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Até quando o STJ almeja ser Supremo?

Até quando o STJ almeja ser Supremo?

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I – Da hipótese fática:

Dois amigos tiveram suas respectivas mulheres falecidas em acidente de trabalho. Cada qual contratou advogado diverso, dando azo a duas lides distintas.

Numa delas houve questionamento da competência da Justiça do Trabalho e, por conta disso, no Superior Tribunal de Justiça fora decidido que a Justiça Estadual é que deveria julgar aquela causa. Quanto à outra, por seu turno, foi apreciada pela Justiça Obreira.

Curiosamente, o litígio que tramitara inteiramente na Justiça do Trabalho foi decidido com brevidade, já o que transcorre na Justiça Comum sequer ainda restou sentenciado.

Os dois amigos, no botequim, estão indagando o porquê desta disparidade de tratamento, onde um deles já atingira a satisfação do seu direito, enquanto o outro, sem desejo de perpetrar trocadilho, amarga a insatisfação do seu pleito!


II – Da mesma base fática – acidente de trabalho – ajuizamento por herdeiros – alteração competencial:

O Superior Tribunal de Justiça, em recente notícia, averba que:

"Cabe à Justiça comum o julgamento de ação de indenização por danos morais e materiais proposta por viúva e filho de empregado falecido devido a acidente de trabalho. (...)

Ao analisar o pedido, o ministro Cesar Rocha reitera a jurisprudência pacífica do Tribunal sobre o fato de a ação de indenização ajuizada por viúva e filho deve ser processada e julgada pela Justiça comum." (in http://www.stf.gov.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp. Acesso em 14.08.2008).

Realmente, a ementa infra está na linha do gizado no parágrafo anterior, pois veja-se:

"Conflito de competência. Acidente do Trabalho. Morte do empregado. Ação de indenização proposta pela esposa e pelo filho do falecido. 1. Compete à Justiça comum processar e julgar ação de indenização proposta pela mulher e pelo filho de trabalhador que morre em decorrência de acidente do trabalho. É que, neste caso, a demanda tem natureza exclusivamente civil, e não há direitos pleiteados pelo trabalhador ou, tampouco, por pessoas na condição de herdeiros ou sucessores destes direitos. Os autores postulam direitos próprios, ausente relação de trabalho entre estes e o réu. 2. Conflito conhecido para declarar a competência da Justiça comum." (STJ. Processo: CC 54210/RO. Rel. Min. CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO. Data do Julgamento 09/11/2005).

Cabe-nos, com o todo respeito, nas linhas que se seguem, trazer à baila os argumentos que forram as teses do colendo Superior Tribunal de Justiça e, igualmente, refutá-las.

Assim sendo, a augusta Corte no-lo diz:

a) "Não há disputa entre empregador e empregado" – ao que parece, tal asserção padece de sustentação jurídica, porque em se estando diante de um acidente de trabalho, onde os sucessores do falecido postulam verbas advindas deste infausto, infere-se que se dera ante a falta de consenso entre esses interessados e o patrão do morto. Basta se observar que se o empregador, por si só, se dispuser a satisfazer os interesses daqueles que entendem que a morte lhes transferira pretensões, aí sim desapareceria quaisquer frestas de litigiosidade.

Ora, se de um lado existe uma pretensão consistente no pleito dos sucessores em se verem ressarcidos por conta do sinistro laboral e no instante mesmo em que o empregador oferta resistência a essa vindicação, nascera, com todas as letras, a figura do conflito de interesses, como bem ressuma da lição de Carnellutti, ao vazar que há:

"Conflito de interesses na medida em que são muitas as vontades dos envolvidos, todas elas em desarmonia. E a pretensão resistida significa dizer que a vontade de um encontra resistência na vontade do outro." (in Sistema del Diritto Processuale Civile, Pádua, 1936, p. 40).

