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A ressalva contida na parte final da Súmula Vinculante nº 4 do Supremo Tribunal Federal e seus reflexos no Direito do Trabalho

A ressalva contida na parte final da Súmula Vinculante nº 4 do Supremo Tribunal Federal e seus reflexos no Direito do Trabalho

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A modulação de efeitos se justifica, tão somente, nos casos em que a situação jurídica já esteja consolidada e resolvida, para preservar a confiança na norma aparentemente em vigor.

Sumário: 1 - O caráter normativo da súmula vinculante; 2 - A interpretação no direito sumular; 3 - O contexto da aprovação da Súmula Vinculante 04 do STF e sua repercussão imediata na jurisprudência trabalhista; 4 - Inadequação da técnica de declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade, para a solução da controvérsia; 5 - O recurso à analogia como alternativa à adoção da técnica da declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade; 6 - Da viabilidade da modulação temporal dos efeitos da declaração de revogação por não recepção, e o princípio constitucional da segurança jurídica;


1 - Caráter normativo da súmula vinculante;

A ampla reforma pela qual passou o Poder Judiciário, com o advento da Emenda Constitucional 45/2004, incluiu a inovação veiculada no artigo 103-A, que autoriza o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL a aprovar, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, súmula jurisprudencial dotada de força vinculante, nos seguintes termos:

"Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.

§ 1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica.

§ 2º Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade.

§ 3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso."

A inserção da referida norma no texto constitucional correspondeu a verdadeira revolução no sistema jurídico brasileiro, historicamente enquadrado no modelo romano-germânico, inspirado no "civil law" – no qual a lei é a fonte principal do direito – ao dotá-lo de mecanismo próprio do modelo anglo-saxão, inspirado prevalentemente no "common law", de vinculação a precedentes, como ensina LENIO LUIZ STRECK [01]:

"Ninguém ignora que até no sistema em vigor – ao editarem uma Súmula, o STF ou o STJ passam a ter o poder maior que o Poder Legislativo. Com o poder constitucional de vincular o efeito das Súmulas e até mesmo das decisões de mérito do Supremo Tribunal Federal, o Poder Judiciário, por suas cúpulas, passará a legislar, o que, à evidência, quebrará a harmonia e a independência que deve haver entre os Poderes da República. Daí é urgente que se indague acerca da legitimidade do Poder Judiciário para tal. Essa talvez seja a mais grave objeção que pode ser colocada contra a criação jurisprudencial stricto sensu em um ordenamento filiado à família romano-germânica. Esse obstáculo está calcado no fato de que tal criação não se compactua com a democracia. Com agudeza, Winterton escreve que "a tentativa de elevar o Judiciário, que não é eleito, sobre o Legislativo, que o é, (...) é antidemocrática". Observe-se que as críticas formuladas por Winterton, ratificadas por nomes da parte de Lord Devlin, até por se referirem à common law, assumem maior relevância ainda se trazidas para o âmbito da civil law, no interior do qual o paradigma é a lei, como é o caso do Brasil.

Com essa perspectiva dada pelas Súmulas, o Direito brasileiro se aproxima da common law no seguinte aspecto: passa a ter no segundo e no terceiro graus do Poder Judiciário (mormente no STF e STJ) a instância mais importante. Dito de outro modo, no sistema jurídico baseado predominantemente na lei – como é o nosso – o juiz de primeiro grau adquire dimensão importante.

Porém, sendo a Súmula um critério de fechamento autopoiético do sistema (LUHMANN), as decisões de primeiro grau que contrariarem Súmulas passam a ter importância absolutamente secundária, eis que passíveis de imediata e fácil cassação pela instância superior. Isso sem esquecer que, no sistema da common law, o fundamental é encontrar a regra de reconhecimento (HART), que nada mais é do que a resultante de reiteradas decisões. É, pois, fática, ao contrário da norma fundamental (KELSEN) que é dirigida e pensada para a civil law, sendo, assim, gnosiológica."

