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Os fatores reais do poder e força normativa da Constituição.

Articulações entre Konrad Hesse, Ferdinand Lassalle e Gramsci

Os fatores reais do poder e força normativa da Constituição. Articulações entre Konrad Hesse, Ferdinand Lassalle e Gramsci

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Utilizaremos os conceitos de sociedade civil e hegemonia em Gramsci, para, valendo-se da História, tentar encontrar um elo entre os dois fundadores do constitucionalismo moderno.

RESUMO:

O texto situa historicamente os momentos em que foram proferidas as palestras de Ferdinand Lassalle e Konrad Hesse, resultando nas obras: Que é uma Constituição e A força normativa da Constituição, buscando compreender, através dessa análise histórica, os conceitos de Constituição para os referidos autores e a possibilidade de complemento entre as duas obras, utilizando-se, ainda, dos conceitos de sociedade civil e hegemonia no pensamento de Antonio Gramsci.

Palavras Chaves: Constituição. Lassalle e Hesse. Sociedade Civil. Hegemonia.


INTRODUÇÃO

Este trabalho é fruto de nossas reflexões sobre a constitucionalismo moderno e tem como objetivo discutir, historicamente, as obras de Konrad Hesse e Ferdinand Lassalle sobre a constituição, apontando divergências e possibilidades de complemento entre os dois pensamentos. Para tanto, utilizaremos conceitos da teoria política, especificamente os conceitos de sociedade civil e hegemonia em Gramsci, para, mais uma vez valendo-se da História, tentar encontrar um elo entre os dois fundadores do constitucionalismo moderno.


1. OS AUTORES E A CONJUNTURA DE CADA ÉPOCA

Para melhor compreensão, entendo, devemos situar historicamente o momento em que cada um de nossos pensadores em estudo proferiu sua palestra. Só assim, acredito, teremos condições de entender com clareza o conteúdo e as referências históricas de Lassalle e de Hesse. A exemplo disso, Lassalle faz referência à monarquia, aristocracia, a legislação eleitoral da Prússia de 1849, bem como utiliza como referência histórica a constituição feudal e dos regimes absolutistas. De outro lado, Hesse, em 1959, já pode ter como referência histórica, no caso específico da Alemanha, a Constitução de Weimar e a Lei Fundamental (Grundgesetz). Além disso, já podia se embasar nas experiências constitucionais do pós-guerra e, principalmente, na experiência sedimentada do constitucionalismo norte-americano.

Pois bem, Lassalle nasceu em 1825, foi contemporâneo de Marx, com quem esteve junto em vários momentos da história da esquerda na Europa e episódios da unificação Alemã. Lassalle era advogado, militante socialista, teve uma relação não muito amigável com Marx e morreu em um duelo, baleado pelo noivo de uma moça que andara cortejando.

Segundo Leandro Konder, (1999, p. 137), assim Marx via Lassalle:

Marx nunca vira com bons olhos o advogado Ferdinand Lassalle, sete anos mais moço do que ele, intelectual socialista de formação hegeliana, que chegou a exercer poderosa influência sobre o movimento operário alemão. No trato com Marx, Lassalle era cordial e prestativo. Marx, porém não confiava nele.

Deixando de lado as querelas entre Marx e Lassalle, o que se passava na Europa em 1862 e a quem se dirigia Lassalle?

Um pouco antes, em fevereiro de 1848, na França, manifestações populares resultaram na insurreição que pôs fim ao governo de Luis Filipe, então apoiado por banqueiros e grandes proprietários, resultando na proclamação da efêmera república golpeada por Luis Bonaparte em 1851, fazendo-se imperador. Tais acontecimentos resultaram em revoltas e insurreições contra o absolutismo em toda a Europa. Era a "primavera dos povos." Levantes ocorreram na Prússia, em Berlim, Viena, Boêmia e na Itália, mas foram todos derrotados e sufocados.

Em 1850, a então Prússia já era uma grande potência econômica e a ascensão de Guilherme I, em 1862 (mesmo ano da palestra de Lassalle), solidificou a liderança do império em toda a região. De 1864 (ano da desastrosa morte de Lassalle) até 1871, Bismarck venceu as guerras contra a Dinamarca, Áustria e França, unificando definitivamente os estados germânicos na poderosa Alemanha. Finalmente, em janeiro de 1871, Guilherme I foi coroado "Kaiser", estava selada a fundação do Segundo Reich na Alemanha.

