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Sindicato, Estado e mercado

Sindicato, Estado e mercado

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Resumo: O artigo aborda, de forma sucinta, a relação entre sindicato, Estado e mercado diante da recente crise econômica.


Palavras-chave: Direito Coletivo do Trabalho. Sindicatos. Crise econômica.


As transformações vividas pelo mundo do trabalho, despontadas no apagar das luzes da década de 70, deram início a uma crise na dogmática jurídica trabalhista, a qual afetou a identidade do Direito do Trabalho, especialmente em seu ramo coletivo, que se viu diante de feições desconhecidas, a ponto de fazê-lo duvidar de sua própria justificativa.

Essa crise existencial estrutura-se, remotamente, no declínio das taxas de consumo e de lucro, na falência do modelo taylorista/fordista de produção, na concentração do capital nas mãos de grandes empresas multinacionais, na retração das políticas públicas do Estado de Bem-Estar social, no modelo político neo-liberal e na hipertrofia da esfera financeira, autônoma em relação à esfera do capital realmente produtivo (KAUFMANN, 2005, p.28).

De forma mais imediata, a crise é sentida pela adaptação do modelo de produção das empresas à nova fase do capitalismo, a globalização. A agenda da nova ordem mundial, pós-guerra fria, estabeleceu uma ditadura tecnológica, respaldada nos avanços da automação, responsável por tornar obsoleto uma gama de trabalhadores manuais (de chão de fábrica), os quais são os mais dispostos à sindicalização.

As novas metas passaram a incluir a diminuição da empresa, através de novas técnicas que contagiaram grandes e pequenas empresas em todo o mundo, como a terceirização (interna e externa, como leciona Márcio Túlio Vianna), a criação de novos postos de trabalho em regime parcial, a dispensa dos empregados obsoletos e a pressão psicológica advindas das novas formas de gerenciamento dos recursos humanos, que visam introjetar no trabalhador a idéia de concorrência e repassar para ele parte dos riscos do empreendimento, desarticulando seu interesse associativo.

As conseqüências de todo esse processo foram as baixas taxas de sindicalização, a redução dos índices de greves e a diminuição das negociações coletivas. Os números apontavam o fim do sindicato.

Segundo Kaufmann, o capital sem pátria, no afã [...] de se estender e de aumentar o seu poderio, tende, para tanto, a eliminar quaisquer entraves de exigências trabalhistas (2005, p. 33). Visto como um desses entraves, o sindicato se deixou enfraquecer e, principalmente, foi enfraquecido. Suas frágeis respostas não foram capazes de se contrapor ao discurso neo-liberal.

No Brasil, os sindicatos testemunharam, ainda, o rigor e o fim do regime militar brasileiro, a queda do muro de Berlim, o fracasso soviético e, principalmente, o surgimento do novo combustível do mercado financeiro: a especulação. O capital se tornou um produto sem lastro, fabricado e manipulado por mãos virtuais descompromissadas com a distribuição de renda, numa linha de produção voltada para a acumulação.

Bem ou mal, os sindicatos sobreviveram.

Mas o ano de 2008 trouxe novo suspense. O capitalismo imergiu em uma nova crise, assistida por todos com ar de pavor. A magnitude da atual crise faz com que qualquer tentativa de compreendê-la, muito mais de explicá-la, corra o risco de ser incompleta. Entretanto, sabe-se que uma parte significativa de suas causas está ligada à especulação, ao capital sem lastro e à soberba e prepotência dos idealistas do neoliberalismo, irresponsáveis ao inverterem valores, destronando o primado da dignidade da pessoa humana, em razão da obsessão acumulativa de lucros, e transformando seres humanos em números, metas em virtudes.

O fato é que, desde o ano de 2001, as taxas de juros foram sendo diminuídas nos Estados Unidos da América, o que estimulou os financiamentos e empréstimos bancários. Animados, os consumidores americanos - que, sozinhos, importam quase tanto quanto toda a Comunidade Européia - passaram a financiar a maior parte dos bens que gostariam de adquirir. Por outro lado, aqueles que já possuíam bens, especialmente imóveis, passaram a hipotecá-los para adquirir novos bens. Essas transações chegaram à casa dos trilhões de dólares. A maior economia do mundo esbanjava saúde com seus altos índices de crescimento, numa demonstração de virtuosismo econômico imortal.

Os bancos fizeram o mesmo, emprestando dinheiro uns para os outros. Com todos consumindo muito, o preço dos imóveis subia a cada dia, alçado pela especulação imobiliária, transformando o investimento em bens de tal natureza imóveis em algo extremamente lucrativo: comprava-se uma casa ontem com o dinheiro da hipoteca de uma anterior; vendia-se a mesma casa hoje como se outra fosse, por um preço muito maior, com muita especulação; a hipoteca era paga e o lucro obtido; a casa era o que menos importava.

Entretanto, o consumo, que, na década de setenta, preocupava a todos pela queda, passou a preocupar, agora, pelo excesso. Então, foi necessário aumentar os juros: o preço dos imóveis caiu a ponto de não mais garantirem as hipotecas; as dívidas se multiplicaram e, com elas, a inadimplência; a desconfiança se generalizou e o crédito ficou difícil; endividadas, as empresas começaram a demitir.

Nessa esteira também foram os bancos, responsáveis pelo crédito, credores das hipotecas. Com a inadimplência, surgiu desconfiança entre as instituições financeiras, vez que o imóvel hipotecado era uma mera ficção, valorizado e desvalorizado pela especulação de um segundo para o outro.

Onde estava o Estado?