Passando ao largo da discussão proposta pelo referido autor, quanto à pertinência do instituto e sua compatibilidade estrutural e funcional com o sistema jurídico brasileiro, não se pode negar que, uma vez aprovada a súmula vinculante pela Suprema Corte, o enunciado nela contido passa a viger como verdadeira norma jurídica, submetendo-se, igualmente, à atividade interpretativa dos operadores do direito.

SGARBOSSA E JENSEN [02] esclarecem que a eficácia normativa da súmula vinculante não se confunde com a da lei formalmente editada pelo parlamento, na medida em que a norma jurisprudencial não vincula particulares diretamente, mas apenas de forma reflexa, em suas relações com a administração pública, e nas demandas judiciais, preservando-se, nesse aspecto, o postulado da legalidade.

Estes autores lembram, ainda, que a atividade interpretativa do conteúdo normativo da súmula vinculante não deve se pautar pelos métodos tradicionalmente adotados no "civil law", na medida em que, na aplicação do instituto típico do "commom law", convém adotar técnica própria.


2 - A interpretação no direito sumular;

Segundo lições advindas do sistema anglo-saxão, a aplicação do direito sumular pressupõe a constatação da identidade ou semelhança essencial entre os precedentes e o caso submetido à decisão, num trabalho de comparação, identificação e distinção, que não se resume à mera subsunção dos fatos ao comando normativo genérico e abstrato.

Ao invés disso, a norma jurídica contida no enunciado da súmula vinculante deve, necessariamente, ser interpretada à luz dos precedentes que ensejaram sua aprovação, observadas as peculiaridades dos casos julgados, suas premissas fáticas, e todas as circunstâncias do julgamento, de forma a definir os corretos sentido e alcance do direito sumular.

Nesse sentido, SGARBOSSA E JENSEN [03]:

"Assim, em tendo a reforma constitucional promovido a recepção de instituto assemelhado ao case law, é em tal sistema que podemos ir buscar um método de aplicação do direito judicial – ou jurisprudencial, no caso da súmula vinculante, por força da exigência de reiteradas decisões prévias –, buscando adaptá-lo e torná-lo compatível tanto com o sistema jurídico brasileiro, filiado à família romano-germânica (ou civil law) (resguardo da compatibilidade sistêmica do instituto recepcionado), quanto com os princípios constitucionais que se extraem da Constituição da República de 1988 (resguardo da compatibilidade material do instituto recepcionado para com a ordem constitucional vigente).

Para tanto, viu-se o conteúdo da regra estruturante do case law, a stare decisis (et non quieta movere), segundo a qual o anteriormente decidido, em casos idênticos ou essencialmente semelhantes, vincula o órgão decisor prolator e os órgãos decisores a ele subalternos nos casos ulteriores.

Viu-se, ainda, que para a identificação e extração da norma jurídica aplicanda dos precedentes, por força do princípio da stare decisis, impõe-se a distinção entre elementos vinculantes (ratio decidendi) e não vinculantes (obiter dictum), estando os primeiros intimamente relacionados às circunstâncias fáticas que informam os precedentes e o caso em julgamento.

Assim, além de distinguir enunciado não vinculante de súmula da jurisprudência dominante vinculante, como primeiro passo, é essencial a identificação de todos os elementos de fato aos quais se prendem os fundamentos da decisão, de modo a identificar ou distinguir os precedentes invocados do caso em julgamento.

Eis a denominada técnica das distinções, que permite, pelo primeiro procedimento, a identificação dos elementos vinculantes dos precedentes, distinguindo-os daqueles não-vinculantes e, pelo segundo procedimento, a constatação de sua aplicabilidade ou inaplicabilidade ao caso presentemente sub judice.

Aqui se revela, nitidamente, a impropriedade e impossibilidade mesma de um raciocínio jurídico baseado no direito de tipo romano-germânico ou europeu continental (civil law), ao qual é estranha a idéia de precedente vinculante.