Não foram em vão, portanto, as revoltas de 1850. Não veio a revolução proletária que tanto queriam Lassalle quanto Marx, mas os tempos eram outros, o absolutismo estava no fim, a burguesia, enquanto classe, tomava também o poder político em toda a Europa e necessitava de segurança jurídica para seus contratos.

A quem se dirigia Lassalle, portanto, em plena Berlim de 1862? Ora, Berlim era a capital e importante centro cultural e industrial da Prússia, poderoso estado germânico da época. Tinha população de 300 mil habitantes em 1850 e, sucessivamente, foi também a capital do Segundo Reich, da República de Weimar e do Terceiro Reich. Em 1848, época das grandes insurreições em toda a Europa, Berlim já contava com grandes indústrias, fábrica de locomotivas, serviços diversos e grande massa de operários.

Ora, sendo Lassalle um ativista da revolução socialista, embora entendesse que a revolução do operariado alemão passasse pela unificação através de Bismarck e Guilherme I, da Prússia, evidente que não se dirigia, quando proferiu sua palestra, a autoridades do governo monárquico ou a banqueiros, grandes proprietários e industriais da Prússia. É de se observar, que o próprio Lassalle (1980, p. 9), como se preocupado com sua platéia, ainda no segundo parágrafo do texto, destacou:

Antes de entrar na matéria, porém, desejo esclarecer que a minha palestra terá caráter estritamente científico; mas, mesmo assim, ou melhor, justamente por isso, não haverá entre vós uma única pessoa que possa deixar de acompanhar e compreender do começo até o fim o que vou expor.

Não bastasse isso, o próprio formato e didatismo do texto demonstram claramente que Lassalle estava se dirigindo a um público não muito familiarizado com a terminologia jurídica. É um diálogo ilustrativo e acessível ao mais rude dos operários da Berlim prussiana de 1862.

Agora, vamos a Konrad Hesse.

Hesse nasceu em 1919, na mesma cidade em que nasceu Kant, Königsberg, na Prússia Oriental, atual Kaliningrado, na Rússia. Concluiu o curso de Direito na Universidade de Göttingen, também na Alemanha, em 1950. Foi professor de Direito Público e Eclesiástico da Universidade de Freiburg, Alemanha, e presidente da Corte Constitucional Alemã.

Sua obra – A força normativa da Constituição – é resultado de palestra proferida em aula inaugural da Universidade de Freiburg, em 1959. A tradução é do Ministro Gilmar Mendes, atual presidente do Supremo Tribunal Federal, em comemoração ao centenário da Faculdade de Direito da Bahia, em 1991.

O que se passava na Alemanha e no mundo em 1959?

Ao fim da segunda guerra, a Europa estava destruída: além dos estragos causados pelos bombardeios, a fome, o desemprego, falta de alojamento para os refugiados, agitação social e o endividamento dos países ameaçavam a estabilidade do sistema capitalista. Nas conferências de Yalta e de Postdam, em 1945, os aliados dividiram a derrotada Alemanha do Terceiro Reich em quatro partes (Americanos, Britânicos, Franceses e Soviéticos). O medo do "fantasma do comunismo" impulsionou a formação da República Federal da Alemanha, na parte que coube aos aliados ocidentais, e sua reconstrução em bases capitalistas, enquanto a então União Soviética proclamava, em 1949, na área de sua ocupação, a República Democrática Alemã, sendo mais tarde a mesma Berlim de Marx e Lassalle dividida por um muro. Deu-se início à "guerra fria" e a formação da OTAN e do Pacto de Varsóvia. De um lado, Estados Unidos e aliados da Europa; de outro, a União Soviética e seus países satélites.

Tem-se, portanto, na década de 50, de um lado, um novo império intervencionista, conservador e reacionário – Os Estados Unidos; de outro, a União Soviética estatizada e governada punhos de ferro por Stálin; no meio, uma Europa destruída pela guerra e em reconstrução física e cultural, mas sob a hegemonia americana.