Entre as crises de 70 e 2008, houve uma mudança nos sujeitos das relações sócio-econômicas. Antes, essas relações eram triangulares, formadas entre o capital, o trabalho e o Estado, este participando do jogo financeiro ora com sua mão invisível (no liberalismo), ora como sujeito interventor (no Estado de bem-estar social). Depois, a partir da crise do petróleo, a transformação do capital financeiro em produto especulável criou as condições para que o Mercado ocupasse o lugar que era tradicionalmente do Estado, passando a ditar as regras da acumulação.

Na proposta liberal, a justiça social não seria problema, vez que ela aconteceria automaticamente, a partir do momento em que o Estado saísse de cena e deixasse livres os atores (capital e trabalho). O roteiro era simples: quem fosse melhor ganharia mais e quem fosse pior ganharia menos. Como exemplo, o fim da estabilidade no emprego (que acabou acontecendo no Brasil) supostamente deixaria o empregado livre para negociar sua força de trabalho, em busca de sua própria acumulação. Também a empresa ficaria livre para dispensar os empregados desnecessários.

Todavia, a realidade mostrou que verdadeiramente livre ficou o Mercado, já que passou a ser dele a função exclusiva de dizer quem é e quem não é necessário, através de uma metodologia utilitarista, para a qual útil é o que produz mais, pelo menor custo.

Até 2008, o mundo assistiu a um roteiro trágico, deformado pelo improviso, onde, a cada ato, necessários (bons) acumulavam muito mais e os desnecessários (piores) não ganhavam nada. Em 2008, automaticamente, a justiça social do liberalismo demonstrou sua face mais cruel: a recessão.

Diante dos acontecimentos, o Estado foi convidado a participar novamente do teatro econômico, dessa vez no papel de bombeiro. Se, entre 1970 e 2008, o Mercado coordenou os lucros, a partir de 2008, o Estado passou a coordenar o prejuízo. Para os trabalhadores, o Estado ofereceu o que restou da idéia de solidariedade social, com benefícios da previdência e do seguro desemprego, por exemplo. Para as empresas, foram oferecidos trilhões de dólares.

A liberdade preconizada pelo Mercado, com sua filosofia utilitarista e sua idéia de justiça social, sem responsabilidade e solidariedade, permitiu que, na iminência da crise, todo o prejuízo fosse primeiramente repassado ao trabalhador, através das dispensas em massa. É que, na lógica utilitarista, o prejuízo é menor com a empresa parada do que produzindo, já que dispensar os empregados é mais barato do que usar o dinheiro acumulado por anos (agora subitamente desaparecido) para atravessar o momento turbulento, até porque os empregados podem ser recontratados depois, recebendo salário menor. Para o Mercado, usar o lucro acumulado durante anos para bancar seus próprios prejuízos geraria desconfiança, pois implica em alteridade ou responsabilidade pelos riscos do empreendimento. Se isso acontecesse, as bolsas cairiam, porque não é de bom tom não dispensar ninguém em meio à crise.

Tudo é feito sem se pensar no caos social que o desemprego representa. Mas não se pode dizer que o Mercado seja incoerente, pois sua ideologia nunca primou pelo emprego formalizado (mais caro), pelo que não poderia, agora, pensar em preservá-lo.

O valor do trabalho se apequenou diante do valor especulativo do capital, onde o crédito vale mais que o dinheiro vivo. Acontece que o Direito não pode fechar os olhos para essa absurda inversão de valores, sobretudo em seu ramo trabalhista, que prima pela melhoria das condições de vida do homem e pela valorização de sua dignidade. Como conclui Jorge Luiz Souto Maior:

Não há espaço, portanto, para continuar falando em liberdade contratual irrestrita em matéria trabalhista; em não-intervenção do Estado nas relações de trabalho; em responsabilidade por culpa nos acidentes do trabalho; em livre-iniciativa desvinculada da verdadeira função social de preservação dos empregos; em mercado dos competentes, atribuindo aos desempregados a pecha de "inimpregáveis" por não possuírem a qualificação exigida por uma quase sagrada competição; em afirmar que os vencedores fizeram por merecer e que os perdedores são culpados por seu próprio destino; em livre-concorrência sem peias; em liberdade para impor, pelo poder, renúncias a direitos tidos como fundamentais; em flexibilização de garantias sociais; em intermediação de mão-de-obra como técnica administrativa moderna e como requisito de inserção na concorrência mundial, permitindo com isso que pessoas sejam transformadas em coisas; em caráter programático das normas de proteção social; em fatalismo sócio-econômico determinado pela inexorável "globalização", que aparece, assim, como justificativa de toda e qualquer injustiça social; pois, certamente, nada disso contribui para um enfrentamento sério dos problemas atuais. (MAIOR, 2008, n/p).

E quanto ao sindicato? Agonizando, o sindicato assiste a tudo. No Brasil, das lutas da década de setenta, restaram algumas comissões de fábrica e poucas centrais sindicais, estas só agora legalizadas. Dentre estas, inclusive, algumas se encontram entorpecidas pelo discurso do Mercado, talvez pelo desaparecimento das ideologias contrárias à neoliberal.

Se antes as lutas foram por melhores condições de trabalho, hoje, são por contenção de dispensas em massa.


Referências

KAUFMANN, Marcus de Oliveira. Das práticas anti-sindicais às práticas anti-representativas: sistemas de combate e a tutela de representações coletivas de trabalhadores. São Paulo: LTr, 2005.

MAIOR, Jorge Luiz Souto. Enfim a crise... Enfim, a razão?. Revista Eletrônica Mensal do Curso de Direito da UNIFACS. nº 100. outubro. Ano 2008. Disponível em <www.facs.br/revistajuridica/edicao_outubro2008/convidados/con2.rtf>. Acesso em 05/01/2009


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Leonardo Tibo Barbosa. Sindicato, Estado e mercado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2077, 9 mar. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12424. Acesso em: 26 abr. 2024.