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Reflexões sobre o dano moral "em ricochete" decorrente de acidente de trabalho

Reflexões sobre o dano moral "em ricochete" decorrente de acidente de trabalho

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Sumário: 1 – Dano moral reflexo e acidente de trabalho; 2 - Competência; 3 - Legitimidade; 4 – Aspectos sobre a indenização. 5 - Conclusões; 6 - Referências bibliográficas.

Resumo: O presente artigo tece breves considerações sobre alguns dos principais aspectos atinentes ao dano moral reflexo decorrente do acidente de trabalho, englobando a conceituação básica do instituto, bem assim a análise sobre a Justiça competente para o deslinde das ações reparatórias, os titulares legitimados a buscar tal reparação em Juízo, bem assim algumas considerações sobre a forma de indenizar tais danos, notadamente se de forma individualizada ou em sistema de rateio com os demais atingidos pelo acidente de trabalho.

Palavras-Chave: Acidente de Trabalho; dano moral reflexo; ricochete; competência; legitimidade; indenização, rateio, solidariedade.


1. Dano moral reflexo e acidente de trabalho:

É cediço que um ato danoso repercute de várias maneiras na vida das pessoas, gerando uma multiplicidade de conseqüências que se irradiam, muitas vezes, para além do âmbito do indivíduo diretamente atingido, violando o patrimônio moral de terceiros, notadamente daqueles que compõem o círculo familiar mais íntimo da vítima direta.

Essa categoria de dano moral, gerada a partir de acontecimento envolvendo determinada pessoa, mas com o condão de causar sofrimento a diversas outras que não foram diretamente atingidas, é denominada de dano moral reflexo ou de dano moral em ricochete.

Com o acidente de trabalho, notadamente com o que ceifa a vida do empregado, não é diferente. Não há dúvida de que sua morte desestrutura o núcleo familiar, não somente com o desaparecimento da renda auferida com o seu trabalho, por si só motivo de angústia para os familiares, mas pelo sofrimento que o próprio óbito provoca aos entes afetivamente mais ligados, que não mais gozarão da convivência, do apoio de quem era pai, irmão, noivo, um amigo querido, enfim, de alguém cuja existência conectava-se mais estreitamente com a rotina e a vida de outras pessoas.

O objetivo desse trabalho, pois, é examinar alguns dos principais aspectos atinentes ao dano moral reflexo decorrente do acidente de trabalho, com o intuito de fornecer elementos para a discussão e a maturação desse tema na seara trabalhista.


2. Competência:

Não há mais dúvida de que pertence à Justiça do Trabalho a competência para julgar as ações indenizatórias de danos morais e materiais decorrentes de acidente de trabalho, notadamente após a paradigmática decisão em que o Supremo Tribunal Federal, revendo sua jurisprudência, declarou que tais lides pertenciam, com efeito, à esfera competencial justrabalhista, definindo como marco inicial o advento da Emenda Constitucional nº 45/2004. [01]

Em nada altera a competência o fato de o objeto da lide ser a reparação de danos morais sofridos, indiretamente, por terceiros, haja vista que a origem de tais danos reside no mesmo fato delituoso, qual seja, acidente ocorrido no bojo de relação trabalhista.

A competência para tais ações se justifica no inciso VI, do art. 114 da Carta Política, que põe no rol competencial da Justiça do Trabalho "as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho", não pondo, o legislador constituinte derivado, restrições a serem tais danos diretos ou indiretos, sendo bastante que decorram da relação trabalhista.

Vale ressaltar que controvérsias decorrentes, como bem explica Gérson Marques, são justamente aquelas que "surgiram da labuta, mas apenas indiretamente ou reflexamente, por via oblíqua, podendo se referir a terceiros que se viram atingidos, de alguma forma, pela prestação dos serviços, ou cujas obrigações não sejam especificamente laborais[...]" [02], o que calha, à perfeição, à reparação de danos morais sofridos por terceiros em conseqüência do acidente de trabalho.

O próprio Supremo Tribunal Federal já decidiu ser da Justiça do Trabalho a competência para ações propostas diretamente por dependentes do trabalhador falecido. Confira:

"AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E PATRIMONIAIS, DECORRENTES DE ACIDENTE DE TRABALHO. AÇÃO AJUIZADA OU ASSUMIDA PELOS DEPENDENTES DO TRABALHADOR FALECIDO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESPECIAL.

