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O Direito das Gentes: entre o direito natural e o direito positivo

O Direito das Gentes: entre o direito natural e o direito positivo

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O Direito das Gentes mescla elementos do Direito Natural e Positivo, incorporando um conteúdo ético de solidariedade entre os povos.

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo demonstrar que o Direito das Gentes, embora um ramo do Direito Positivo, sempre manteve vínculos muito estreitos com o Direito Natural. Trata-se de um direito que encerra dentro de si um conteúdo ético: a solidariedade entre os povos. Para atingir esse propósito, analisa-se a concepção romana, medieval e humanista de jus gentium.

Sumário: Introdução. 1 A Concepção Romana. 2 A Concepção Medieval. 3 As Concepções de Vitória e de Suárez. Conclusões. Referências Bibliográficas.


Introdução

Quando Aristóteles introduz, no livro V da Ética a Nicômaco, a sua conhecida distinção entre justo natural e justo legal 01, também legou à posteridade (sobretudo a sua interpretação pela Escolástica) a noção de que o Direito Natural seria imutável, e o Direito Positivo variável de lugar para lugar. Um apresenta uma feição universal, o outro particularista. Um encontra-se radicado na verdade, na essência eterna das coisas, o outro na opinião, na doxa, tão inconstante como as circunstâncias humanas.

Mas essa bipartição teria vida curta. Um terceiro termo seria incluído: o Direito das Gentes. Esse ramo reuniria elementos dos outros dois, seria positivo, mas aplicável a todos os homens. Para um internacionalista contemporâneo, a natureza desse direito não constitui um problema: a sua característica de universalidade não deriva da razão natural; trata-se tão-somente de âmbito de validade espacial que cobre todos os Estados. Mas essa aparente simplicidade revela-se enganadora. A verdade é que o Direito das Gentes constitui um tertius genus, um meio-termo entre o Direito Natural e o Direito Positivo. Há um conteúdo ético que integra a essência desse ramo jurídico.

Cumpre salientar que o conceito de Direito das Gentes não corresponde, de modo necessário, ao de Direito Internacional. Este representa apenas uma de suas modalidade de vir-a-ser. E, como toda roupagem, pode encobrir algumas de suas feições, mas não suprimir.


1. A Concepção Romana

O conceito de Direito das Gentes surge primeiro em Roma, durante a organização tribal, mesmo antes da monarquia que foi instituída ao mesmo tempo que a Cidade, em 754 a.C.. A organização social da península itálica baseava-se, nesses princípios, num sistema denominado "gentílico", porque constituía o direito das "gens", das pessoas que pertenciam ao mesmo clã ou a clãs aparentados. Era possível distinguir entre "o jus gentilicum que regia as relações entre as classes superiores e as inferiores no seio de uma mesma gente, o jus gentilitatis que compreendia as leis em vigor no seio da classe superior dos gentis e o jus gentium que regulava as relações entre as diferentes gentes" 02. A gens representava tanto a fonte normativa como o fato jurídico por excelência; as normas jurídicas originavam-se e destinavam-se à gens romana.

Mais tarde, o jus gentium romano passou a aplicar-se àquelas relações entre os estrangeiros (peregrini) entre si e com os cives romanos. Tratava-se de um conjunto de ordenações cujos destinatários eram seres humanos, não organizações políticas. Além disso, consistia num direito intra gentes, não inter gentes. A partir de 242 a.C., era ministrado por um praetor peregrinus, uma figura itinerante; fator que permitiu que seus editos pudessem harmonizar propostas culturais e tradições jurídicas distintas. O pretor precisava, pois, privilegiar os acordos reais, não os vínculos formais, a substância, em vez da forma, pois esta é própria de um só comunidade e não se pode universalizá-la com facilidade. Nos contratos, deveria privilegiar a volutas, o consensus, ainda que a forma fosse precária. Essa qualidade destaca-se do restante do direito romano. Mesmo nos seus primórdios, já se delineia a tarefa fundamental desse ramo: "governar as relações entre os ‘estranhos’, entre seres que não pertencem à mesma tribo, ao mesmo clã, à mesma nação, à mesma cultura, mas que compartilham somente uma humanidade comum" 03. O jus gentium encerra consigo a exigência de um direito universal, de um direito que deveria ser, em princípio, aceito por todos os homens, deveria ser um ramo não nacional, mas aberto à diferença.

Esse ramo pertencia, de fato, ao Direito Positivo, mas diversos elementos o aproximavam do Direito Natural. Como o orgulho romano impedia que se adotasse, de maneira direta, regras jurídicas externas, o jus gentium recepcionava e re-elaborava os usos e costumes dos outros povos. Introduziu-se assim um corpo de jus aequum, que pouco tem a ver com a doçura ou a mitigação dos rigores da lei – conforme uma definição bastante corrente, no Brasil, de eqüidade. Tratava-se antes de uma preferência pela vontade real, em vez de uma fórmula instrumental; uma exigência de universalidade para favorecer a comunicação. Ademais, a noção de bona fides, de fidelidade com a palavra empenhada, ocupava posição central. A boa fé revela-se fundamental para a estabilidade e perenidade das relações comerciais e constitui uma garantia de credibilidade pessoal. Além de relações comerciais, Roma estabelecia com os estrangeiros relações de patronato, amicitia e hospitium. O jus gentium, assim, ocupava-se também da preservação dos mores. Esses conteúdos éticos tornavam o Direito das Gentes mais próximo do Direito Natural do que do Direito Positivo. 04