A argumentação jurídica subjacente tanto à postulação, pelas partes, quanto à aplicação, pelo julgador, do direito de fonte judicial ou jurisprudencial é essencialmente diversa, baseando-se na constatação da identidade ou similitude essencial dos precedentes para com o caso julgando.

Consiste em um trabalho de comparação, identificação e distinção, pronunciadamente diverso do trabalho de subsunção dos fatos às prescrições genéricas e abstratas das normas.

Portanto, em termos de aplicação da súmula vinculante, insta, antes de tudo, como regra metodológica principal, jamais aplicar-se o texto do enunciado como se prescrição jurídica genérica e abstrata fosse, conscientizando-se de sua natureza meramente informativa.

Em seguida, insta perquirir-se, em profundidade, sobre a aplicabilidade ou inaplicabilidade dos precedentes que integram a súmula ao caso concreto em julgamento, através da constatação de sua identidade ou similitude essencial, o que somente é possível pela análise criteriosa dos precedentes que a integram.

Isto significa, em termos práticos, que o julgador jamais poderá deter-se na leitura do enunciado da súmula e na subsunção dos fatos aventados a tal enunciado, como se regra geral e abstrata fosse (i.e., como se dispositivo de lei fosse).

Deverá, isto sim, "abrir", por assim dizer, a súmula, isto é, recorrendo a um repositório de jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, ler e analisar cada um dos precedentes indexados na súmula, examinando não apenas suas ementas – também meras peças informativas, como os enunciados – mas o teor do voto vencedor e, se necessário, os votos dos demais ministros que tomaram parte no julgamento, com particular atenção para os fundamentos dos votos vencidos e as circunstâncias fáticas dos casos julgados.

São estes últimos elementos que, com maior clareza, podem trazer à baila fatos que distingam (ou identifiquem) os precedentes que integram a súmula ao caso presente sub judice.

Este trabalho de investigação do fundamento material dos precedentes, típico do case law, visa certificar-se da aplicabilidade ou inaplicabilidade dos precedentes vinculantes ao caso presente, o que se dá pela constatação de sua identidade ou similitude essencial.

Por isso deve-se ter em mente que a súmula é sempre, em um primeiro momento, aplicável apenas prima facie, eis que as circunstâncias dos precedentes e do caso em julgamento podem afastar sua aplicação a este.

Caso seja constatada, através da pesquisa dos precedentes, e não do enunciado da súmula, insista-se, a ausência de identidade ou similitude essencial entre os precedentes e o caso em julgamento, de ser afastada a aplicação da súmula, conforme preconizado pela teoria das distinções.

Isto se reporta à própria racionalidade subjacente ao case law: ora, se pela regra da stare decisis, por um imperativo de isonomia, casos iguais merecem julgamento igual, contrario sensu, casos diversos merecem tratamentos diversos."

Por essas razões, diferentemente dos textos normativos decorrentes da atividade legislativa, sobretudo aqueles de estatura constitucional, o enunciado da súmula vinculante não ostenta cariz dinâmico e prospectivo, não podendo, pois, divorciar-se da "mens legislatoris" para ganhar sentido e alcance não imaginados pelo Tribunal que o editou.


3 - O contexto da aprovação da Súmula Vinculante 04 do STF e sua repercussão imediata na jurisprudência trabalhista;

Na sessão plenária realizada em 30/04/2008, o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL reconheceu a existência de repercussão geral no Recurso Extraordinário 565714 e, julgando-o, resolveu adotar a súmula vinculante 04, publicada no DJe de 09/05/2008, com o seguinte texto:

"Salvo nos casos previstos na Constituição, o salário mínimo não pode ser usado como indexador de base de cálculo de vantagem de servidor público ou de empregado, nem ser substituído por decisão judicial."