Voltando à aula inaugural do professor e presidente do Tribunal Constitucional Alemão, perguntamos: qual era a conjuntura política da Alemanha e da Europa em 1959 e a quem se dirigia Konrad Hesse?

Segundo Luís Roberto Barroso,

Antes de 1945, vigorava na maior parte da Europa um modelo de supremacia do Poder Legislativo, na linha da doutrina inglesa de soberania do Parlamento e da concepção francesa da lei como expressão da vontade geral. A partir do final da década de 40, todavia, a onda constitucional trouxe não apenas novas constituições, mas também um novo modelo, inspirado pela experiência americana: o da supremacia da constituição. [01]

Ora, ainda nos escombros da guerra e com a Alemanha dividida, pela guerra-fria, a grande novidade legislativa, na parte ocidental, em 1949, é a Lei Fundamental de Bonn, a nova Constituição Alemã, seguida da criação do Tribunal Constitucional, em 1951. Nessa onda, irá surgir a Constituição Italiana em 1947 e também sua Corte Constitucional, em 1956.

Nessa conjuntura, evidentemente, a Constituição a que se refere Konrad Hesse, em 1959, não é exatamente a mesma Constituição a que se refere Ferdinand Lassalle, em 1862.

Por fim, a aula inaugural proferida por Hesse, na Universidade de Freiburg, [02] em 1959, certamente não foi prestigiada por operários rudes ou militantes revolucionários. Certamente, sua platéia era composta por estudantes de Direito, advogados, promotores e juízes recém saídos de uma guerra e que agora necessitavam de um Estado Democrático de Direito que garantisse os direitos fundamentais de todos os cidadãos da Alemanha e, sobretudo, que protegesse o Estado de novas aventuras.

1.1. LASSALLE: QUE É UMA CONSTITUIÇÃO?

Lassalle inicia sua exposição com uma insistente indagação: "Que é uma constituição? Onde encontrar a verdadeira essência, o verdadeiro conceito de uma constituição?"

Para responder a indagação, nosso autor propõe um método comparativo entre Lei e Constituição. Assim, para Lassalle, a Constituição, considerada como a Lei Fundamental, deverá apresentar as seguintes características: (i) que seja uma lei básica, mais do que as outras comuns, que seja "fundamental"; (ii) que constitua o verdadeiro fundamento das outras leis, devendo informar e engendrar as outras leis comuns originárias da mesma, atuando e irradiando através da lei comum; (iii) que exista porque necessariamente deva existir, que tenha força de eficácia para que seu conteúdo seja assim e não de outro modo.

Superada a indagação inicial, Lassalle (1980, p. 18) nos apresenta o conceito que vai nortear, definitivamente, o seu conceito de Constituição: "os fatores reais do poder."

Os fatores reais do poder que regulam no seio de cada sociedade são essa força ativa e eficaz que informa todas as leis e instituições jurídicas da sociedade em apreço, determinando que não possam ser, em substância, a não ser tal como elas são.

De forma extremamente didática e ilustrativa, Lassalle convida seus ouvintes para o exercício constituinte após um hipotético incêndio nos arquivos, depósitos e bibliotecas públicas da Prússia. Merece ser lembrado que a Prússia de Lassalle vivia a transição das insurreições de 1848-49 para as guerras de unificação do território germânico e Berlim, local de sua palestra, conta com grande massa de operários influenciados por seu próprio pensamento socialista e das idéias revolucionárias de Karl Marx.

Pois bem, seguindo sue exercício com a platéia, Lassalle inclui como "partes da Constituição" as classes e grupos sociais então em conflito na Prússia de 1862: a monarquia, a aristocracia, a grande burguesia, os banqueiros, a pequena burguesia e a classe operária e, por fim, de forma limitada, a cultura geral da nação e a consciência coletiva.

