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Salário mínimo inconstitucional

Salário mínimo inconstitucional

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O Trabalhador assalariado não tem dia,
porque ainda é noite, no Estado neoliberal



A Constituição da República Federativa do Brasil, que garante instalar, neste País, um Estado Democrático de Direito, com fundamento na cidadania, na dignidade da pessoa humana, nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, dentre outros, visando construir, no território nacional, uma sociedade livre, justa e solidária, como garantia do desenvolvimento nacional, erradicando a pobreza e a marginalização e reduzindo as desigualdades sociais e regionais, com a finalidade de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (CF, art. l °, caput e incisos II, III e IV; art. 3°, caput e incisos I a IV), assegura, ainda, como garantia fundamental dos brasileiros e estrangeiros residentes no País, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (CF, art. 5°, caput), garantindo, finalmente, aos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros direitos sociais que visem à melhoria de sua condição social, o direito fundamental a um salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e as de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim (CF, art. 7°, IV).

A Constituição cidadã, pelo visto, garante ao trabalhador, no Brasil, não, apenas, um salário mínimo individual, para atender suas necessidades normais com alimentação, habitação, vestuário, higiene e transporte, como assim, estabelece, ainda, no plano da legislação ordinária, a Consolidação das Leis do Trabalho - CLT (arts. 76 e 81, caput), mas determina, expressamente, ao legislador comum, a fixação de um salário-mínimo familiar e socialmente digno, que atenda, também, às necessidades vitais básicas com educação, saúde, lazer e previdência social do trabalhador e de sua família.

A legislação consolidada, por sua omissão parcialmente agressora do salário-mínimo do trabalhador, não fora recepcionada, no ponto, pelo Texto de nossa Lei Fundamental, em vigor, como, assim, não o foram os atos normativos, até hoje editados, com conteúdo material insuficiente a atender o comando dirigente da Lei Maior, para a fixação de um salário-mínimo com dignidade familiar e social.

Sob o aspecto de sua instrumentalidade formal, o salário-mínimo, no Brasil, há de ser fixado por lei, que não deve omitir, em sua quantificação material, os ingredientes vitais do comando constitucional, que preordena a garantia legal da moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social ao trabalhador e a sua família.

Caracterizado, constitucionalmente, como direito social e garantia fundamental do trabalhador urbano e rural, o salário-mínimo familiar deve ser fixado pelo Congresso Nacional (CF, arts. 22, I e XXIIIe 48, caput), através de lei em sentido estrito, sendo vedado, nessa seara normativa, a edição de medida provisória (CF, ad. 62 e parágrafo único), uma vez ser proibida, nessa matéria, a instrumentalidade de lei delegada (CF, ad. 68, § 1°, 11), a não correr o risco de arranhar o princípio sensível dos direitos e garantias individuais, posto a salvo, pelo legislador constituinte, no rótulo das cláusulas pétreas, contra possíveis ameaças do poder reformador (CF, art. 60, § 4°,IV).

No entanto, o histórico jurídico do salário-mínimo, no País, sob o ângulo formal e material, é de manifesta agressão ao comando constitucional, desde a edição de seu primeiro diploma normativo, o Decreto n° 2.162, de 1°/05/1940, que o quantificara em CrS0,22 (vinte e dois centavos) até a publicação de Medida Provisória que, hoje, pretende fixá-lo em, apenas, R$ 130,00 (cento e trinta reais).

Tal salário-mínimo, desgarrado do conteúdo sócio-econômico do texto constitucional, não garante, sequer, o mínimo existencial do trabalhador individual, agredindo-lhe a sobrevivência, a cidadania e sua dignidade de pessoa humana, enquanto aumenta os espaços da pobreza e da miséria no cenário nacional, multiplicando os focos de marginalização e de exclusão social.

O salário-mínimo constitucional, enquanto garantia de sobrevivência digna da entidade familiar, caracteriza-se como direito humano, conforme assim fora considerado, pela primeira vez, no tratado de Versalhes, e, ainda, assim o é, formalmente garantido nas relações internas e internacionais da República Federativa do Brasil (CF, arts. 1°,IV e 4°, II), como nas relações dos demais povos livres.