O referido enunciado decorre da interpretação dada pelo STF à vedação contida na parte final do artigo 7º, IV, da Constituição da República de 1988, no sentido da inconstitucionalidade da utilização do salário mínimo como fator de indexação da economia, o que inclui a impossibilidade de sua adoção como base de cálculo do adicional de insalubridade previsto no inciso XXIII do mesmo dispositivo constitucional, ao contrário do que dispõem o artigo 192 da CLT e a Súmula 228 do TST.

Logo em seguida, a 7ª Turma do TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO, ao julgar Recurso de Revista em que se discutia a base de cálculo do adicional de insalubridade, interpretou a ressalva contida na parte final da súmula vinculante 04 como óbice à prolação de decisões judiciais no sentido da utilização de base de cálculo distinta do salário mínimo, até que sobrevenha alteração legislativa do artigo 192 da CLT que, apesar de não ter sido recepcionado pela Carta de 1988, continuaria aplicável, em razão da impossibilidade da substituição do Legislador pelo Judiciário.

O referido Acórdão foi publicado em 16/05/2008, com o seguinte texto:

"ADICIONAL DE INSALUBRIDADE - BASE DE CÁLCULO - SALÁRIO MÍNIMO (CLT, ART. 192) DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE SEM PRONÚNCIA DE NULIDADE (UNVEREINBARKEITSERKLARUNG) SÚMULA 228 DO TST E SÚMULA VINCULANTE 4 DO STF. 1. O STF, ao apreciar o RE-565.714-SP, sob o pálio da repercussão geral da questão constitucional referente à base de cálculo do adicional de insalubridade, editou a Súmula Vinculante 4, reconhecendo a inconstitucionalidade da utilização do salário mínimo, mas vedando a substituição desse parâmetro por decisão judicial. 2. Assim decidindo, a Suprema Corte adotou técnica decisória conhecida no direito constitucional alemão como declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia da nulidade (Unvereinbarkeitserklarung), ou seja, a norma, não obstante ser declarada inconstitucional, continua a reger as relações obrigacionais, em face da impossibilidade de o Poder Judiciário se substituir ao legislador para definir critério diverso para a regulação da matéria. 3. Nesse contexto, ainda que reconhecida a inconstitucionalidade do art. 192 da CLT e, por conseguinte, da própria Súmula 228 do TST, tem-se que a parte final da Súmula Vinculante 4 do STF não permite criar critério novo por decisão judicial, razão pela qual, até que se edite norma legal ou convencional estabelecendo base de cálculo distinta do salário mínimo para o adicional de insalubridade, continuará a ser aplicado esse critério para o cálculo do referido adicional, salvo a hipótese da Súmula 17 do TST, que prevê o piso salarial da categoria, para aquelas categorias que o possuam (já que o piso salarial é o salário mínimo da categoria). Recurso de revista provido. (RR 955/2006-099-15-00. 7ª Turma. Relator Ministro Ives Gandra Martins Filho. DJe 16/05/2008)."

Porém, com a devida vênia, não concordo com a referida interpretação dada à súmula vinculante 04, à luz das peculiaridades do precedente específico que ensejou sua aprovação.

O Recurso Extraordinário 565714, do qual foi Relatora Sua Excelência a Ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha, foi interposto por servidores públicos integrantes da Polícia Militar do Estado de São Paulo, e nele se discutia a constitucionalidade do dispositivo da Lei Complementar Estadual 432/1985, que define o salário mínimo como base de cálculo do adicional de insalubridade pago àqueles servidores.

Nada obstante o voto condutor tenha mencionado expressamente o artigo 192 da CLT, além de outros, como dispositivo incompatível com a vedação contida no artigo 7º, IV, da Constituição, a discussão travada, que conduziu à inserção da ressalva na parte final da súmula vinculante 04, decorreu de premissa fática específica do caso submetido a apreciação, a qual deve ser levada em conta.