Logo, o rei iria advertir aos hipotéticos constituintes que o exército lhe obedece ordens e que é esta "a realidade" a ser considerada; a aristocracia, entendida por Lassalle como grandes proprietários de terras, também não permitirá a proposta de uma Câmara dos Deputados eleita pelos votos de todos os cidadãos, visto sua grande influência na corte; a grande burguesia, de sua vez, jamais permitirá o retorno ao sistema feudal, pois assim não poderia se desenvolver e expandir com a liberdade que necessita; o governo não suportaria uma mudança radical no sistema bancário, visto que necessita de seus empréstimos e não iria se indispor com os banqueiros; da mesma forma, o governo, mesmo querendo, não poderia privar a pequena burguesia de sua liberdade pessoal, visto que o povo poderia até admitir a privação temporária de liberdades políticas, mas jamais aceitaria o retorno à escravidão. Por fim, conclui Lassalle, que a essência de uma Constituição "é a soma dos fatores reais do poder que regem um país." O que vai ser escrito – os fatores reais do poder – será, portanto, a Constituição jurídica.

Lassalle disserta em seguida sobre a incipiente história constitucionalista, concluindo que "todos os países possuem ou possuíram sempre uma Constituição real e verdadeira," embora como resultado dos fatores reais do poder que regiam em cada país. A diferença, nos Estados Modernos, será a necessidade de uma Constituição escrita em folha de papel como resultado das transformações que afetam os fatores reais do poder de uma determinada sociedade. Assim, por exemplo, um regime feudal demanda uma Constituição feudal ao passo que um regime absolutista, resultado das transformações dos fatores reais do poder, também demandará uma Constituição que lhe garanta o poder.

É fácil concluir, como o fez Lassalle, que uma Constituição escrita será boa e duradoura quando corresponder à Constituição real e tiver seus fundamentos nos fatores reais do poder que regem um país. Portanto, de nada servirá, na compreensão de Lassalle, o que se escrever em uma folha de papel, se não se justifica pelos fatos reais e efetivos do poder. Caso contrário, a Constituição estará liquidada e não existe força que poderá salvá-la.

Por fim, conclui Lassalle (1980, p. 72) que o problema constitucional é de poder:

Os problemas constitucionais não são problemas de direito, mas do poder; a verdadeira Constituição de um país somente tem por base os fatores reais e efetivos do poder que naquele país regem, e as Constituições escritas não têm valor nem são duráveis a não ser que exprimam fielmente os fatores do poder que imperam na realidade social: eis os critérios fundamentais que devemos sempre lembrar.

Quais seriam, de outro lado, os fatores reais do poder que regiam um país ainda em reconstrução – física, cultural, jurídica e política - após ser derrotado em uma guerra, ocupado e dividido por outros países, ou seja, da Alemanha de Konrad Hesse em 1959?

Ou, mais que isso, ou diferente disso, a Constituição tem, de fato, força normativa? É a discussão que faremos adiante.

1.2. HESSE: A FORÇA NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO

Hesse (1991, p.11) não deixa dúvidas de que pretende, em sua aula inaugural, ter o pensamento de Lassalle como referencial, visto que inicial sua palestra exatamente fazendo referência à conferência de Lassalle, de 1862, e questionando-o:

Afigura-se justificada a negação do Direito Constitucional, e a conseqüente negação do próprio valor da Teoria Geral do Estado enquanto ciência, se a constituição jurídica expressa, efetivamente, uma momentânea constelação de poder. Ao contrário, essa doutrina afigura-se desprovida de fundamento se se puder admitir que a Constituição contém, ainda que de forma limitada, uma força própria, motivadora e ordenadora da vida do Estado. A questão que se apresenta diz respeito à força normativa da Constituição.

Assim, para Hesse, o pensamento de Lassalle é limitado e nega o Direito Constitucional enquanto ciência ao restringir a Constituição a circunstâncias momentâneas de poder. Onde estaria, portanto, indaga Hesse, a força determinante do Direito Constitucional?

A resposta oferecida por Hesse, (1991, p. 13), que vai ser a idéia central de seu pensamento, está relacionada com o "condicionamento recíproco existente entre a Constituição jurídica e a realidade político-social." A compreensão isolada desses fenômenos – Constituição e realidade – segundo Hesse, não oferece resposta adequada, pois, de um lado, corre-se o risco de limitar a resposta em torno da vigência ou não da norma e, de outro lado, arrisca-se a desprezar o significado da ordenação jurídica. Dessa forma, sem isolamentos, a pretensão de eficácia da norma jurídica somente será realizada se levar em conta as condições históricas de sua realização, bem como as condições naturais, técnicas, econômicas e sociais, numa relação de interdependência e que também contemple, por fim, "o substrato espiritual que se consubstancia num determinado povo."