Compete à Justiça do Trabalho apreciar e julgar pedido de indenização por danos morais e patrimoniais, decorrentes de acidente do trabalho, nos termos da redação originária do artigo 114 c/c inciso I do artigo 109 da Lei Maior. Precedente: CC 7.204. Competência que remanesce ainda quando a ação é ajuizada ou assumida pelos dependentes do trabalhador falecido, pois a causa do pedido de indenização continua sendo o acidente sofrido pelo trabalhador." (STF/1ªT., AGRE 503.043-1, Relator Ministro Carlos Ayres Brito, DJ 01.06.2007).


3. Legitimidade:

Todo aquele que sofre dano por ato ilícito tem direito à reparação. Esse é o cerne da legitimidade na responsabilidade civil. Bem por isso, conforme lição de Carlos Alberto Bittar, "Titulares do direito à reparação – lesados ou vítimas – são as pessoas que suportam os reflexos negativos de fatos danosos; vale dizer, são aqueles em cuja esfera de ação repercutem os eventos lesivos." [03]

Assim, no caso de acidente de trabalho com óbito do trabalhador, os legitimados, para a reparação de dano moral reflexo, são todos aqueles que experimentaram gravame em sua esfera patrimonial, independente de vínculo familiar ou de dependência econômica para com a vítima direta. O que importa, no caso, é que a situação fática posta como causa de pedir seja verossímil e bastante para caracterizar o sofrimento de cunho moral alegado pelo autor.

O que se te entendido, no caso do círculo familiar mais próximo, é que tal dano é presumido, dispensando efetiva comprovação [04]. No caso de parentes outros, concubinato, amigos e demais terceiros, que não gozam de tal presunção, se faz necessária também a comprovação do próprio abalo moral, ainda que indiretamente, visto que o sofrimento em si não é aferível, mas as manifestações, sintomas e eventos dele resultantes o são.

Nesse diapasão, Sebastião Geraldo de Oliveira leciona que "há uma presunção de danos morais para os componentes do núcleo familiar mais íntimo da vítima. No entanto, adverte Cavalieri Filho, que ‘só em favor do cônjuge, filhos e pais há uma presunção juris tantum de dano moral por lesões sofridas pela vítima ou em razão de sua morte. Além dessas pessoas, todas as outras, parentes ou não, terão de provar o dano moral sofrido em virtude de fatos ocorridos com terceiros’." [05]

Em igual linha, DALLEGRAVE leciona que "no caso do acidentado falecer por decorrência de acidente ou doença ocupacional, poderão ingressar com ação de dano moral todos aqueles que mantinham laço afetivo com o de cujus [...]. A dor e a angústia que originam o dano moral, neste caso, não é pela incapacidade laborativa do acidentado, mas pela perda de um ente querido. São legítimos para pleitearem esta espécie de dano moral não aqueles ''a quem o morto devia alimentos'' (art. 948, II, CC), mas todos aqueles que conviviam com o falecido e com ele mantinham intensa afeição." E continua, o autor, assentando que "nenhuma dificuldade ocorre quanto aos parentes próximos da vítima; as dúvidas se dão em relação àqueles que saem do círculo limitado que se considera a família propriamente dita. Em relação a ela, o prejuízo se presume, de modo que o dano, tanto material como moral, dispensa qualquer demonstração; fora daí, é preciso provar que o dano realmente se verificou." [06]

Não é de se confundir, contudo, a questão da legitimidade com a existência do direito de fundo. A primeira se verifica in abstracto, sendo bastante que o terceiro se identifique como detentor de direito à reparação de dano moral, em face da morte do trabalhador, para que se afira a sua legitimidade ativa ad causam. Partindo dessa premissa, pois, é que se examinará, a partir do conjunto probatório dos autos, a relação do terceiro com a vítima do acidente, com vistas à caracterização, ou não, de dano moral a ser reparado. Entendimento contrário violaria a garantia de pleno acesso ao Poder Judiciário.

Nessa linha, sobre legitimidade para reparação de danos morais em ricochete, vale trazer a lume os arestos seguintes:

"AGRAVO – INDENIZAÇÃO DE DANO MORAL E MATERIAL – ILEGITIMIDADE ATIVA DO CÔNJUGE – MATÉRIA DE PROVA – É matéria de prova os possíveis reflexos que os supostos danos suportados pelo marido da autora possam ter gerado na órbita de seus direitos patrimoniais ou extrapatrimoniais, o que impede o reconhecimento de ilegitimidade ativa em despacho saneador." (TJRO – AI 01.003015-8 – C.Esp. - Rel. Des. Roosevelt Queiroz Costa – J. 05.12.2001).

