entendimento.

João, num caso fictício, policial militar, foi denunciado e pronunciado por ter no dia 09.06.2008 efetuado dois disparos contra a civil Maria, levando-a ao óbito. Submetido a julgamento, a defesa sustentou quatro teses em plenário: a) Legítima Defesa Real Própria, b) Legítima Defesa Real de Terceiro, c) Estrito Cumprimento do Dever Legal e d) Obediência à Ordem Não Manifestamente Ilegal de Superior Hierárquico. Colhida a manifestação dos Senhores Jurados e depois de confirmadas autoria e materialidade delitiva, passou-se para votação das teses defensivas. O Jurado n. 1 foi favorável à primeira tese de defesa e todos os demais a rejeitaram. Na segunda tese, o Jurado n. 2 acolheu o argumento defensivo, não sendo seguido pelos demais. Na terceira, o Jurado n. 3 entendeu estarem presentes os requisitos do estrito cumprimento do dever legal, não sendo seguido pelo demais. Na quarta tese, só o Jurado n. 4 acatou o argumento de que o policial atuou segundo ordem não manifestamente ilegal de superior hierárquico, os demais a refutaram.

Qual o resultado? Colhendo-se os votos na metodologia anterior, na qual a matemática continua a ser ciência exata, todas as teses de defesa teriam sido rejeitadas por maioria de seis votos contra uma minoria de um voto em cada uma delas. O réu teria sido, portanto, condenado. [09] A Soberania da manifestação dos Senhores Jurados teria sido respeitada, tudo conforme apregoa a Constituição.

E agora? Com a metodologia do recém editado artigo 483 do Código de Processo Penal ocorreria o mesmo? A resposta é NÃO. Tal artigo, em relação ao exemplo apresentando e que é possível ocorrer com muita freqüência, criou-se uma FALSA MAIORIA. Explicamos: com a concentração de todas as teses defensivas em um único quesito, qual seja, o jurado absolve o acusado?, tal como inserido no inciso III do artigo 483 do Código de Processo Penal, o réu seria absolvido pela FALSA MAIORIA DE QUATRO VOTOS, CONTRA A IGUALMENTE FALSA MINORIA DE TRÊS VOTOS.

Em nosso exemplo, cada um dos quatro primeiros jurados votou pelo reconhecimento de diferentes teses de defesa, ao final, aquilo que seria um voto minoritário contra seis para cada uma das linhas defensivas, num passe de mágica, magia negra, diríamos nós, virou quatro e o réu foi absolvido. [10] A soberania dos veredictos fustigada.

Dito isso, percebe-se que a metodologia adotada pelo legislador no artigo 483 do Código de Processo Penal, com a redação dada pela Lei 11.689, de 9 junho de 2008, é matematicamente falha, atentando contra a exigência constitucional da absoluta eficiência na aferição da vontade manifestada pelos Senhores Jurados, bem como, atentando contra a determinação de que a decisão dos jurados será tomada por uma VERDADEIRA MAIORIA, conforme o artigo 488 do vigente Código de Processo Penal reproduzido no artigo 489 do texto trazido pela Lei 11.689, de 9 junho de 2008.


II – Parte. A metodologia é falha, portanto, inconstitucional. O que fazer?

A solução seria, num plano concreto, difuso, aplicar a redação inaugurada pelo artigo 483 do Código de Processo Penal quando única for a tese defensiva de excludente de ilicitude e/ou de isenção de pena, mantendo-se a forma anterior [11] de quesitação para os casos em que a defesa traga em plenário diferentes teses destes tipos. [12]

Já em um plano de controle concentrado de constitucionalidade, por ser norma federal, exercido exclusivamente pela Suprema Corte, possível a suspensão liminar de todo o artigo ou, especialmente, do inciso III e do § 2.º do artigo 483 do Código de Processo Penal, "repristinando" a redação anterior com base no artigo 11, § 2.º, da Lei 9.868/98, para que em posterior juízo de mérito, os Senhores Ministros deliberem possivelmente pela inconstitucionalidade do dispositivo em razão dos argumentos expostos, ou, num juízo de inconstitucionalidade sem redução de texto, [13] restrinjam a aplicação da nova metodologia apenas para os casos em que a defesa trouxer ao plenário única tese defensiva de exclusão de ilicitude e/ou de isenção de pena.