Dessa feita, como o jus gentium apresentava-se como um conjunto de normas universais, com um processo de formação bastante vinculado ao do costume – o qual se perde em tempos imemoriais –, não se deve estranhar o fato dele ter sido, não raro, confundido com o próprio Direito Natural. Cícero mesmo não faz distinção entre o Direito Natural e o Direito das Gentes. No De Officiis, ele investiga a natureza das obrigações que proíbem prejudicar o próximo: "Ora, por certo isso não se dá apenas por força da natureza, isto é, pelo direito das gentes, mas também em virtude das leis dos povos, que sustentam a coisa pública em cada cidade. Elas preceituam igualmente que não é lícito prejudicar os outros em benefício próprio." Adiante, Cícero demonstra a validade dessa lei mesmo diante da torpeza dos costumes e a corrupção da lei civil:

Embora eu constate que semelhante embuste não é considerado torpe em virtude da perversão dos costumes, nem é proibido pela lei ou o direito civil, creio que a lei da natureza o proíbe. Com efeito, existe uma sociedade – já se disse muitas vezes, mas convém repeti-lo outras muitas – bastante ampla, a sociedade de todos os homens; uma mais restrita, a dos que integram a mesma família, e, por fim, uma ainda menor, as dos que são da mesma cidade. Quiseram, pois, nossos antepassados que existisse, por um lado, o direito dos povos, por outro, o direito civil. O direito civil não precisa ser necessariamente o direito dos povos, mas o direito dos povos precisa ser necessariamente o direito civil. 05

Perceba-se que o Direito Civil, o direito da cidade, encontra-se contraposto ao Direito das Gentes, o direito que decorre da natureza, da ampla sociedade dos homens. Todo direito origina-se de uma sociedade: o direito civil, de uma sociedade pequena que é a própria cidade, e o direito das gentes de uma magna communitas humana, a sociedade de todos os homens.

Já o título inicial do Digesto comporta duas definições principais de jus gentium, uma de Gaio e a outra de Ulpiano, que o remetem a um fundamento natural. Para Gaio,

Todos os povos que são regidos pelas leis e pelos costumes se servem tanto do direito que lhes é próprio, como do direito que é comum a todos os homens. Com efeito, o direito que cada povo estabeleceu para si é próprio à cidade ela mesma; mas o direito que a razão natural estabeleceu entre todos os homens é uma regra segundo a qual todos observam igualmente e se chama direito das gentes, na medida em que é o direito que todas as nações se servem. 06

Há, portanto, duas categorias de normas: o Direito Civil e o Direito das Gentes. Aquele é próprio de cada Estado que é também seu autor; este é comum a todos os homens e se manifesta de forma igual em todos os povos. Os povos não o criam, ele decorre de um princípio superior, a naturalis ratio. Trata-se de um direito anterior ao Direito Positivo, originado num estado de inocência primitiva. Percebe-se, de maneira clara, a oposição entre o direito de um povo e aquele comum a todos os povos, um direito baseado na vontade humana e outro decorrente da reta razão, um direito escrito e outro não-escrito. Não há, pois, problema algum em substituir a expressão jus gentium pela noção hodierna de Direito Natural.

Ulpiano, por sua vez, acrescenta um terceiro termo a essa divisão das fontes: jus naturale. Sua exposição principia por este nome, o qual compreende as funções vitais mais elementares – a união dos sexos, a procriação, a educação da prole – que a natureza reserva a todos os seres vivos, humanos ou animais. Por oposição a esse conceito, o autor define o Direito das Gentes: "O Direito das gentes é aplicado aos seres humanos, que por meio do entendimento pode depreender facilmente da natureza, e, entre todos os animais, apenas o homem compartilha [essa lei] entre si." 07 O Direito das Gentes constitui a porção do Direito Natural que se aplica somente aos seres humanos. Essa divisão remonta a uma concepção pitagórica que pressupõe a existência de uma idade de inocência, uma era de ouro, que se contrapõe a uma idade do pecado, uma era de ferro. Nos tempos antigos, tudo era comum, o homem era livre e se encontrava inserido de modo direto na natureza. Depois, seguiu-se a perversão e o egoísmo, instaurou-se a propriedade privada e outras instituições excludentes. O Direito Natural de Ulpiano corresponderia ao período idílico, e o Direito das Gentes marca o período posterior. 08


2. A Concepção Medieval

O conceito de Ulpiano iria sofrer repúdio pelos autores do Medievo. Concomitante a essa repulsa, iria surgir também o problema da individualidade do Direito das Gentes. No capítulo II do Etymologiae, o arcebispo de Sevilha, Santo Isidoro, procede a uma distinção entre leis humanas e divinas. Estas decorrem da natureza, aquelas dos usos, razão pela qual são variáveis de lugar para lugar, conforme a vontade dos povos, enquanto as primeiras são imutáveis. Cumpre salientar que lex, para Santo Isidoro, não significa jus; aquele termo constitui, ao lado de mores, espécie deste. O jus divide-se em natural, civil e das gentes, como uma categoria à parte. O Direito Natural destina-se aqui somente aos homens. Resta definir o jus gentium. O autor principia por indicar sua origem etimológica e recorda o conceito de Gaio, mas introduz uma sutil diferença: o Direito das Gentes apresenta-se "quase" universal. Então, enumera os institutos do qual este ramo se ocupa:

O direito das gentes trata da ocupação, da edificação, da fortificação, dos cativos de guerra, das servidões, do postlíminio, dos acordos de paz, das tréguas, da inviolabilidade das embaixadas, e da proibição do casamento entre pessoas de religiões diferentes. E é assim o direito das gentes, pois é a lei aplicada a todas as gentes. 09

