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Poligamia e o laicismo estatal.

Permissão constitucional ou proibição moral?

Poligamia e o laicismo estatal. Permissão constitucional ou proibição moral?

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Muito se discute, nos últimos anos, acerca da possibilidade de casamento ou união estável entre pessoas do mesmo sexo, fato que, aos poucos, está sendo incorporado aos Tribunais, a exemplo de recentes decisões conferindo direito ao casamento homossexual.

Aliás, tem-se admitido, ainda que em pequena escala, a possibilidade de adoção de crianças órfãs por "casal" [01] homossexual, o que, por certo, destoa da realidade vivenciada até o início do século XXI.

Concomitantemente, a relação matrimonial entre homem x mulher vem tomando novos ares, sobremaneira com a grande divulgação da união estável, que de 1994 para 2008 tomou proporções inimagináveis, haja vista que o legislador sequer dispensou 3 artigos no Código Civil para sua regulamentação.

A despeito de essas alterações ou novas concepções estarem certas ou erradas, o que se quer demonstrar é que o instituto do matrimônio está sofrendo severas modificações ou, talvez, atualizações, passíveis de gerarem dúvidas sobre o grau de inferência, in casu, do art. 1.521, CC/02 (rol dos proibidos de casarem), ao cotidiano.

Para melhor entendimento, transcrevo o art. 1.521, CC. In verbis:

Art. 1.521 – Não podem casar:

I – os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil;

II – os afins em linha reta;

III – o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do adotante;

IV – os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais até o terceiro grau inclusive;

V – o adotado com o filho do adotante;

VI – as pessoas casadas;

VII – o cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte.

Não há que ser radical e entender o artigo supra transcrito como caduco (vigente, mas sem eficácia concreta), até mesmo porque o casamento ainda se submete ao prévio controle judicial, o qual impede que matrimônios proibidos se consumam.

Entretanto, pode-se admitir questionamentos sobre a validade ou a gênese de cada inciso do art. 1.521, concluindo, assim, pela sua legalidade ou ilegalidade, ainda que pelo arbítrio do intérprete, ou, melhor dito, caberá à cada hermeneuta ter como válida ou não referido texto legal, o que, em larga escala, redunda na caducidade da norma.

O que impede o cônjuge sobrevivente a casar-se com o homicida de seu consorte? Obviamente, enquanto escritor deste ensaio, não o faria, todavia, quem assim o quisesse, poderia fazê-lo. Ou ainda, o que impede os afins em linha reta de casarem-se?

Enfim, são perguntas que possuem suas respostas na essência do molde Estatal do Mundo Ocidental, o qual, como cediço, erigiu-se sob os espectros cristãos.

Não é objetivo deste breve estudo elucidar a formação ou demonstrar a epistemologia do Estado, até mesmo porque o fato que releva para nós é praticamente público e notório.

Nossa sociedade possui uma herança religiosa muito grande, em especial da Igreja Católica, a qual se dividiu em várias vertentes [02] que passaram a ser chamadas, em conjunto, de cristianismo.

Como exemplo, podemos citar o período histórico onde a Igreja Católica e o Estado se misturavam, ao passo de as sanções civis (Tribunal de Inquisição) decorrerem de pecados religiosos.

Ou mesmo nos idos feudais, onde o poder dos Reis decorriam da vontade de Deus, capazes de controlar todo um povo que, crentes na religiosidade e na escolha Divina, respondiam lealmente aos comandos dos superiores.

Até mesmo nas revoluções, a religião era invocada como fundamento e legitimação do movimento revolucionário, sempre atrelado, entretanto, à busca pelo poder.

De uma forma ou de outra, a sociedade ocidental tem sua história irrigada pelo domínio religioso, que, obviamente, refletiu no ordenamento jurídico.

Nem Kelsen nem qualquer outro filósofo ou pensador do Direito conseguiria isolar a Ciência Jurídica das contingências religiosas, as quais até os dias atuais demonstram-se fortes e enraizadas em nossa cultura jurídica.

Por fim, peço que analisem com cautela os Dez Mandamentos da Bíblia, para conseguirem uma melhor percepção do que exponho, a saber: Mandamento 4, sábado como descanso; 5, honra ao pai e mãe; 6, não matarás; 7, não cometerás adultério; 8, não furtarás; 9, não levantarás falso testemunho; 10, não cobiçarás o que pertence ao próximo. Por certo estão intrínsecos à nossa cultura; são inatos! [03]

Essa herança religiosa é o que acontece com o art. 1.521, CC/02. Nitidamente podemos perceber que os incisos que compõem o artigo em questão decorrem de um entendimento cristão, que, em alguns casos, já se confunde com o sentido de moral e de valores, afinal, nascemos e crescemos nesse molde religioso, mesmo aqueles que não freqüentam uma Igreja.