A Constituição Federal não somente determinou de modo vinculante, o conteúdo material da lei do salário mínimo, no País, mas, também, estabeleceu comandos normativos de proteção ao salário do trabalhador, tais como, reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim; piso salarial proporcional à extensão e à complexidade do trabalho; irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo; garantia de salário, nunca inferior ao mínimo para os que percebem remuneração variável; décimo terceiro salário com base na remuneração integral ou no valor da aposentadoria; remuneração do trabalho noturno superior à do diurno; proteção do salário na forma da lei (CLT, arts. 449, 455, 462, 464 e 468), constituindo crime sua retenção dolosa; participação nos lucros, ou resultados, desvinculada da remuneração, e, excepcionalmente, participação na gestão da empresa, conforme definido em lei; salário-família para os seus dependentes; repouso semanal remunerado, preferencialmente aos domingos; remuneração do serviço extraordinário superior, no mínimo, em cinqüenta por cento à do normal; gozo de férias anuais remuneradas com, pelo menos, um terço a mais do que o salário normal; adicional de remuneração para as atividades penosas, insalubres ou perigosas, na forma da lei; licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e vinte dias; proteção em face da automação, na forma da lei; seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa; ação, quanto a créditos resultantes das relações de trabalho, com prazo prescricional de cinco anos para o trabalhador urbano, até o limite de dois anos após a extinção do contrato, e até dois anos após a extinção de contrato, para o trabalhador rural; proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil; proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência; proibição de distinção entre trabalho manual, técnico e intelectual ou entre os profissionais respectivos e, ainda, igualdade de direitos entre o trabalhador com vínculo empregatício permanente e o trabalhador avulso (CF, art. 7°, IV a XXXIV), tanto que a ordem econômica, neste País, há de fundar-se na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tendo por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observando, dentre outros, os princípios da função social da propriedade, da redução das desigualdades regionais e sociais e da busca do pleno emprego (CF, art. 170, caput, incisos III, VII e VIII).

Esse quadro formal de garantias constitucionais do trabalhador, em solo brasileiro, incomoda, sobremodo, as elites privilegiadas do mercado financeiro e empresarial, que, sob a inspiração egoísta e gananciosa do ideário neoliberal, provoca, a cada dia, efeitos catastróficos, em nosso meio social, a gerar o desemprego em círculos crescentes, a fome e o desespero das classes trabalhadoras, ante o olhar insensível dos órgãos governamentais.

A utopia capitalista deste final de século adquire dimensões globalizadas, sob o domínio das superpotências, responsáveis pelo genocídio social, no planeta, aumentando, assustadoramente, a fome, a violência e a criminalidade, nos campos gerais do desemprego e da exclusão social.

Nesse contexto de miséria global, o Brasil bate record de fome, no limiar do Terceiro Milênio, onde os jornais de abril deste ano, já noticiam, em melancólico exemplo, que "cerca de 700 pessoas famintas saquearam a Central de Abastecimento de Pernambuco (CEAGEPE) e o depósito de merenda escolar em Afogados da Ingazeira, no sertão pernambucano, a 380 Km do Recife" (1), amparados, certamente, pelo estado de sobrevivência (excludente de criminalidade) a somar fileiras com os Sem-terra, os Sem-teto e os Sem-tudo, desesperançados.

O salário-mínimo de RS 130,00 (cento e trinta reais), por determinação das forças governistas-neoliberais, só patrocina e difunde o cenário de miséria, no País, a não mais permitir, na visão do poeta "que o pão encontre na boca o abraço de uma canção inventada no trabalho, mas a fome fatigada de um suor que corre em vão." (2)

O salário-mínimo, no Brasil, em trágico paradoxo, aos que ainda têm emprego, nesse drama social, não pode "comprar um sonho", com tudo aquilo que fica daquilo que não ficou no bolso sempre cativo do pobre trabalhador, em flagrante agressão à alma do povo, à Constituição e aos princípios da Justiça Social.



NOTAS

(1) Correio Braziliense - Edição de 17 de abril de 1998, pág. 11.
(2) Mello, Thiago de - "Canto do Amor Armado" - Moraes Editores - Lisboa. 1974,pág. 62. Poema: "O pão de cada dia"

Autor

  • Antônio Souza Prudente

    Antônio Souza Prudente

    juiz do Tribunal Regional Federal da 1ª Região especialista em Direito Privado e Processo Civil pela USP e em Direito Processual Civil, pelo Conselho da Justiça Federal (CEJ/UnB), mestrando em Direito Público pela AEUDF/UFPE, Professor

    é também presidente-fundador da Associação dos Juízes Federais da 1ª Região (AJUFER), ex-procurador da República e ex-procurador da Fazenda Nacional.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PRUDENTE, Antônio Souza. Salário mínimo inconstitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 3, n. 25, 24 jun. 1998. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1156. Acesso em: 28 mar. 2024.