Entendendo assim, a Constituição não poderá se limitar a expressão do "ser", mas também do "dever ser." Divergindo frontalmente de Lassalle, esta compreensão de Hesse importa que a Constituição deverá imprimir ordem e conformação à realidade política e social, determinando e ao mesmo tempo sendo determinada, condicionadas mas independentes. De outro lado, não muito diferente de Lassalle, Hesse (1991, p. 18) também reconhece que "a força vital e a eficácia da Constituição assentam-se na sua vinculação às forças espontâneas e às tendências dominantes do seu tempo." Idéia essa – forças e tendências -, assim quer nos parecer, grosso modo, bem próxima dos "fatores reais do poder" de Lassalle.

Superada essa questão, Hesse avança seu discurso com relação à força normativa da Constituição e a vontade da Constituição. Reconhece o autor que a Constituição, por si só, não pode realizar nada, mas pode impor tarefas, sua vontade, que se baseia em três vertentes: (i) a compreensão da necessidade e do valor de uma ordem normativa inquebrantável, que proteja o Estado contra o arbítrio; (ii) a compreensão de que esta ordem constituída é mais do que uma ordem legitimada pelos fatos e, por fim, (iii) na consciência de que essa ordem não será eficaz sem a presença da vontade humana.

Mas ainda não é o bastante. O modelo constitucional de Hesse necessitaria, para ter eficácia e força ativa, em pressupostos relacionados ao conteúdo e práxis constitucional. Quanto ao conteúdo, segundo Hesse, além dos aspectos sociais e políticos já mencionados, a Constituição deverá incorporar o "estado espiritual" do seu tempo, bem como procurar se limitar a poucos princípios fundamentais, sob pena de constantes revisões e desvalorização de sua força. Por fim, a Constituição, ainda com relação ao seu conteúdo, não deve assentar-se em uma estrutura "unilateral", mas ponderar direitos e deveres e parte da estrutura contrária, sob pena de distanciamento da realizada e perda de sua força normativa.

Com relação à sua práxis, defende Hesse o sobrestamento do interesse momentâneo em face do respeito à constituição; a estabilidade e rigidez da Constituição como condicionantes fundamentais de sua eficácia e, por fim, que seja a Constituição interpretada com submissão ao princípio da "ótima concretização da norma."

Como vimos, Hesse não dissocia a Constituição da realidade político-social e, da mesma forma, diferente de Lassalle, não limita sua realização aos "fatores reais do poder", defendendo uma relação de interdependência entre realidade e Constituição, possibilitando a concretização de tarefas por ela mesma impostas, o "dever ser."

Conclui Hesse, (1991, p. 24), finalmente, que:

Nenhum poder do mundo, nem mesmo a Constituição, pode alterar as condicionantes naturais. Tudo depende, portanto, e que se conforme a Constituição a esses limites. Se os pressupostos da força normativa encontrarem correspondência na Constituição, se as forças em condições de violá-la ou de alterá-la mostrarem-se dispostas a render-lhe homenagem, se, também em tempos difíceis, a Constituição lograr preservar a sua força normativa, então ela configura verdadeira força viva capaz de proteger a vida do Estado contra as desmedidas investidas do arbítrio. Não é, portanto, em tempos tranqüilos e felizes que a Constituição normativa vê-se submetida à sua prova de força. Em verdade, esta prova dá-se nas situações de emergência, nos tempos de necessidade.

Em tal momento histórico, superado o trauma alemão com o Terceiro Reich, absolutamente justificável a preocupação de Hesse com a força normativa da Constituição em relação à proteção do Estado contra o arbítrio.


2. OS CONCEITOS DE SOCIEDADE CIVIL E HEGEMONIA EM GRAMSCI

Gramsci nasceu em 1891, na Sardenha, uma das regiões mais pobres da Itália. Desde cedo militou em partidos de esquerda e foi eleito deputado pelo PCI em 1924. Foi preso em 1926 e libertado em 1937, poucos dias antes de sua morte. É vastíssima sua contribuição intelectual para a ciência política e, especificamente, na evolução do Marxismo.