"[...]Os irmãos têm direito à reparação do dano moral sofrido com a morte de outro irmão, haja vista que o falecimento da vítima provoca dores, sofrimentos e traumas aos familiares próximos, sendo irrelevante qualquer relação de dependência econômica entre eles.[...]". (STJ/4ªT., AgRgEdAI 678.435, Relator Ministro Jorge Scartezzini, DJ 11.9.2006.

"PROCESSUAL CIVIL E RESPONSABILIDADE CIVIL. MORTE. DANO MORAL. LEGITIMIDADE E INTERESSE DE IRMÃOS E SOBRINHOS DA VÍTIMA. CIRCUNSTÂNCIAS DA CAUSA. CONVÍVIO FAMILIAR SOB O MESMO TETO. AUSÊNCIA DE DEPENDÊNCIA ECONÔMICA. IRRELEVÂNCIA. PRECEDENTE DA TURMA. DOUTRINA. RECURSO PROVIDO.

I – A indenização por dano moral tem natureza extrapatrimonial e origem, em caso de morte, no sofrimento e no trauma dos familiares próximos das vítimas. Irrelevante, assim, que os autores dos pedido não dependessem economicamente da vítima.

II – No caso, em face das peculiaridades da espécie, os irmãos e sobrinhos possuem legitimidade para postular a reparação pelo dano moral." (STJ;4ªT., Resp 239.009, Relator Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJ 04.09.2000, p. 161.)


4. Aspectos da Indenização:

Como todo dano de natureza extrapatrimonial, não há critérios que possam ser objetivamente utilizados para a fixação do valor indenizatório devido. É preciso se apegar, concretamente, à profundidade da relação afetiva que o autor possuía com a vítima do acidente, para que, caso a caso, se possa aferir um valor proporcional ao gravame sofrido.

Aspecto de somais importância, contudo, é o de que parte da doutrina pátria entende que o valor da indenização deve ser global e rateado entre todos os legitimados, a fim de se evitar o pagamento repetido sob o mesmo título de dano moral por morte de empregado acidentado, o que caracterizaria bis in idem. [07] Nesse passo, já tendo havido fixação do montante indenizatório em ação anterior, ao legitimado que dela não participou caberia, tão-somente, o ajuizamento de ação própria com o fito de participar do rateio daquele quantum.

Sebastião Geraldo de Oliveira, compartilhando de tal posicionamento, considera que: "A indenização única ou fixada em bloco evita que ocorra elastecimento excessivo da condenação, com o risco de desviar a reparação do dano moral de suas finalidades básicas." [08]

Embora seja compreensível a preocupação com a instalação de uma indústria da indenização, tem-se que a solução apontada pela corrente doutrinária mencionada apresenta problemas jurídicos e também de ordem prática.

Em primeiro lugar, tem-se que o dano moral é personalíssimo e gera um direito de ação autônomo a ser exercido ao exclusivo talante de seu detentor. Nesse passo, não há como justificar que o autor que um pouco mais tardiamente tenha ajuizado sua ação, submeta-se às amarras de um valor fixado em ação diversa, sendo-lhe vedada, na prática, a aferição de sua dor pessoal, em julgamento específico para as peculiaridades e concretude de seu caso.

Doutra forma, para se considerar justo e bastante, para todos os legitimados, o valor fixado em uma ação primeira, necessário seria que o magistrado fixasse a condenação levando em conta todos os eventuais titulares de possíveis danos morais, o que é virtualmente impossível.

Se assim não ocorre, a indenização fixada em primeiro lugar, rateada com os legitimados que somente em momento posterior ajuizaram suas ações, pode se tornar irrisória, não cumprindo a função reparatória a que se destina. O contrário também pode acontecer, pois se o juiz fixasse indenização com base em todos os possíveis atingidos, poderia causar gravame ao réu, fixando indenização vultosa sem ter como prever quantos dos legitimados teriam, efetivamente, a pretensão de ajuizar ações de reparação.

O Superior Tribunal de Justiça, consignando a autonomia entre ações de indenização propostas por diversos interessados, já pontuou, em determinado caso, que: "Não há solidariedade entre os parentes, de sorte que a transação feita pela esposa e mãe das vítimas com a ré não faz desaparecer o direito à indenização dos demais autores, filhos e irmãos dos extintos, em face da independência da relação de parentesco" [09].

Essa a interpretação mais razoável a prevalecer, pois não se pode dispensar Justiça por atacado, notadamente quando há particularidades que merecem atenção especial do Poder Judiciário e que devem ser sopesadas, caso a caso, para a fixação de um quantum indenizatório personalizado.