A definição por meio da enumeração dos institutos já indicava uma tendência que iria culminar na autonomia do jus gentium face à ratio naturalis. O modo medieval de se fazer jurisprudência – ciência do direito –, denominado de mos italicus por causa da influência de juristas como Baldo, Paulo Castrensis e Bartolo de Sassoferrato, consistia na redação de longos tratados sobre tudo o que havia para se conhecer do Direito de então. Os primeiros manuais apenas ressuscitavam o direito romano – o qual se considerava o pináculo da perfeição em termos jurídicos –; a seguir, passou-se a combinar o legado romano com as instituições germânicas. Havia, pois, uma acentuada característica universalista (ainda que, por universal, se entenda européia), e, de maneira bastante vagarosa, é que começou a despontar uma ou outra obra que versasse sobre temas do Direito Civil, interno a um só povo. Discorria-se por meio de topói e de questões formuladas pelos autores que já haviam escrito sobre o tema. Aos poucos, os tratados passaram a versar sobre questões jurídicas específicas, embora conservassem ainda a abordagem antiga. 10 Na área que seria direito das gentes, começam a surgir diversas monografias sobre o direito das embaixadas, sem mencionar os livros da tradição da guerra justa. 11

Cumpre salientar que alguns institutos já assemelham o Direito das Gentes de Isidoro ao Direito Internacional contemporâneo. Contudo, outros – como é o caso das núpcias interditas aos estrangeiros – causariam espécie a um internacionalista. Neste ponto, tratar-se-ia de uma espécie de direito privado comum aos povos, embora o adjetivo "comum" seja proveniente de uma mera coincidência, e não uma determinação que obrigasse a todos os Estados. De qualquer modo, já são normas criadas pelo engenho humano, como o Direito Civil, e aplicáveis aos mais diferentes povos e homens, como o Direito Natural.

O Decretum Gratiani (composto entre os anos de 1139 e de 1142) retoma a distinção de Isidoro. Graciano era um monge canonista que compilou todo o direito canônico – bem como tudo o que se entendia por Direito – num só texto. O decreto nada mais é do que um conjunto de citações de todos os teólogos. Ainda que não tenha inovado, o texto serviu como um princípio de sistematização do Direito. A sistematização anterior, feita pelo codex justiniano, embora largamente utilizada, já dava sinais de exaustão.

Santo Tomás de Aquino, na Summa Theologiae, no Tratado das Leis, retoma a divisão de Santo Isidoro, a quem se refere de forma expressa, mas já introduz alguma explicação. O Aquinate, por sua vez, também diferencia direito de lei. O Tratado das Leis deve ser lido em conjunto com o Tratado da Graça, pois tanto as leis como a graça constituem princípios externos ao homem que o movem para a retidão. O estudo do Direito insere-se, no Doutor Angélico, no Tratado da Justiça; o objeto de análise da virtude justiça é o próprio direito, o iustum que corresponde ao dikaión aristotélico. O jus é um ente particular, mas a lex é universal. O jus é res, algo que existe de fato. A lex é a causa exemplar, o projeto, aquilo para o qual a coisa tende em conformidade com o plano na mente do Criador, mas não a coisa propriamente dita. 12 A confusão entre os dois termos é moderna e possui raízes no ockanismo. Porém, a distinção é antiga. Os romanos mesmos interpretavam o seu direito como lex, como uma tábua de obrigações. 13 O próprio jus é uma situação, um determinado estado de coisas que se pode considerar justo, mas não algo que pertence ao indivíduo, uma qualidade. Essa idéia de jus como direito subjetivo irá aparecer apenas em Suárez e Grócio.

Em Santo Tomás como no Estagirita, o direito (jus) pode proceder tanto da natureza das coisas (Direito Natural), como de uma convenção (Direito Positivo). Assim, o autor põe-se a questão de como diferenciar o Direito das Gentes do Direito Natural. O justo natural é aquilo que, por sua natureza, está ajustado ao outro. E isso ocorre por dois modos:

Primeiro, considerando a coisa absolutamente em si mesma; assim o macho, por sua natureza, acomoda-se à fêmea para procriar com ela, e os pais ao filho, para alimentá-lo. Segundo, considerando a coisa não absolutamente, em sua natureza, mas em relação às suas conseqüências; por exemplo, a propriedade das possessões. 14

De fato, de um terreno em si não decorre nenhuma razão de por que ele deve pertencer a esta ou àquela pessoa, mas da conveniência do seu cultivo, da sua conseqüência, é possível extrair o título dominial. Perceba-se que este Direito Natural primum modum o homem compartilha com os demais animais. Trata-se, sem dúvida, da concepção de Ulpiano. Já o Direito Natural secundum modum revela-se o próprio Direito das Gentes. Com essa distinção de modos, Santo Tomás consegue reunir as definições de Gaio e Ulpiano. No entanto, cabe lembrar que, para Santo Tomás, a lei natural é aplicável somente aos homens. Dessa forma, o autor restabelece a confusão entre Direito Natural e Direito das Gentes.

A explicação para esse aparente paradoxo deve ser buscada em como o projeto ordenador da lei em geral ("A lei é uma certa regra e medida dos atos segundo a qual alguém é induzido a agir ou coibido de fazer algo" 15) se aplica nos diferentes planos de existência. A lei civil não difere em substância da lei eterna, pois ambas constituem ordenações da razão. As diferentes leis (eterna, natural e humana) consistem numa só realidade aplicada a diferentes planos de existência. A lei eterna revela-se o plano de Deus para toda a criação. A lei natural é a própria participação da lei eterna aos seres racionais. E a lei positiva decorre, de modo lógico da lei natural.