Na ocasião, os recorrentes pretendiam que, com a declaração de inconstitucionalidade daquela norma estadual, fosse defina judicialmente sua remuneração como base de cálculo do adicional.

O Colegiado concordou que a inconstitucionalidade deveria ser declarada, mas ponderou, no entanto, que o Poder Judiciário não poderia substituir o legislador para definir base de cálculo diversa, em razão do disposto nos artigos 37, X e XIII, e 61, § 1º, II, a, da Constituição, que vedam a vinculação ou equiparação salarial no serviço público, e exigem a edição de lei específica, de iniciativa privativa do chefe do Poder Executivo, para a fixação ou aumento da remuneração no serviço público, senão vejamos:

"Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

[...]

X - a remuneração dos servidores públicos e o subsídio de que trata o § 4º do art. 39 somente poderão ser fixados ou alterados por lei específica, observada a iniciativa privativa em cada caso, assegurada revisão geral anual, sempre na mesma data e sem distinção de índices;

[...]

XIII - é vedada a vinculação ou equiparação de quaisquer espécies remuneratórias para o efeito de remuneração de pessoal do serviço público;

[...]

Art. 61. A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.

§ 1º - São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que:

I - fixem ou modifiquem os efetivos das Forças Armadas;

II - disponham sobre:

a) criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;"

Vê-se, pois, que a ressalva contida na parte final da súmula vinculante 04, no sentido de que o salário mínimo definido em lei como indexador de parcela remuneratória não pode ser substituído por decisão judicial, diz respeito, tão somente, às hipóteses em que se discute a base de cálculo de vantagem de servidor público em sentido amplo.

Nesse contexto, nada obstante a declaração de inconstitucionalidade, por força da incidência das referidas normas constitucionais proibitivas, o STF resolveu preservar a aplicação da lei estadual, mantendo a vinculação da parcela remuneratória ao salário mínimo, até que sobrevenha lei prevendo base de cálculo distinta para o adicional.

Revelam-se, assim, as circunstâncias que motivaram a inserção da ressalva na parte final da súmula vinculante 04, levando à conclusão de que a vedação não se aplica aos casos em que se discute a base de cálculo do adicional de insalubridade pago na iniciativa privada.


4 - Inadequação da técnica de declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade, para a solução da controvérsia;

Não se mostra adequada à solução da controvérsia acerca da constitucionalidade da base de cálculo definida no artigo 192 da CLT a técnica tedesca denominada "declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia da nulidade", à qual se refere a decisão da 7ª Turma do TST.

Por força dos princípios hermenêuticos da força normativa, da máxima efetividade, e da supremacia da Constituição, a adoção da referida técnica se mostra admissível se, e somente se, da não-aplicação do dispositivo legal não recepcionado, puder resultar vácuo jurídico intolerável para o ordenamento jurídico.

Materializa-se o vazio normativo insuportável quando a retirada da norma do ordenamento jurídico afete o exercício de direitos marcados pela nota da fundamentalidade, especialmente aqueles de natureza social, o que implicaria em afronta aos princípios da segurança jurídica e da vedação ao retrocesso social, o primeiro decorrente da própria existência do direito, e o segundo previsto no artigo 26 da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica).

Nesse sentido, GILMAR FERREIRA MENDES [04]:

"A tese segundo a qual, não obstante a declaração de inconstitucionalidade, a lei haveria de preservar a sua validade até a promulgação das novas regras, porque o Supremo Tribunal Federal, nos processos de controle de omissão, limita-se a declarar a inconstitucionalidade de determinadas situações jurídicas, não se compatibiliza com a idéia assente no direito brasileiro que considera nula a lei inconstitucional. A Constituição de 1988 não parece fornecer qualquer fundamento para a aplicação indiscriminada da lei inconstitucional. O princípio do Estado de Direito e a vinculação dos poderes estatais aos direitos fundamentais, estabelecida no art. 5º, § 1º, da Constituição, estão a indicar que não basta a promulgação de uma lei. A lei exigida pela Constituição, tal como ocorre no direito alemão, não pode ser qualquer lei, mas lei compatível com a Constituição.