Portanto, malgradas as opiniões em contrário, conclui-se que conflito de interesses existe entre os sucessores do de cujus e a figura do seu então empregador;

b) "Não há pretensão deduzida pelos autores como trabalhadores, mas como cidadãos que, em tese, sofreram prejuízos materiais e morais" – acontece, todavia, que o art. 114 da Carta de Outubro, após a EC 45/04, retirou o binômio empregado-empregador para a caracterização da competência material da Justiça do Trabalho, tanto assim o é que inseriu o vocábulo relação de trabalho, que é muito mais amplo que vínculo de emprego. Isto está na norma constitucional, de modo que nenhum intérprete poderá ignorar tal circunstancia quando da exegese do caso sub judice.

Não é a toa que o Supremo Tribunal Federal averba que:

"Ação de indenização por acidente de trabalho deve ser julgada pela Justiça do Trabalho, decide Supremo.

O plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) reformulou entendimento anterior e declarou que a competência para julgar ações por dano moral e material decorrente de acidente de trabalho é da Justiça Trabalhista.

A decisão unânime foi tomada durante análise do Conflito negativo de competência (CC 7204), suscitado pelo Tribunal Superior do Trabalho contra o Tribunal de Alçada de Minas Gerais''." (apud decisão que declarou incompetência do Juízo estadual, constante do conflito de competência 54210/RO, cit.).

Desta feita, a lide gestada pelos sucessores do finado advém de um acidente do trabalho, ou seja, tem como fato fundante a morte de uma pessoa que estava a serviço de outrem, o que é o bastante para se verificar que a nascença deste inconformismo prende-se a uma circunstância afeta à relação de trabalho, suficiente para ser dirimida tal celeuma no átrio da Justiça Trabalho.

Seria um disparate imaginar que uma mesma base fática - acidente do trabalho - pudesse fazer desaguar duas competências distintas, a saber: se a ação fosse proposta pelo acidentado, Justiça do Trabalho, mas, se pelos seus sucessores, Justiça Comum. Como ficaria em casos tais a boa interpretação do princípio da unidade de convicção, que quer dizer que de um mesmo fato seja ele tido na sua angulação principal ou acessória, haverá de se ter um mesmo juízo para analisá-lo?

Logo, quer nos parecer, até mesmo em nome da especialização da Justiça do Trabalho, tão maximizada pelo legislador constitucional que ampliou sua competência quanto aos conflitos decorrentes da relação de trabalho como um todo, que em havendo acidente de trabalho e conseqüente lide ajuizada em virtude do mesmo, seja pelo empregado vitimado ou por seus familiares, inarredável que o julgamento disso deve dar-se na Justiça do Trabalho.

Finaliza-se, neste tanto, com essa prestimosa decisão do Supremo Tribunal Federal:

"É irrelevante para definição da competência jurisdicional da Justiça do Trabalho que a ação de indenização não tenha sido proposta pelo empregado, mas por seus sucessores." (Processo RE-ED 482797/SP. Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI. Data de julgamento: 13.05.2008)

c) "os direitos não são pleiteados pelo trabalhador ou, tampouco, por pessoas na condição de herdeiros ou sucessores destes direitos. Os autores postulam direitos próprios em virtude de danos, também, próprios, ausente relação de trabalho entre estes e o réu." – jamais se poderá dizer que o dano advindo da morte levada a cabo no acidente de trabalho seja autônomo para os sucessores, mas, sim, dele decorre, inexoravelmente.

Procedendo-se um bosquejo na linha do tempo, melhor dizendo, enveredando-se por uma análise da equivalência das causas, unicamente se é deflagrada a via judicial por conta do evento morte. Sem ele inexistiria o interesse de agir.

A morte defluente do acidente laboral está, portanto, como conditio sine qua non para o dealbar da lide impulsionada por aqueles que detenham liame jurídico com o sinistrado.

Não se consegue entender como o Superior Tribunal de Justiça chega à conclusão de que ação de indenização movida pelos sucessores do morto no acidente de trabalho possa constituir-se em direito próprio daqueles. Direito autônomo, por exemplo, poder-se-ia pensar em uma situação de poluição atmosférica, onde qualquer dos prejudicados poderia, de per si, detonar uma lide, mas aqui não, visto que ela advém da casuística "morte em acidente de trabalho".