Neste trabalho, interessa-nos em Gramsci apenas uma breve introdução aos seus conceitos de sociedade civil e hegemonia, relacionando-os aos conceitos de "fatores reais do poder" de Lassalle e a realidade social-histórica-constitucional de Hesse.

Inicialmente, releva salientar a importância do pensamento de Gramsci para os conceitos de Estado e Sociedade Civil para além do marxismo dogmatizado. Por exemplo, estudando o pensamento político de Gramsci, Carlos Nelson Coutinho (1999, p. 125) observou, com muita propriedade, que Marx não teve a oportunidade de vivenciar uma sociedade mais complexa como aquela vivida por Gramsci e não pôde, por conseguinte, captar plenamente as relações de poder em uma sociedade capitalista desenvolvida, principalmente aquilo que Gramsci chamaria de "sociedade civil" e "aparelhos privados de hegemonia."

Sobre o conceito de Estado, em carta transcrita por Carlos Nelson Coutinho na obra citada, Gramsci observa que o Estado, habitualmente, é entendido como o aparelho coercitivo para adequar a massa popular a um tipo de produção, e não como equilíbrio entre sociedade política e sociedade civil, porém, mais que isso, o conceito de Estado tem sentido mais amplo e comporta duas esferas principais: a sociedade política e a sociedade civil. A primeira acepção, que Gramsci também chama de Estado em "sentido estrito" é formada pelo conjunto dos mecanismos através dos quais a classe dominante detém o monopólio legal da repressão e da violência. A segunda acepção, que nos interessa nesse estudo, inicialmente, a sociedade civil, na interpretação de Carlos Nelson Coutinho, (1999, p. 127) seria formada precisamente pelo conjunto das organizações responsáveis pela elaboração e/ou difusão das ideologias, compreendendo o sistema escolar, as Igrejas, os partidos políticos, os sindicatos, as organizações profissionais, a organização material da cultura (revistas, jornais, editoras, meios de comunicação de massa) etc.

É no espaço da sociedade civil, portanto, segundo Gramsci, que as classes buscam exercer sua hegemonia, ou seja, buscam ganhar aliados para suas posições mediante a direção política e o consenso por via dos "aparelhos privados de hegemonia."

Nas palavras do próprio Gramsci:

Podemos fixar dois grandes planos superestruturais: o que podemos chamar sociedade civil, isto é, o conjunto dos organismos vulgarmente chamados privados, e o da sociedade política do Estado, que correspondem, respectivamente, à função de hegemonia que o grupo dominante exerce sobre toda a sociedade e à de domínio direto ou de comando que se exprime no Estado e no governo jurídico. (Q. III, 1518-1519) (apud STACONNE, 1991, p. 77)

Temos até aqui, portanto, um conceito de estado que envolve duas esferas: sociedade política e sociedade civil, sendo esta última o lugar de realização da hegemonia, através dos aparelhos privados de hegemonia. Nesta compreensão, é no âmbito da sociedade civil que as classes buscam exercer sua hegemonia e ganhar aliados para suas posições mediante a direção política e o consenso. De outro lado, é no âmbito da sociedade política que as classes exercem sua dominação através da força jurídica e da coerção.

Nesta compreensão Gramsciana, por fim, onde colocar os "fatores reais de poder", enquanto partes de uma constituição? Estariam presentes no Estado em sentido estrito, definido por Gramsci como a sociedade política, ou no espaço da sociedade civil, onde as classes buscam a hegemonia? Certo, de logo, que a forma de governo (monarquia) e o poder repressivo (exército), sem dúvidas, seriam componentes do Estado em sentido estrito, ou seja, da sociedade política. De outro lado, onde se poderiam localizar as relações e organizações de banqueiros, grandes proprietários e operários, senão no espaço da sociedade civil? Por fim, naquela sociedade prussiana de Lassalle, no âmbito da sociedade civil, quem exercia a hegemonia dos aparelhos privados? Certo que não eram os operários, conforme observado por Lassalle nas entrelinhas de sua obra.