O princípio do Estado de Direito (art. 1º), a vinculação dos poderes estatais aos direitos fundamentais (art. 5º, § 1º), a proteção dos direitos fundamentais contra eventual mudança da Constituição (art. 60, § 4º), bem como o processo especial para a revisão constitucional (art. 60) não só ressaltam a diferença entre lei e Constituição e estabelecem a supremacia desta sobre aquela, como também fixam as condições que devem ser observadas na promulgação das leis ordinárias.

Atribui-se, portanto, hierarquia de norma constitucional, também no Direito brasileiro, ao postulado da nulidade das leis inconstitucionais.

[...]

Aceita a idéia geral de que a declaração de inconstitucionalidade da omissão parcial exige a suspensão de aplicação dos dispositivos impugnados, não se deve perder de vista que, em determinados casos, a aplicação excepcional da lei inconstitucional traduz exigência do próprio ordenamento constitucional.

Isto poderia ser demonstrado com base no exame de algumas normas constitucionais que requerem, expressamente, a promulgação de leis. Um único exemplo há de explicitar esse entendimento. Nos termos do art. 7º, IV, da Constituição, o trabalhador faz jus a "salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família, com moradia, alimentação, educação, saúde, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo (...)". Essa norma contém expresso dever constitucional de legislar, obrigando o legislador a fixar salário-mínimo que corresponda às necessidades básicas dos trabalhadores.

Se o Supremo Tribunal Federal chegasse à conclusão, em processo de controle abstrato da omissão ou mesmo em processo de controle abstrato de normas - tal como ocorreu com o Bundesverfassungsgericht, a propósito da lei de retribuição dos funcionários públicos, em processo de recurso constitucional (Verfassungsbeschwerde) -, que a lei que fixa o salário-mínimo não corresponde às exigências estabelecidas pelo constituinte, configurando-se, assim, típica inconstitucionalidade em virtude de omissão parcial, a suspensão de aplicação da lei inconstitucional - assim como sua eventual cassação - acabaria por agravar o estado de inconstitucionalidade. É que, nesse caso, não haveria lei aplicável à espécie.

Portanto, a suspensão de aplicação da norma constitui conseqüência fundamental da decisão que, em processo de controle abstrato da inconstitucionalidade por omissão e no mandado de injunção, reconhece a existência de omissão parcial. Todavia, ter-se-á de reconhecer, inevitavelmente, que a aplicação da lei, mesmo após a pronúncia de sua inconstitucionalidade, pode ser exigida pela própria Constituição. Trata-se daqueles casos em que a aplicação da lei mostra-se, do prisma constitucional, indispensável no período de transição, até a promulgação da nova lei.

Como a Constituição não contém qualquer decisão a respeito, devem ser regulamentadas por lei as importantes questões relacionadas com a superação desse estado de inconstitucionalidade. No interesse da segurança, da clareza e determinação jurídicas, deveria o legislador editar uma regra sobre suspensão de aplicação e legitimar o Supremo Tribunal Federal a, sob determinadas condições, autorizar a aplicação do direito inconstitucional, nos casos constitucionalmente exigidos. De lege ferenda, poder-se-ia cogitar do estabelecimento de prazos dentro dos quais seria admissível a aplicação da lei inconstitucional."

Atente-se que a incompatibilidade entre a base de cálculo definida no artigo 192 da CLT e o disposto no artigo 7º, IV, "in fine", da Constituição, não se resolve mediante declaração de inconstitucionalidade da norma celetista, mas pela conclusão de sua revogação, por não-recepção.