(...) a força da lei depende do grau da sua justiça. E, em se tratando das coisas humanas, sua justiça está em proporção com a sua conformidade com as regras da razão. E a primeira norma da razão é a lei natural, como já foi dito. Assim, toda lei humana terá caráter de lei na medida em que decorre da lei da natureza. 16

Por último, o próprio direito humano decorre da lei natural. O jus guarda relações com a lex. Todo o direito positivo, civil e das gentes, deriva-se da lei natural, mas de modo diverso. O primeiro provém per determinationem, e o segundo per conclusionem (1-2 q. 95 a. 4):

Mas deve notar-se que uma coisa pode derivar-se da lei natural de dois modos: primeiro, como as conclusões derivam de um princípio; segundo, por meio de determinação, como as determinações de certas noções comuns. O primeiro modo assemelha-se ao das ciências, as quais dos princípios se extraem conclusões demonstrativas. O segundo assemelha-se com o que ocorre nas artes: as formas abstratas materializam-se em algo particular; o arquiteto, por exemplo, materializa a forma genérica de casa neste ou naquele modelo de casa. 17

Assim como um arquiteto guarda em sua mente a noção de "casa" e a usa como modelo para construir a casa concreta, também a lei natural determina como um modelo a construção do direito civil. O mesmo não ocorre com o direito das gentes. Este deriva da lei natural, como teoremas extraídos de um axioma lógico. A lei natural é sua premissa maior, e o direito das gentes a menor.

Contudo, o fato do Aquinate chamar o direito das gentes de positivo pode induzir o leitor ao erro. Por positivo, deve entender-se "humano". Ele não depende de uma positivação para existir, como o direito civil. Em certo sentido, o direito das gentes revela-se bastante natural. "O direito das gentes, de certo modo, é natural ao homem, porque é algo racional, já que decorre da lei natural (...). Não obstante, ele se distingue da lei natural no aspecto em que esta é comum a todos os animais." 18

Isso se deve ao fato de a lei natural produzir no homem três inclinações: uma primeira que concerne tudo aquilo que interessa para a conservação da vida; outra que o homem compartilha com os demais animais e que diz respeito à união dos sexos, à educação da prole, etc, e uma última que se apresenta propriamente racional e que se refere à tendência natural de conhecer as verdades divinas e a viver em sociedade. 19 O Direito, ou justo natural propriamente dito decorre das duas primeiras inclinações da lei natural, pois ele decorre de maneira absoluta, como o macho se ajusta à fêmea, consoante a transcrição acima do Tratado da Justiça. Já o Direito das Gentes decorre da terceira inclinação da lei natural; ele procede não de forma absoluta, mas comparativo e consecutivo. Ele não brota da essência da coisa; exige a intervenção da razão humana. Por isso, ele é considerado humano: as suas conclusões são condicionais e hipotéticas, pois dependem do arbítrio dos homens, "mesmo que esse arbítrio não seja o de um poder particular ou de uma sociedade concreta, mas, em certo sentido, o de toda a humanidade, o de todas as gentes" 20.


3. As Concepções de Vitória e de Suárez

O Direito das Gentes irá conquistar sua autonomia face ao Direito Natural somente com Francisco de Vitória. Por mais ortodoxo e fiel ao tomismo que fosse, ele vivia num mundo diferente daquele de Santo Tomás. As grandes navegações haviam diminuído o tamanho do planeta. Pela primeira vez, parecia possível um rei se tornar senhor de todo o mundo. Por isso, ele precisou se confrontar com uma questão que o Doutor Angélico ignorou: a capacidade dos índios.

Vitória tratou, pois, de atualizar Santo Tomás. O poder é natural e provém de Deus. São Paulo já havia ensinado isso. 21 Ocorre que Deus distribuiu sua autoridade para todos os povos, não só os cristãos. Os índios também podem exercer soberania e se encontravam em "domínio pacífico de suas coisas públicas e privadas. Logo (salvo outro óbice em contrário), devem ser considerados verdadeiros senhores e, nessas circunstâncias, não se pode despojá-los de suas posses" 22.

Como foi visto, em Santo Tomás, o jus gentium, embora humano – e é isso que se deve entender quando o autor emprega a palavra "positivo" –, é natural. A unidade humana, no Aquinate, é de ordem teológica. Contudo, já em Vitória, se a autoridade se revela natural, e se todos os povos, mesmo os infiéis, podem possuir títulos válidos de domínio, então essa unidade passa a se tornar de ordem política também.

Um evento político que afete um Estado, afeta a todos. Assim, a justiça desse evento deve ser mensurada de maneira global. "Como cada república é uma parte de todo o mundo, e sobretudo uma província cristã parte de uma república, se a guerra fosse útil a uma província ou a uma república, mas fosse prejudicial ao mundo ou à cristandade, penso que por esse fato ela seria injusta." 23

Porque a unidade do todo o mundo não é mais dos homens, mas dos povos, a antiga definição romana precisa ser re-elaborada. O teólogo de Salamanca irá conferir a feição de jus gentium como um direito entre os povos de uma forma bastante simples: substitui, na definição de Gaio, homines por gentes. "É Vitória, nós afirmamos, que iria conferir ao conceito o seu sentido moderno: essa seria a modificação que ele realiza na definição de Gaio ao substituir a expressão inter omnes homines por inter omnes gentes." 24

Neste teólogo, o jus gentium pertence, de forma inequívoca, ao Direito Positivo e não mais existe, como em Santo Tomás e em Santo Isidoro, a distinção entre lei e direito: "Que o direito das gentes não tem força somente por pacto ou convenção dos homens, mas que tem verdadeira força de lei." 25

O fundamento desse direito é um jus communicationem, um direito derivado da solidariedade humana. 26 A orbe como um todo possui o poder de dar leis: "E o mundo todo, que de certo modo forma uma república, tem o poder de prescrever, a todos os súditos, leis justas, como são as de direito das gentes." 27 Vitória escreve já no século XVI; não pensa mais em termos de um "Império Universal" ou uma Respublica Christiana. Essa república universal é somente uma idéia moral, não uma realidade política dotada de coação. Uma lei comum a todos os povos é possível porque deriva sua força da razão.