A sorte está lançada. Ao prevalecer redação atual, talvez, num futuro breve, dezenas, centenas ou milhares de julgamentos do Júri Popular tenham de ser anulados e realizados novamente. Tudo absolutamente contra o princípio constitucional da otimização dos trabalhos judiciários inserido no direito fundamental à duração razoável dos processos previsto no inciso LXXVIII do artigo 5.º da Constituição Federal de 1988.


Referências e obras consultadas

Mirabete, Julio Fabbrini. Processo penal, 11. ed., São Paulo, Atlas, 2001.

Reale, Miguel. Teoria tridimensional do direito, 5. ed., São Paulo, Saraiva, 2006.

Silva, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, 21. ed., São Paulo, Malheiros, 2002.

Silva, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais, 6. ed., São Paulo, Malheiros, 2002.

Tese 116 MP/SP, ano 1998, subscrita por Luiz a. G. Marrey e Arésio Leonel de Souza.

Tourinho Filho, Fernando da Costa. Processo penal, 23. ed., São Paulo, Saraiva, 2001, v. I, II, III e IV.


NOTAS

  1. Art. 5.º, XXXVIII, da CF: "É reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: a) a plenitude de defesa; b) o sigilo das votações; c) a soberania dos veredictos; d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida".
  2. "Na formulação de quesitos é inviável indagar aos jurados, que se tem por leigos, teses ou conceitos jurídicos" (STJ – 5.ª T. – Resp. 104.056 – rel. Jorge Scartezzini – j. 21.10.1999 – DJU 22.11.1999, p. 174.).
  3. Ver também o artigo 125, § 4.º, da Constituição Federal, reafirmando esta competência do Tribunal do Júri, se a vítima for civil, mesmo para os crimes praticados por militares. Previsão há muito trazida para o ordenamento por meio da Lei federal 9.299/1996 e agora inserida no texto constitucional por meio da Emenda Constitucional n. 45, de 08.12.2004, DOU 31.12.2004.
  4. Repudiamos qualquer tentativa de interpretação no sentido de a despeito de firmar a igualdade das partes no processo, em verdade, tratar uns mais iguais do que outros, ainda que sob o argumento da plenitude de defesa.
  5. A Emenda Constitucional n. 1, de 17.10.1969, tido por alguns como nova constituição, manteve a instituição do Júri, mas lhe retirou a soberania dos veredictos expressa na Constituição de 1967. Muito se discutiu a respeito do assunto, mas a maioria dos doutrinadores entendia ser a soberania dos veredictos princípio inerente à instituição e, por isso, embora ausente do texto constitucional, continuava em vigor, conforme noticia Ruy Cardoso de Mello Tucunduva (Da apelação com efeito devolutivo no processo dos crimes de competência do júri, Jutitia 85/167.). O corajoso Magistrado Arruda Campos – mercê de suas opiniões pessoais teve os direitos políticos cassados, perdendo o cargo de juiz; fora, anos mais tarde, com muita justiça, reintegrado – afirmou: "Sem soberania, o Júri deixa de ser uma instituição, para se reduzir a uma ‘forma’ de julgamento" (ALENCAR, Ana Valderez A. N. de. Júri. A Soberania dos Veredictos. Revista de Informação Legislativa, out.-dez.,, p. 399-1970). Quando se fala desse tema, difícil é se olvidar a pertinente advertência de Ruy:"Garantir o Júri não basta para garantir-lhe o nome. Há de garantir-lhe a substância, a realidade, o poder. Do contrário, a frase constitucional zombaria do senso comum" (A evolução do Júri - p. 15 - Rio - 1.919) A respeito da soberania dos veredictos, doutrinariamente nos ensina o mestre Frederico Marques o seguinte: "Os veredictos são soberanos, porque só os veredictos é que dizem se é procedente ou não a pretensão punitiva" (O júri no direito brasileiro. 2. ed., São Paulo, Saraiva, 1955, p. 73, apud Tese 116 MP/SP, ano 1998, subscrita por Luiz A. G. Marrey e Arésio Leonel de Souza.).