Porque não podem casar-se os afins em linha reta? É moralmente ilegal, ou melhor, religiosamente ilegal.

Por outro lado, o art. 5º da Constituição Federal, no seu inciso VI, aduz que: "é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias".

Em outras palavras: O estado é laico.

Mas, como acreditar num laicismo sendo que a formação do Estado se deu pelo império (ou imperialismo) cristão?

Sabemos que aos muçulmanos, a exemplo, é expressamente permitida a poligamia, em conformidade com o Livro Sagrado (Alcorão). Tendo-se como premissa um estado laico, questiona-se: O inciso VI do art. 1.521, CC (proibição de casamento aos já casados) é aplicável à crença muçulmana?

Outrossim, a mesma Carta Magna possui como princípio a não-intervenção (laisser-faire), notadamente no Estado Democrático de Direito que vivenciamos. Ora, se a não intervenção nas relações pessoais e o laicismo estatal são premissas basilares da Constituição Federal, como admitir uma regra infraconstitucional que impeça a poligamia entre os muçulmanos?

Afasta-se o movimento Constitucional em prol de uma segurança jurídica? Afinal, adotando-se a liberdade de crença na sua totalidade, teríamos, provavelmente, uma guerra religiosa, cada uma em busca de novos fiéis e novos conceitos que, por princípios (laicismo), estariam admitidos, à despeito de regras positivadas.

Uma das primeiras perguntas que surgem quando este tema é posto em discussão é: e o satanismo? Admitiríamos a morte de determinada pessoa por motivos religiosos (satânicos)?

Afinal, para afastarmos a deontologia (obrigação, permissão ou proibição) do art. 1.521, devemos fazê-lo de modo geral e abstrato, ou seja, não compete abrir precedentes para relativizar as proibições ao casamento à luz da liberdade de crença, sem que, da mesma forma, possamos estendê-las à outras esferas do dia-a-dia.

Essa, com certeza, é a maior dificuldade em defendermos a liberdade de crença e, conseqüentemente, da aplicação dos valores religiosos. O que se pugna num segmento da doutrina é pela liberdade de culto, Constitucionalmente defendida, mas não aplicabilidade irrestrita dos dogmas de cada religião.

Nesta linha, retoma-se o conceito básico de que o direito de um termina quando encosta ou esbarra no direito do próximo. Ou, como já diria Robert Alexy, a colisão de princípios deve ser solucionada pela proporcionalidade ou razoabilidade.

O que se conclui diante todo esse apanhado histórico, é que, de fato, os impedimentos do art. 1.521 precisam ser revistos! O tema pode até parecer novo, entretanto, a crescente modificação das relações amorosas (informais ou não) impõe uma reestruturação de todo fundamento marital, incluindo-se, aí, as proibições.

Ainda mais no momento que vivenciamos atualmente, com a abertura das culturas árabes e chinesas, às vezes totalmente incompreendidas e, muitas vezes, desconhecidas por nós.

Não há possibilidades de prevermos, hoje, os impactos que essa disseminação da cultura árabe poderá ter em nossa sociedade. Aliás, as últimas produções Hollywoodianas já demonstram essa abertura cultural, que, aos poucos, é inserida em nosso cotidiano.

Por derradeiro, frise-se que este artigo tem por objetivo discutir o Direito, não expondo, desta feita, uma conclusão adequada ou definitiva sobre o tema, o qual, diga-se de passagem, gera imensos conflitos ideológicos.

Assim sendo, resta a pergunta: A poligamia é constitucionalmente permitida ou moralmente proibida?


Notas

  1. Casal entre aspas pois me refiro coloquialmente, mas não com exatidão jurídica.
  2. Igreja Luterana, Calvinista, Protestante, etc.
  3. Timóteo 3:2 e 12 – 3 – Os servos ministeriais sejam maridos de uma só esposa, presidindo de maneira excelente aos filhos e às suas próprias famílias. 13. Pois os homens que ministram de maneira excelente estão adquirindo para si uma posição excelente e muita franqueza no falar na fé, em conexão com Cristo Jesus. – Mateus 19:4 – 6 – Em resposta, ele disse: "Não lestes que aquele que os criou desde [o] princípio os fez macho e fêmea, 5 e disse: ´Por esta razão deixará o homem seu pai e sua mãe, e se apegará à sua esposa, e os dois serão uma só carne´"? (PASSOS, Fernanda. Relações Jurídicas na Bíblia. 2ª Ed. Cultura Jurídica Editora. 2006, p. 134)

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JÚDICE, Lucas Pimenta. Poligamia e o laicismo estatal. Permissão constitucional ou proibição moral?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1884, 28 ago. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11655. Acesso em: 28 mar. 2024.