Cumpre salientar que o autor, nesta questão, mantém-se fiel ao conceito de lei em Santo Tomás ("A lei é uma espécie de regra e medida dos atos, por meio da qual se obriga alguém a fazer ou a se abster." 28). A lei consiste num ditame da reta razão; uma lei válida não precisa de coação, basta haver uma consciência ordenadora. E essa consciência permeia toda a orbe graças à solidariedade humana.

Francisco Suárez rejeita esse argumento do teólogo de Salamanca em virtude de uma opção por um meio-termo entre intelectualismo e voluntarismo. O debate voluntarismo e intelectualismo corresponde a uma questão escolástica sobre as relações entre o intelecto e a vontade na constituição da lei natural. Determinada ação constitui pecado, porque Deus proíbe, ou porque Deus proíbe determinada ação, ela constitui pecado? Consoante o voluntarismo, determinado ato é crime, porque Deus ordenou assim. Já segundo a tese intelectualista, não há dúvida de que tudo, mesmo a lei natural, provém de Deus, mas Ele teria criado o cosmo para um propósito bom e nobre, e existem regras que decorrem da natureza das coisas e que obrigam as coisas para o seu objetivo final. Deus havia criado coisas que seriam intrinsecamente boas; as regras que decorrem da natureza dessas coisas a impelem para o bem. O mesmo ocorreria com o homem. Contudo, como este possui livre-arbítrio, ele poderia frustrar os objetivos e, assim, cometer atos que sejam maus em si mesmos: atos que desvirtuam a natureza. O problema que os voluntaristas apontam é que, depois de criado o mundo, a vontade e a autoridade de Deus se tornariam meros acessórios; Ele próprio não poderia mudar a natureza do que criou. Deus seria subordinado à lei natural, o que representaria um limite ao poder de um Ser onipotente. 29

Suarez, na sua proposta sincrética, responde às objeções voluntaristas sobre o problema da limitação do poder de Deus: trata-se de auto-limitação. Deus, como ser perfeito, não pode errar, e não pode, portanto, emitir dois decretos contraditórios. Nesta questão, o teólogo de Granada permanece fiel ao legado intelectualista de Santo Tomás e de Vitória. Mas ele suaviza esse posicionamento. A lei, para o Doutor Exímio, reúne tanto o intelecto como a vontade: "É certo, em primeiro lugar, que, para produzir a lei, nele intervêm o intelecto e a vontade." 30 A lei consiste num ato intelectual, na medida em que contém diretrizes racionais destinadas a ordenar seres dotados de entendimento. Todavia, além desse momento intelectivo, dentro da mente do legislador, a lei pressupõe um ato de vontade para obrigar os seus destinatários. Desta feita, possui duas funções: uma diretiva e outra preceptiva; numa a lei orienta, noutra ela coage.

Por causa do elemento intelectivo, a lei natural apenas reforça a obrigatoriedade de comportamentos que, em si mesmos, já são bons em si, e proíbe aqueles que já são maus em si. Deus proíbe o que é mau e prescreve o que é bom, mas as coisas são boas ou más mesmo sem a vontade dEle. E não há qualquer limitação à onipotência divina nessa idéia. Num momento primordial da criação de tudo o que existe, o arbítrio de Deus revela-se ilimitado. Ele pode criar deste ou daquele modo: dois e dois poderiam ser tanto quatro ou cinco. Mas uma vez que já houve a criação, Deus só pode ordenar aquilo que se conforma a ela, sob pena de prescrever dois decretos contraditórios. A contradição num ser perfeito revela-se uma heresia muito mais grave do que uma aparente limitação.

No entanto, a lei natural não pode regular todos os aspectos da vida em sociedade. Há uma necessidade de um Direito Positivo humano para terminar essa regulação. 31 E esse direito não trata apenas de esmiuçar os preceitos gerais da lei natural; há uma imensa gama de comportamentos que a lei natural não se ocupou, pois os considera indiferentes do ponto de vista de sua honestidade ou torpeza. Porém, eles podem ser relevantes ao bem comum de uma determinada sociedade. Toda vez que a lei positiva humana proíbe ou ordena um determinado ato dessa natureza, ela cria "positivamente" (com duplo sentido) algo novo onde antes havia apenas uma possibilidade lícita, entre tantas outras. Ela constitui o mal, pois passa também a ser proibido pela lei natural; existe o mala prohibita. 32

Assim, o Direito das Gentes, em Suárez, não apenas declara o mal, como o Direito Natural, mas também o constitui, como ocorre com o Direito municipal na teoria suareziana. Cumpre salientar que, neste ponto, o Doutor Exímio se afasta do Doutor Angélico e dos tomistas anteriores, como Vitória, mas se aproxima do Direito Internacional contemporâneo.