Configura-se, assim, verdadeira omissão do Poder Legislativo quanto à atualização do corpo normativo anterior, à luz da nova ordem constitucional, aplicando-se à hipótese, portanto, o raciocínio exposto pelo Ministro GILMAR MENDES, no trecho acima transcrito.

No entanto, a revogação da norma celetista foi parcial, na medida em que o artigo 7º, XXIII, da Constituição de 1988 também garantiu aos trabalhadores, como direito fundamental, a percepção de adicional pelo serviço em atividades insalubres, sendo incompatível com o inciso IV do mesmo dispositivo, apenas, a base de cálculo definida no artigo 192 da CLT.


5 - O recurso à analogia como alternativa à adoção da técnica da declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade;

Diante disso, o juízo de revogação da norma celetista, no tocante à base de cálculo do adicional, não implica em vácuo jurídico intolerável que comprometa a ordem jurídica, de forma a justificar uma declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia da nulidade.

É que existe no ordenamento jurídico brasileiro norma compatível com a Constituição de 1988 que viabiliza o contínuo pagamento do adicional de insalubridade, sem que seja necessário manter o estado de inconstitucionalidade decorrente da aplicação do artigo 192 da CLT.

Trata-se do artigo 193, § 1º, da CLT, que define como base de cálculo do adicional de periculosidade, igualmente previsto no artigo 7º, XXIII, da Constituição de 1988, o salário base do empregado, sem outros acréscimos de natureza remuneratória, nos seguintes termos:

"Art. 193, § 1º - O trabalho em condições de periculosidade assegura ao empregado um adicional de 30% (trinta por cento) sobre o salário sem os acréscimos resultantes de gratificações, prêmios ou participações nos lucros da empresa."

A identidade dos fundamentos que levaram o constituinte a garantir, como direito fundamental dos trabalhadores, o pagamento dos adicionais de periculosidade e insalubridade, viabiliza a aplicação analógica da norma prevista no artigo 193, § 1º, da CLT, de forma a suprir a omissão legislativa quanto à necessidade de atualização do artigo 192, no tocante à base de cálculo nele definida.

O recurso à analogia, nessa situação, mostra-se preferível à manutenção do estado de inconstitucionalidade decorrente da contínua aplicação do artigo 192 da CLT, sem que o Poder Judiciário se imiscua nas atribuições inerentes ao Poder Legislativo, mediante fixação de base de cálculo distinta daquela prevista em lei.

Essa foi a opção do TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO, que resolveu, em sessão plenária realizada em 26/06/2008, rechaçar a tese jurídica adotada pela sua 7ª Turma na decisão já mencionada, ao dar nova redação à Súmula 228, para definir o salário básico do empregado como base de cálculo do adicional de insalubridade, a partir de 09/05/2008, data da publicação da Súmula Vinculante 4, nos seguintes termos:

"SÚMULA 228. ADICIONAL DE INSALUBRIDADE. BASE DE CÁLCULO. A partir de 9 de maio de 2008, data da publicação da Súmula Vinculante n.º 4 do Supremo Tribunal Federal, o adicional de insalubridade será calculado sobre o salário básico, salvo critério mais vantajoso fixado em instrumento coletivo."

Por essas razões, concordo com o entendimento firmado na nova súmula 228 do TST, para concluir que o adicional de insalubridade previsto no artigo 192 da CLT deve ser calculado sobre o valor do salário básico do empregado, por aplicação analógica do art. 193 da CLT.


6 - Da viabilidade da modulação temporal dos efeitos da declaração de revogação por não recepção, e o princípio constitucional da segurança jurídica;

Observe-se que, na nova redação dada a sua Súmula 228, a Corte Superior Trabalhista resolveu modular os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, ou melhor, da declaração de revogação, por não recepção, da base de cálculo definida no artigo 192 da CLT.

A referida modulação temporal dos efeitos encontra previsão no artigo 27 da Lei 9.868/1999, que dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o STF, cujo teor é o seguinte:

"Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado."