  6. Não desconhecemos possibilidade de se fazer um juízo de demérito do conteúdo das decisões dos Senhores Jurados na esfera judicial. O Tribunal, ao anular a decisão dos jurados, sob o argumento da decisão manifestamente contrária à prova dos autos (Código de Processo Penal, 593, III, d), na verdade, aplica outros princípios constitucionais notadamente elásticos: dignidade da pessoa humana, racionalidade e outros. Crucial mencionar, submetendo-se o réu a novo julgamento pelos mesmos fatos e posicionando-se o Tribunal Popular em mesmo sentido, será esse julgamento definitivo e aí não importa mais saber se a decisão foi ou não manifestamente contrária prova dos autos, será o posicionamento oficial do Estado-juiz sobre o caso. O controle de demérito da decisão do Tribunal Popular pode ser realizado uma única vez em cada processo, provocável pela acusação e ou pela defesa, conforme o artigo 593, III, d.
  7. O sigilo das votações é, senão, um reforço ao que foi escrito.
  8. Nossa afirmação de que o quadro mínimo constitucional deve ser respeitado pelo legislador infraconstitucional, longe de ser simples força de expressão, tem como base os ensinamentos de José Afonso da Silva: "Princípios jurídicos-constitucionais são princípios constitucionais genéricos informadores da ordem jurídica nacional. Decorrem de certas normas constitucionais e, não raro, constituem desdobramentos (ou princípios derivados) dos fundamentais, como o princípio da supremacia da constituição e o conseqüente princípio da constitucionalidade, o princípio da legalidade, o princípio da isonomia, o princípio autonomia individual, decorrente da declaração dos direitos, o da proteção social dos trabalhadores, fluinte de declarações dos direitos sociais, o da proteção da família, do ensino e da cultura, o da independência da magistratura, o da autonomia municipal, os da organização e representação partidária, e os chamados princípios-garantias (o do nullum crimen sine lege e da nulla poena sine lege, o do devido processo legal, o do juiz natural, o do contraditório entre outros, que figuram nos incisos XXXVIII a LX do artigo 5.º)" (Curso de direito constitucional positivo, 21. ed., São Paulo, Malheiros, 2002, p. 93.).
  9. Aqui dois mais dois são quatro.
  10. Infelizmente agora dois mais dois são cinco, seis ou sete. Pobre matemática.
  11. A base de sustentação da utilização da metodologia anterior seriam os próprios quadros mínimos constitucionais abordados no início do texto.
  12. Se a defesa trouxer para plenário mais de uma tese defensiva com base nas causas de exclusão de ilicitude e/ou isenção de pena previstas no ordenamento jurídico – inclusive as supralegais, por isso, propositalmente, não utilizamos o termo Código Penal –, a metodologia de reprodução da deliberação dos Senhores Jurados sempre será inexata, ao menos que exista unanimidade dos jurados em todas elas.
  13. Particularmente acreditamos não ser constitucionalmente conveniente manter duas metodologias de quesitação. O melhor mesmo seria reputar o dispositivo mencionado de todo inconstitucional, retirando-o do sistema, voltando a uniformizar a metodologia dos quesitos e da apuração dos votos na sistemática anterior até que o legislador, no exercício da Soberania Parlamentar, num juízo tridimensional Realiano de fato, valor e norma, delibere por outra fórmula que obedeça às diretrizes constitucionais e à exatidão da matemática.

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LUZ, Marcos Caires. A falsa maioria do inciso III e § 2º do art. 483 do Código de Processo Penal. Lei nº 11.689/2008. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1839, 14 jul. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11484. Acesso em: 28 mar. 2024.