Demais disso, se houvera um acidente de trabalho, perdoado o tautologismo, é porque existira uma relação de trabalho, tal como se pensa no manequim face à viabilidade de um corpo humano para se ver recoberto por uma vestimenta.

De efeito, se factível a relação de trabalho, todo e qualquer litígio daí decorrente, como não poderia deixar de ser, a menos que se estivesse frente à lide de consumo – ressalva gizada pelo art. 3º, § 2º, parte final, da Lei 8.078/90 – haverá de ser sindicado pela Justiça do Trabalho, como vem expressado no art. 114, I e VI, da Constituição da República.

Derradeiramente, menos compreensível ainda é conceber que o partícipe na linha reta colateral ou na condição cônjuge supérstite do falecido que viera a ser defenestrado no acidente de trabalho não esteja na standard sucessório, a não ser que haja plena e restrita ignorância do vertido no art. 1.829, do Código Civil.

Então, guiando-se por uma exegese lógico-jurídica, afirma-se, sem qualquer dificuldade, que o pleito de ressarcimento fulcrado na morte por acidente de trabalho é de competência da Justiça Especializada, como restou explanado dantes e, mais que isso, a competência para tais lides é riscada pela Carta Magna, que no dizer longevo será aquilo que o Supremo disser que é, e ele já disse que tal matéria é afeta à Justiça do Trabalho e somente ele poderá decidir sobre questão constitucional, como se espraia do art. 102, da Lex Legum.


III – Das ponderações imprescindíveis:

Soa bastante razoável a linha de raciocínio já sufragada, aliás, pelo Supremo, que bate-se pela competência da Justiça do Trabalho nas aspirações ressarcitórias emergentes de acidente laboral, pois vejamos:

a) Se se enveredasse pela trilha de que somente seria da Justiça Obreira os casos de reparação de danos ajuizados pelo vitimado-vivo, chegar-se-ia à absurda idéia de que se ele morresse no curso da lide, vindo a ser substituído pelos sucessores, nos moldes do preconizado pelo art. 265, I, c/c 1.055, ambos, do Código de Processo Civil, a competência transmudar-se-ia da Justiça Especializada para a Justiça Comum. Monstruosidade jurídica!

É de se salientar, igualmente, que se a dita alteração competencial fosse viável, o princípio da perpetuação da jurisdição teria perdido seu viço, ou seja, o art. 87, do CPC, teria uma relativização inacreditável, qual seja, poderia ocorrer o translado dos autos da Justiça do Trabalho para a Justiça Comum se o lesado em acidente de trabalho falecesse no tramitar do feito que estava no átrio da Especializada. Isso, ao que parece, nem de longe, sonhara o Superior Tribunal de Justiça;

b) Suponha-se que se ajuíze uma lide de reparação de danos, cuja gênese esteja na fatídica hipótese de acidente de trabalho, perante a Justiça Comum e nas idas e vindas recursais o feito aporte no STF e este, por sua vez, declare a nulidade de todos os atos decisórios por terem sido praticados por juízo absolutamente incompetente (art. 113, § 2º, do CPC). Entrementes, da data do acidente de trabalho até a decisão do Supremo, tenha transcorrido prazo superior ao biênio e, tomando esse como fatal, como se livrar de tal peia assim que os atos forem remetidos à justiça do Trabalho. Teremos ganhado um novo instituto, famigerado é certo para os sucessores do morto, a "prescrição judicial".

Essas tormentas, novamente, parece que ficam fora da cogitação do Superior Tribunal de Justiça, que deslembra, infelizmente, neste tanto, que ao jurisdicionado deve ser facilitado o acesso aos seus direitos, e não que lhe seja colocado ao pescoço uma mó de agruras! Porque não se colocar na cabeceira dos magistrados, insculpido com férreas letras, a novel dicção do inciso LXXVIII do art. 5º da Carta Republicana.

Põe-se fecho aqui com o Pacto de São José da Costa Rica que, hodiernamente, adentra para o nosso cenário jurídico com força de norma constitucional (art. 5º, § 2º e § 3º, da Carta Cidadã), que de há muito já rezava em seu art. 8º, 1, que:

"Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza."