Observe-se que, nada obstante se refira, apenas, à modulação dos efeitos no controle concentrado de constitucionalidade, a previsão legal não exclui a adoção da técnica no controle difuso, que se mostra possível, em respeito ao princípio da segurança jurídica, e aos postulados da lealdade, da boa-fé e da confiança legítima, sobre os quais se assenta o próprio Estado Democrático de Direito.

Nesse sentido, GILMAR FERREIRA MENDES [05]:

"Embora a Lei n. 9.868, de 10-11-1999, tenha autorizado o Supremo Tribunal Federal a declarar a inconstitucionalidade com efeitos limitados, é lícito indagar sobre a admissibilidade do uso dessa técnica de decisão no âmbito do controle difuso. Ressalte-se que não se está a discutir a constitucionalidade do art. 27 da Lei n. 9.868, de 1999. Cuida-se aqui tão-somente de examinar a possibilidade de aplicação da orientação nele contida no controle incidental de constitucionalidade. [...] Ressalte-se que o modelo difuso não se mostra incompatível com a doutrina da limitação dos efeitos. [...] Não parece haver dúvida de que, tal como já exposto, a limitação de efeitos é decorrência do controle judicial de constitucionalidade, podendo ser aplicado tanto no controle direto quanto no controle incidental."

No entanto, a referida modulação de efeitos se justifica, tão somente, nos casos em que a situação jurídica já esteja consolidada e definitivamente resolvida, de forma a preservar a lealdade, a boa-fé e a confiança legítima dos indivíduos no ordenamento jurídico e na norma aparentemente em vigor, a exemplo dos contratos de trabalho nos quais, mesmo após a Constituição de 1988, houve pagamento do adicional de insalubridade com base no salário mínimo, nos termos do que dispunha o artigo 192 da CLT, e a antiga orientação contida na Súmula 228 do TST.

Por esse motivo, entendo que a modulação temporal de efeitos promovida pelo TST na nova redação de sua Súmula 228 não se aplica às demandas judiciais pendentes em que a questão controvertida seja o próprio direito do trabalhador ao pagamento do adicional de insalubridade, por serviços prestados em ambiente insalubre antes de 09/05/2008, data da publicação da Súmula Vinculante 04 do STF.

É que, nesses casos, como não houve pagamento do adicional, não há lealdade, boa-fé, e confiança legítima a serem tuteladas, sendo insustentável, pois, a modulação dos efeitos.

Por outro lado, nas situações em que a controvérsia se referir à existência da insalubridade no local de trabalho, não se mostra aplicável a modulação temporal de efeitos, da prevista na Súmula 228 do TST.

Nessas hipóteses, o adicional de insalubridade não deve ser calculado sobre o salário mínimo, nem sobre o conjunto remuneratório, mas sobre o salário básico do empregado, sem acréscimos, conforme previsão do artigo 193 da CLT, de aplicação analógica.


Notas

  1. STRECK, Lenio Luiz. O Fahrenheit Sumular do Brasil: O Controle Panóptico da Justiça. Disponível em: <http://leniostreck.com.br/index2.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=17&Itemid=40>. Acesso em: 07 jul. 2008.
  2. SGARBOSSA, Luís Fernando; JENSEN, Geziela. Súmula vinculante, princípio da separação dos poderes e metódica de aplicação do direito sumular. Repercussões recíprocas. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1798, 3 jun. 2008. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/11327>. Acesso em: 18 jun. 2008.
  3. Idem, ibidem.
  4. MENDES. Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 2.ed. - São Paulo: Saraiva, 2008. p. 1263-1266.
  5. MENDES, Gilmar Ferreira. Op. cit. p. 1096-1099

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BARBOZA, Fernando Luiz Duarte. A ressalva contida na parte final da Súmula Vinculante nº 4 do Supremo Tribunal Federal e seus reflexos no Direito do Trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1861, 5 ago. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11575. Acesso em: 26 abr. 2024.