5. Conclusões:

Postas as considerações acima, podemos extrair, em síntese, desse pequeno estudo, as seguintes conclusões:

1. Dano moral em ricochete é aquele que, embora decorrente de um fato ocorrido com determinada pessoa, possui o condão de atingir o patrimônio moral de terceiros, notadamente daqueles que possuem vinculação afetiva mais estreita com a vítima direta.

2. O acidente de trabalho, com óbito, é um dos fatos, na seara trabalhista, que mais comumente podem gerar danos morais indiretos, atingindo, em ricochete, familiares e parentes que gozavam de convivência próxima com o trabalhador falecido.

3. De acordo com o inciso VI, do art. 114, da Constituição Federal de 1988, a competência para o julgamento de tais ações, quando decorrentes da relação de trabalho, é da Justiça do Trabalho, ainda que a ação seja ajuizada por terceiros que buscam, em nome próprio, a reparação de danos morais indiretos provocados pelo acidente de trabalho.

4. Vale ressaltar que, embora no núcleo familiar mais próximo estejam os legitimados mais facilmente identificáveis, podem ser titulares de dano moral todos aqueles que forem atingidos, em seu patrimônio moral, pelo ato ilícito, independentemente de parentesco ou dependência econômica, não havendo que se confundir legitimidade, que se afere em abstrato, com o próprio direito de fundo, que depende da análise da situação fática concretamente existente.

5. Com relação à forte corrente doutrinária defensora de que o valor da indenização deve ser global para todos os legitimados, tem-se que tal possibilidade vergasta o direito de ação autônomo que cada legitimado possui, havendo, ainda, a dificuldade prática de fixar-se uma indenização, que seja de cunho global, sem conhecimento efetivo de todos os legitimados que pretendem, com efeito, pleitear a reparação em juízo.

O fato é que as ações de reparação de dano moral em ricochete devem ocupar um espaço cada vez mais importante na processualística trabalhista, haja vista que a tendência, com a mudança competencial fomentada pela EC nº 45, é de crescimento do número de ações dessa natureza na Justiça do Trabalho, motivo pelo qual se pretendeu, com essas breves considerações, contribuir para a melhor compreensão da matéria.


Referências Bibliográficas:

DALLEGRAVE NETO, José Affonso. Responsabilidade Civil no Direito do Trabalho. 2ª ed. São Paulo: LTr, 2007.

MARQUES DE LIMA, Francisco Gérson. Explorando o sentido etimológico dos termos "oriundas" e "decorrentes" do art. 114 da Constituição Federal. In "http://www.prt7.mpt.gov.br/artigos/maio_2007_significado_expressao_relacao_trabalho.pdf". Acesso em 19 de dezembro de 2007.

OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Indenizações por Acidente do Trabalho ou Doença Ocupacional. São Paulo: LTr. 2005.

OLIVEIRA, Paulo Eduardo V. O Dano Pessoal no Direito do Trabalho. São Paulo: LTr. 2002.


Notas

  1. CC 7.204/MG, Rel. Min. CARLOS BRITTO
  2. Explorando o sentido etimológico dos termos "oriundos" e "decorrentes" do art. 114 da Constituição Federal. In "http://www.prt7.mpt.gov.br/artigos/maio_2007_significado_expressao_relacao_trabalho.pdf". Acesso em 19 de dezembro de 2007.
  3. Apud OLIVEIRA, Paulo Eduardo V. O Dano Pessoal no Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2002, p. 66.
  4. "Os danos materiais e morais causados aos parentes mais próximos não precisam de prova, porque a presunção é no sentido de que sofrem prejuízos com a morte do parente." (STJ, Resp. 157.912, Min. Sálvio de Figueiredo).
  5. OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de Oliveira. Indenizações por Acidente do Trabalho ou Doença Ocupacional. São Paulo: LTr, 2005, p. 230.
  6. DALLEGRAVE NETO, José Affonso. Responsabilidade Civil no Direito do Trabalho, 2ª ed.. São Paulo: LTr, 2007, p. 247-248.
  7. DALLEGRAVE NETO, José Affonso. Ob. Cit. p. 248-249.
  8. Ob. Cit., p. 234.
  9. STJ/4ªT., Resp 330.288, Relator Min. Aldir Passarinho Júnior.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

IBIAPINA, Márcio Antonio Pontes. Reflexões sobre o dano moral "em ricochete" decorrente de acidente de trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1898, 11 set. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11715. Acesso em: 29 mar. 2024.