Mas há outras características que aproximam o Direito das Gentes do Direito Natural e o afastam do Direito Positivo, em Suárez. O Direito Civil constitui produto da autoridade, mas esta não é qualidade de indivíduos: a autoridade repousa na coletividade. Ainda assim, essa coletividade não pode ser um simples aglomerado de homens; precisa encontrar-se reunida em um corpo moral. 33 Existem coletividades que não constituem uma comunidade perfeita e, assim, não produzem Direito, não suprem todas as necessidades de seus membros: as famílias, por exemplo. A comunidade perfeita corresponde ao próprio Estado.

O fato é que a totalidade dos homens não se integrou num só corpo político, mas se fracionou em diversos Estados. "Mas para que estas comunidades pudessem ajudar-se mutuamente e conservar a paz e a justiça em suas relações (que é essencial para o bem comum de todos os povos) foi conveniente que, em suas mútuas relações, pusessem em vigor um acordo sobre algumas leis comuns" 34. Nem mesmo o Estado, a comunidade perfeita, basta a si mesma, mas precisa de assistência recíproca e de proteção. Dessa feita, apesar do realismo de Suárez em constatar a inexistência de uma organização política supraestatal, o fundamento do Direito das Gentes é metafísico: amor e caridade mútua. 35


Conclusões

Mesmo em dois autores da Escolástica tardia – teólogos que representam os dois momentos da Idade de Ouro da Espanha –, o Direito das Gentes conserva o seu conteúdo ético. Mesmo quando este ramo conquistou, em definitivo, sua autonomia do Direito Natural, valores como a solidariedade e o amor lhe conferem um fundamento.

Esse Direito das Gentes, com um conteúdo ético indissociável, teve nascimento e morte: originou-se em Roma e desapareceu, de vez, com a edificação do que hoje se entende por Direito Internacional, o qual, para alguns surgiu com Vattel. 36 O jus gentium distingue-se do seu sucessor por algumas características de ordem histórica e outras de ordem ontológica. Encontram-se entre as primeiras a ausência da noção de soberania e a conseqüente igualdade jurídica dos Estados, bem como a ausência do princípio do pacta sunt servanda.

A última ordem de diferenças decorre de um motivo apenas: "gentes" significa pessoas, não Estados. O Direito das Gentes era aplicado a seres humanos; o plural não implica uma coletividade abstrata maior do que soma de suas partes. O plural designa o fato dele destinar-se às mais variadas culturas, a todos os seres humanos nas suas mais diversas roupagens. Parece um ideal que tem muito a inspirar o Direito Internacional contemporâneo.


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VIOLA, Francesco. Derecho de Gentes Antiguo e Contemporáneo. Trad. Isabel Trujillo. Persona y Derecho, n. 41, 2004.

VITORIA, Francisco de. Obras de Francisco de Vitória. Relecciones Teologicas. Editadas por Teofilo Urdanoz. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1960.

WIJFFELS, Alain. Early-Modern Literature on International Law and the Usus Modernus. Grotiana, v. 16-17, 1995-1996.


Notas

  1. Cf. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. São Paulo: Abril Cultural, 1973. Livro V, 7, p. 331.

  2. "(...) le jus gentilicium qui gouvernait les relations entre les classes supérieures et les classes inférieures au sein d’une même gente, les jus gentilitatis qui comprenait les lois en vigueur aun sein de la classe supérieure des gentils et le jus gentium qui réglait les rapports entre les différents gentes" (LAGHMANI, Slim. Histoire du droit des gens: du jus gentium impérial au jus publicum europaeum. Paris: Pedone, 2003. p. 11).

  3. "(...) gobernar las relaciones entre ‘extraños’, entre seres que no pertenecen a la misma tribu, al mismu clan, a la misma nación, a la misma cultura sino que comparten sólo una común humanidad" (VIOLA, Francesco. Derecho de Gentes Antiguo e Contemporáneo. Trad. Isabel Trujillo. Persona y Derecho, n. 41, 2004. p. 166).

  4. Cf. Ibidem, p. 170.

  5. "Neque vero hoc solum natura, id est jure gentium, sed etiam legibus populorum, quibus in singulis civitatibus respublica continetur, eodem modo constitutum est, ut non liceat sui commodi causa nocere alteri." E, adiante: "Hoc quanquam video propter depravationem consuetudinis neque more turpe haberi neque aut lege sanciri aut jure civilii, tamen natura elege sancitum est. Societas enim est (quod etsi saepe dictum est, dicendum tamen est saepius), latissime quidem quae pateat, hominum inter homines, interior eorum, qui ejusdem gentis sunt, propior eorum qui ejusdem civitatis. Itaque majores aliud jus gentium, aliud jus civile esse voluerunt. Quod civile, non idem continuo gentium; quod autem gentium, idem civile esse debet." (CICERÓN. De Officiis. Paris: Garnier, s/d. Liber III, V e XVII. A tradução utilizada foi a da Martins Fontes: CÍCERO, Marco Túlio. Dos Deveres. Trad. Angélica Chiapeta. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 136 e 157).

  6. "Omnes populi, qui legibus et moribus reguntur, partim suo proprio, partim communi omnium hominum iure utuntur nam quod quisque populus ipse sibi ius constituit, id ipsius proprium civitatis est vocaturque ius civile, quasi ius proprium ipsius civitatis: quod vero naturalis ratio inter omnes homines constituit, id apud omnes peraeque custoditur vocaturque ius gentium, quasi quo iure omnes gentes utuntur." Digesto, 1, 1, 9. (IUSTINIANUS IMPERATOR. Corpus Iuris Civilis. ed. Krueger e Mommsen. Berlim: Weidmann, 1908).