Ora, está em consonância com a ordem constitucional uma postura hermenêutica que, calcando-se num mesmo fato-tipo, acidente de trabalho biparte a competência com arrimo na construção cerebrina de que a morte do trabalhador é suficiente para dar nascença a um divisor de jurisdição?

Acomoda-se no espectro de celeridade um posicionamento, tal como se dá com o STJ, que agracia os sucessores do vitimado por acidente de trabalho com as achegas da Justiça Comum, que é visivelmente mais lenta na prestação jurisdicional;

c) O mais entristecedor de tudo isso é que o STJ quando divide a competência nas lides ora em comento, dá de ombros à autoridade dos julgados do Supremo Tribunal Federal, postura essa que a par de deselegante, é extremamente antidemocrática, vilipendiadora e usurpadora da competência constitucional reservada ao Supremo Tribunal Federal.

Saudades da verve do pranteado Seabra Fagundes, administrativista de nomeada, que assercionava que:

"Administrar é aplicar a lei, de ofício" (na obra "O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário", 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 3).

Para aqui, de modo tosco, transpormos para "jurisdizer é aplicar a lei de ofício".

Como seria bom se o STJ procedesse nesta toada. Os operadores do direito agradeceriam e os jurisdicionados, estes sim, sentir-se-iam protegidos pelo manto da Justiça do Trabalho que, em casos tais, é a constitucionalmente competente.

Contudo, a parte que se sentir prejudicada em lides que entender que as ações de reparação de danos promovidas por sucessores do falecido devam ser julgadas pela Justiça Comum, embora indignadas, ainda têm um remédio jurídico, qual seja, a reclamação para o Supremo Tribunal Federal, esteando-se no art. 102, I, l, da Carta de Outubro, sem sombra de dúvidas, primaveril!

Em se lançando mão do instituto da reclamação, como é óbvio, poderá reivindicar a total extirpação do deslocamento da competência da Justiça Laboral para a Comum, arrimando-se no art. 13 e ss. da Lei 8.038/90 e, com isso, certamente reporá, embora mais tardiamente, as coisas no lugar no lugar donde nunca deviam ter saído.

Embora, por amor à dogmática, o art. 13 da Lei 8.038/90 legitime as partes e o Parquet para viabilizarem o instituto da reclamação, talvez, em uma interpretação mais liberal, se pudesse elucubrar uma reclamação, no caso aqui tratado, detonada por associações que, ao enxergarem essa clara desobediência pelo STJ às decisões do Supremo, clamassem por desfazer essa insegurança jurídica que paira e prejudica principalmente os sucessores daqueles vitimados em acidente de trabalho, os quais, em regra, são pessoas despidas de qualquer vulto econômico e por isso mesmo deveriam ser protegidas pela força organizacional das agremiações.

Porem, uma coisa é certa: o Ministério Público do Trabalho, este sim, tem inescondível legitimação processual para, não se conformando com as ditas decisões do STJ, malgastadoras da autoridade dos julgados do Supremo, alvejarem-nas por meio da reclamação dirigida ao Supremo Tribunal Federal. Oxalá isso aconteça.

Evocando a autoridade de Rui Barbosa, que bradava que "A justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta" e sabedores que a Justiça Comum, apesar dos enumeráveis esforços de seus integrantes, tem passo mais lento na prolação das decisões em relação à Justiça Obreira, é que tomamos a dor daqueles sucessores de falecidos em acidente de trabalho, já tão apenados com as úlceras do lamento lancinante da perda de um ser amado, para convocá-los a não se conformarem com esse alijamento da competência da Justiça Laboral e baterem às portas do Pretório Excelso para que seus pleitos continuem a serem analisados pelo Órgão Especializado, muito mais afeito à proteção dos direitos dos hipossuficientes, de modo que o STJ não se torne Supremo!



Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANDIM, Emerson Odilon; PRATES, Ana Paula Feitosa. Até quando o STJ almeja ser Supremo?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1881, 25 ago. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11639. Acesso em: 28 mar. 2024.