Nesta lógica, portanto, será que podemos admitir que a Constituição de um país será o reflexo da hegemonia exercida por determinada classe na sociedade civil, ou mesmo o resultado da luta pela hegemonia, ou seja, as conquistas de cada grupo social seriam exatamente os limites de sua hegemonia, como se fora um consenso inevitável?

Poderia, então, Lassalle nos dizer, agora sob a ótica Gramsciana, que uma Constituição de fato será a Constituição real quando corresponder ao conflito e ao consenso presentes em sua sociedade civil, dialeticamente, em dinamismo constante. Foram disso, conforme escreveu Lassalle, a Constituição não passará de um "pedaço de papel".

Dessa forma entendendo, podemos então afirmar, como Hesse (1991, p. 24), que "a Constituição jurídica está condicionada pela realidade histórica. Ela não pode ser separada da realidade concreta do seu tempo."

O que seria, por conseguinte, "a realidade histórica" senão as relações econômicas, sociais, políticas e culturais, presentes das esferas política e civil de uma sociedade, senão o conflito e o consenso estabelecido pela hegemonia de uma classe?

No caso brasileiro, por exemplo, diante dessa compreensão, a Constituição Federal de 1988 seria o reflexo exatamente do conflito e do consenso de uma determinada época: final de um regime militar, reaparecimento do movimento popular e sindical, pluripartidarismo, novos meios de comunicação de massa sem censura, ou seja, sociedade civil atuante e em conflito pela hegemonia.


3. CONCLUSÃO

Vimos, resumidamente, que Lassalle, palestrando a operários da Berlim prussiana de 1862, entende a Constituição real de um país como sendo aquela resultante dos fatores reais do poder que regem aquele país. Esses seus fatores reais do poder, como vimos, podem ser vistos alguns, na compreensão de Gramsci, como componentes da sociedade política e outros como componentes da sociedade civil, local de luta pela hegemonia. Sendo assim, a Constituição real de um país não poderia ser limitada e instrumentalizada por fatores independentes do conflito e do consenso alcançado na sociedade civil.

Para Hesse, de outro lado, bem mais perto de Gramsci, a Constituição é condicionada pela realidade histórica e terá pretensão de eficácia somente se levar em conta essa realidade. Sua possibilidade e limites normativos, por fim, resultam da correlação entre "ser" e "dever-ser."

A Constituição, portanto, é mais do que simplesmente os fatores reais do poder de Lassalle e pode sim, sem dúvidas, dependendo da força política dos grupos sociais menos favorecidos – mesmo que ainda não hegemônicos, planejar o "dever-ser" programaticamente e, como defende Hesse, ter vontade e caráter normativo.

Não encerramos esta discussão, mas podemos de já concluir que Lassalle, Hesse e Gramsci não são incomunicáveis.


REFERÊNCIAS:

BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 851, 1 nov. 2005. Disponível em http://jus.com.br/artigos/7547. Acesso em 16.06.2008.

BOBBIO, Norberto. Ensaios sobre Gramsci e o conceito de sociedade civil. 2 ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci. Um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

GIROUD, Françoise. Jenny Marx. Rio de Janeiro: Record, 1996.

GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história. 3 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 1991.

KONDER, Leandro. Marx vida e obra. 7 ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

LASSALLE, Ferdinand. Que é uma Constituição? Porto Alegre: Editorial Villa Martha, 1980.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Obras Escolhidas. Vol. 2. São Paulo: Alfa-Omega, s/d.

STACCONE, Giuseppe. Gramsci, 100 anos revolução e política. Petrópolis: Vozes, 1991.


Notas

  1. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 851, 1 nov. 2005. Disponível em http://jus.com.br/artigos/7547. Acesso em 16.06.2008.
  2. A Universidade de Freiburg foi fundada em 1457 pelos Habsburgos. Dentre outros, estudaram ou lecionaram em Freiburg: Hannah Arendt, Walter Benjamin, Edmund Husserl, Martin Heidegger, Karl Jaspers, Niklas Luhmann, Karl Mannheim, Herbert Marcuse e Max Weber.

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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NEIVA, Gerivaldo Alves. Os fatores reais do poder e força normativa da Constituição. Articulações entre Konrad Hesse, Ferdinand Lassalle e Gramsci. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1889, 2 set. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11664. Acesso em: 29 mar. 2024.