  7. "Ius gentium est, quo gentes humanae utuntur, quod a naturali recedere facile intellegere licet, quia illud omnibus animalibus, hoc solis hominibus inter se commune sit." (Ibidem, 1, 1, 1, 4).

  8. Cf. BARCIA TRELLES, Camilo. Francisco Suárez: les théologiens espagnols du XVIe siècle et l’école moderne du Droit International. Recueil de Cours de l’Académie de Droit International de Le Hague, 1933, n. 1, t. 43, Paris: Sirey, p. 424.

  9. "Ius gentium est sedium occupatio, aedificatio, munitio, bella, captivitates, servitutes, postliminia, foedera pacis, indutiae, legatorum non violandorum religio, conubia inter alienigenas prohibita. Et inde ius gentium, quia eo iure omnes fere gentes utuntur." (ISIDORUS HISPALENSIS EPISCOPUS. Etymologiarum sive Originum Libri XX. ed. W. M. Lindsay. Oxford: Claredon Press, 1911. V, VI).

  10. Tratava-se da Retórica, considerada uma verdadeira vir civilis, uma virtude cidadã. A Lógica destinava-se somente à filosofia especulativa e à Teologia, que era a magna ciência. Santo Tomás, v.g., insere esta, consoante a conhecida gradação do conhecimento exposta pelo Estagirita no capítulo I do livro I da Metafísica, no cume da hierarquia, pois seria uma disciplina mais especulativa do que prática e, ainda, superior às demais. Cabe lembrar que o próprio Aristóteles havia estabelecido a Metafísica no topo da hierarquia, mas ela se chama de Metafísica somente quando aborda o ens commune; "‘filosofia primera’, en cuanto considera las causas primeras de las cosas; ‘teologia’, en cuanto considera las sustancias que no tienen materia, Dios, etc" (SCIACCA, Michele. Perspectiva de la metafisica en Sto. Tomas. Madrid: Speiro, 1976. p. 50). É o tríplice aspecto de uma única disciplina. Todavia, as ciências práticas, como a Ética e o Direito, que visam o bem viver, não são expressas de acordo com os cânones da Lógica formal, mas conforme outra lógica que procura o convencimento e a persuasão: a Retórica e a Tópica.

  11. Cf. WIJFFELS, Alain. Early-Modern Literature on International Law and the Usus Modernus. Grotiana, v. 16-17, 1995-1996, p. 39.

  12. Cf. BASTIT, Michel. Naissance de la loi moderne: la pensée de la loi de saint Thomas à Suarez. Paris: Presses Universitaires de France, 1990. p. 163.

  13. Cf. VILLEY, Michel. Le Droit et le droit de l’Homme. 2.ed. Paris: Presses Universitaires de France, 1990. p. 125.

  14. "Uno modo, secundum absolutam sui considerationem: sicut masculus ex sui ratione habet commensurationem ad feminam ut ex ea generet, et parens ad filium ut eum nutriat. Alio modo aliquid est naturaliter alteri commensuratum non secundum aliquid quod ex ipso consequitur: puta proprietas possessionum." (AQUINO, Santo Tomas de. Suma Teologica. Texto latino de la edición crítica Leonina. Trad. Francisco Barbado Viejo, O.P. 2. ed. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1947. Tomo VIII. 2-2 q.57 a.3).

  15. "(...) lex quaedam regula est et mensura actuum, secundum quam inducitur aliquis ad agendum, vel ab agendo retrahitur (...)"(AQUINO, Santo Tomás. Op. Cit., 1-2 q. 90 a.1).

  16. "Unde inquantum habet de iustitia intantum habet de virtute legis. In rebus autem humanis dicitur esse aliquid iustum ex eo quod est rectum secundum regulam rationis. Rationis autem prima regula est lex naturae, ut ex supradictis patet. Unde omnis lex humanitus posita intantum habet de ratione legis, inquantum a lege naturae derivatur" (AQUINO, Santo Tomas de. Op. Cit., 1-2 q. 95 a. 2).

  17. "Sed sciendum est quod a lege naturali dupliciter potest aliquid derivari: uno modo, sicut conclusiones ex principiis; alio modo, sicut determinationes quaedam aliquorum communium. Primus quidem modus est similis ei quo in scientiis ex principiis conclusiones demonstrativae produnctur. Secundo vero modo simile est quod in artibus formae communes determinantur ad aliquid speciale: sicut artifez formam communem domus necesse est quod determinet ad hanc vel illam domus figuram." (AQUINO, Santo Tomas de. Op. Cit., 1-2 q.95 a.2).

  18. "Ad primum ergo dicendum quod ius gentium est quidem aliquo modo naturali homini, secundum quod est rationalis, inquantum derivatur a lege naturali (...). Distinguitur tamen a lege naturali, maxime ab eo quod est omnibus animalibus commune." (AQUINO, Santo Tomas de. Op. Cit., 1-2 q.95 a.4).

  19. Cf. AQUINO, Santo Tomas de. Op. Cit., 1-2 q. 94 a.2.

  20. "(...) aunque ese arbitrio no sea el de un poder particular o de una sociedad concreta, sino, en cierto sentido, de toda la humanidad, de todas las gentes" (SANTIAGO RAMIREZ. Introducción a las cuestiones 95-97. AQUINO, Santo Tomas de. Op. Cit. Tomo VI, p. 147). Adiante, o autor esclarece a razão pela qual Santo Tomás se valeu do termo "positivo" para designar o Direito das Gentes: "Al suponer una intervención de la razón discursiva para deducir lo que no aparece inmediata y absolutamente a la inteligencia, el derecho de gentes tiene algo de positivo, pero tomando el término positivo en un sentido muy amplio, que no es usual en la terminología teológica y en el pensamiento jurídico atual. El derecho de gentes está constituído por las conclusiones deducidas de los primeros principios, absolutamente evidentes, de la ley natural. Hay, pues, un positivo esfuerzo, aunque muy fácil, para deducir y dictaminar esas conclusiones, que están muy próximas a los principios y por eso se hallan al alcance de todas las gentes . Pero la fuerza o vigor de obligación, en esas conclusiones, viene del mismo derecho natural, que substancialmente contienem." (grifo no original. p. 148).

  21. São Paulo, na Epístola aos Romanos (XIII,1): "Toda alma deve estar submetida às autoridades superiores; pois não há autoridade que não provenha de Deus, e as que existem, por Deus estão ordenadas [Omnis anima potestatibus sublimioribus subdita sit: non est enim potestas nisi a Deo: quae autem sunt, a Deo ordinatae sunt]."

  22. "(...) in pacifica possessione rerum et publice et privatim. Ergo omnino (nisi contrarium constet) habendi sunt pro dominis. Neque in dicta causa possessione deturbandi" (VITORIA, Francisco de. Obras de Francisco de Vitória. Relecciones Teologicas. Editadas por Teofilo Urdanoz. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1960. De Indis, Relectio 1, 5. p. 651).

  23. "Imo cum una respublica sit pars totius orbis et maxime christiana provincia pars totius reipublicae, si bellum utile sit uni provinciae, aut reipublicae, cum damno orbis aut christianitatis, puto eo ipso bellum esse iniustum." (VITORIA, Francisco de. Op. Cit. De potestate civili, 13. p. 168).

  24. "C’est Vitoria, dit-on, qui aurait donné au concept son sens moderne: telle serait la portée de la modification qu’il apporte à la definition de Gaius en remplaçant la tournure inter omnes homines par inter omnes gentes." (HAGGENMACHER, Peter. La Place de Francisco de Vitoria parmi les Fondateurs du Droit International. In: TRUYOL SERRA, Antonio et alii. Actualité de la Pensée Juridique de Francisco de Vitoria. Bruxelas: Bruylant, 1988. p. 58).

  25. "Quod ius gentium non solum habet vim ex pacto et condicto inter homines, sed etiam habet vim legis." (VITORIA, Francisco de. Op. Cit. De potestate civili, 21. p. 191).

  26. Cumpre salientar, entretanto, que Vitória jamais menciona a expressão jus communicationis. A comunicação é um fato, um dado originário que constitui a sociedade. É por meio da comunicação que se exerce a solidariedade natural. E ela traz conseqüências normativas: é da comunicação que se deriva os direitos concretos de migração, comércio e evangelização. (Cf. TRUJILLO PÉREZ, Isabel. Alle origini dei diritti dell’uomo: i diritti della comunicazione di Francisco de Vitória. Rivista Internazionale di Filosofia del Diritto. Milão: Giuffrè, Janeiro / Março, 1997, n. 1, tomo LXXIV, IV série, p. 85).

  27. "Habet enim totus orbis, qui aliquo modo est una republica, potestatem ferendi leges aequas et convenientes omnibus, quale sunt in iure gentium." (VITÓRIA, Francisco. Op. Cit., De potestate civili, 21. p. 191).

  28. "lex quaedam regula est et mensura actuum, secundum quam inducitur aliquis ad agendum, vel ab agendo retrahitur" (AQUINO, Santo Tomás de. Op. Cit.. 1-2 q.90 a.1).

  29. Cf. SCHNEEWIND, J. B. A invenção da autonomia: uma história da filosofia moral moderna. Trad. Magda França Lopes. São Leopoldo: UNISINOS, 2001. pp. 47-51.

  30. "In quo certum imprimis est ad ferendam legem intelectum et voluntatem intervenire." (R. P. Francisci Suarez. Granatensis è Societate Jesu, Doctoriis Eximi. Tratactus de legibus, ac Deo Legislatore in decem Librus distributus. Venetiis, apud Sebastianum Coleti, 1740. I, iv, 6. As traduções para o português do livro I são extraídas de SUÁREZ, Francisco. De Legibus. Livro I. Da Lei em Geral. Trad. Luís Cerqueira. Lisboa: GEOPOLIS-UCP, Tribuna, 2004. p. 222).

  31. Cf. SUÁREZ, Francisco. Op. Cit.. I, 3, 18.

  32. Cf. SUÁREZ, Francisco. Op. Cit.. III, 12, 17.

  33. Cf. SUÁREZ, Francisco. Op. Cit.. II. Additiones Suarecii ad ius gentium, 1.

  34. "Nihilominus ut illae communitates sese mutuo iuvare et inter se in iustitia et pace conservari possent (quod ad bonum universi necessarium erat) oportuit ut aliqua communia iura quasi communi foedere et consensione inter se observarent" (Ibidem, 3).

  35. Cf. COSTE, René. Morale Internationale: l’humanité a la recherche de son ame. Tournai (Bélgica): Desclée & Co., 1964. p. 65.

  36. Cf. HAGGENMACHER, Peter. Grotius and Gentili: a reassessment of Thomas E. Holland’s inaugural lecture. In: BULL, Hedley; KINGSBURY, Benedict; ROBERTS, Adam (ed.). Hugo Grotius and International Relations. Oxford, New York: Oxford University, Clarendon Press, 2002.


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MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. O Direito das Gentes: entre o direito natural e o direito positivo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1852, 27 jul. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11542. Acesso em: 29 mar. 2024.