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Direito ao sossego

Direito ao sossego

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A psicologia ensina que o homem tem necessidade de viver em sociedade porque ninguém é auto-suficiente, ou seja, há uma necessidade de conviver com objetivo de ajuda mútua. O homem é um ser social (Aristóteles), porque é muito frágil pra viver sozinho. Mas o ser humano ainda não aprendeu a viver bem em sociedade e, talvez, essa seja sua maior desgraça. Se é verdade que a convivência trouxe vantagens para a sociedade, também é correto dizer que muitos problemas surgiram dessa convivência. É o caso, por exemplo, da perturbação do trabalho e do sossego.

Causado em boa medida por nossos próprios vizinhos, o problema de perturbação do trabalho e do sossego pode apresentar-se de forma variada em nossa comunidade: (1)em razão do alto volume do som da casa ao lado; (2)da reforma de outra casa vizinha que ultrapassa a noite; (3)através de animais que fazem muito barulho; ou, ainda (4)por ruidosas indústrias, além dos casos de (5)algazarra e gritarias.

Como se vê, são inúmeras as situações que configuram o problema da perturbação do sossego e cada um de nós tem um relato (trágico, às vezes) a esse respeito. Nesse sentido, parece, realmente, que o homem ainda não aprendeu a viver bem em sociedade.

Já foi dito (Ulpiano/208, d.C.) que o Direito está consubstanciado, basicamente, em três preceitos: (I) viver honestamente, (II) dar a cada um o que é seu, e (III) respeitar o próximo. Utópico? Talvez. Mas se a prática de tais premissas fosse levada a efeito, a convivência social seria muito melhor e, conseqüentemente, não haveria necessidade de tantas leis. E aqui reside um complicador, eis que a maioria das pessoas que perturbam seus vizinhos desconhece as leis sobre este assunto. Além disso, há no imaginário coletivo uma crença generalizada de que até as vinte e duas horas a produção de ruídos é permitida. Essa crença (equivocada, diga-se) muitas vezes baseada na vox populi ou em distorcidas interpretações da lei mostra que as pessoas desconhecem, p. ex., que vinte e duas horas é um limite usual para os ruídos que estão presentes em nosso cotidiano, tais como: barulho de televisores, buzinas dos veículos, conversas animadas. Tais barulhos fazem parte da convivência em sociedade e não caracterizam o "barulho excessivo" ou "desproporcional".

É importante ressaltar que, embora esquecido por alguns, o direito ao sossego está amplamente regulado em nosso ordenamento jurídico. Ele não passou despercebido pelo legislador constituinte ao dispor, no artigo 225 da Constituição Federal, que:

"Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações."

Também foi dispensado destacado tratamento ao assunto no Código Civil (Lei 10.406, de 10 de Janeiro de 2002), o qual, de fato, resguarda expressamente o direito ao sossego, conforme se infere do artigo 1.277, litteris:

"Art. 1.277. O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha." (grifou-se)

O tema pode parecer despiciendo para o leitor mas não o foi para o legislador criminal, conforme se depreende do artigo 42 do Decreto-Lei nº 3.688/1941 (Lei das Contravenções Penais). Ele tipifica a perturbação do sossego como espécie de infração penal, cuja conduta é punível até com pena de prisão. Repare o que diz o referido artigo, litteris:

"Art. 42. Perturbar alguém o trabalho ou o sossego alheios:

I – com gritaria ou algazarra;

II – exercendo profissão incômoda ou ruidosa, em desacordo com as prescrições legais;

III – abusando de instrumentos sonoros ou sinais acústicos;

IV – provocando ou não procurando impedir barulho produzido por animal de que tem a guarda:

Pena – prisão simples, de quinze dias a três meses, ou multa." (grifou-se)

Como se vê, até o Direito Penal preocupou-se com o direito ao sossego. E nem se diga que o dispositivo legal acima já não tem vigência ou foi revogado. No Brasil "o [mal] costume" ainda não tem o condão de revogar uma lei. O nosso sistema jurídico dispõe que a lei terá vigência até que outra a modifique ou revogue (Art. 2º do Decreto-Lei nº 4.657/42 – Lei de Introdução ao Código Civil). Embora muitas vezes a Lei de Contravenções Penais não seja aplicada por questões de vontade política, ela ainda se encontra em plena vigência, sendo certo que as autoridades policiais e seus agentes têm o dever de agir quando tiverem notícia da prática de qualquer infração penal (Código de Processo Penal, Art.6º) e se deixarem de fazê-lo podem até incorrer no crime de prevaricação (Código Penal, art.319).

Ressalte-se, ademais, que no Estado do Rio de Janeiro a Lei nº 126 de 10 de Maio de 1977 também regulamenta a matéria sobre poluição sonora. Ela começa definindo a infração de produção de ruído esclarecendo o que deve ser considerado como tal, litteris:

Art. 1º - Constitui infração, a ser punida na forma desta Lei, a produção de ruído, como tal entendido o som puro ou mistura de sons, com dois ou mais tons, capaz de prejudicar a saúde, a segurança ou o sossego públicos.

Além disso, a mencionada norma elenca um rol de ruídos proibidos, esclarecendo ainda que tais ruídos não dependem de medição de nível sonoro, litteris:

Art. 3º - São expressamente proibidos, independentemente de medição de nível sonoro, os ruídos:

I - produzidos por veículos com o equipamento de descarga aberto ou silencioso adulterado ou defeituoso;

II - produzidos por aparelhos ou instrumentos de qualquer natureza utilizados em pregões, anúncios ou propaganda na via pública ou para ela dirigidos;

III - produzidos por buzinas, ou por pregões, anúncios ou propaganda, à viva voz, na via pública, em local considerado pela autoridade competente como "zona de silêncio";

IV - produzidos em edifícios de apartamentos, vila e conjuntos residenciais ou comerciais, em geral por animais, instrumentos musicais ou aparelhos receptores de rádio ou televisão ou reprodutores de sons, tais como vitrolas, gravadores e similares, ou ainda de viva voz, de modo a incomodar a vizinhança, provocando o desassossego, a intranqüilidade ou desconforto;

V - provenientes de instalações mecânicas, bandas ou conjuntos musicais e de aparelhos ou instrumentos produtores ou amplificadores de som ou ruído, tais como radiolas, vitrolas, trompas, fanfarras, apitos, tímpanos, campainhas, matracas, sereias, alto-falantes, quando produzidos na via pública ou quando nela sejam ouvidos de forma incômoda;

VI - provocados por bombas, morteiros, foguetes, rojões, fogos de estampido e similares;

VII - provocados por ensaio ou exibição de escolas-de-samba ou quaisquer outras entidades similares, no período de 0 hora às 7 horas, salvo aos domingos, nos dias feriados e nos 30 (trinta) dias que antecedem o tríduo carnavalesco, quando o horário será livre.

* VIII - produzidos em Casas Noturnas, acima de 55 decibéis, a partir das 22 horas. *Acrescentado pela Lei nº 3827/2002.

Por fim, a Lei nº 126/77 também cria a possibilidade de qualquer pessoa que se veja sofrendo violação do direito ao sossego solicitar à Delegacia de Polícia local as providências cabíveis a fim de fazer cessar o barulho. É o que se infere do artigo 9º da norma aludida, litteris:

* Art. 9º - Qualquer pessoa que considerar o seu sossego perturbado por sons ou ruídos não permitidos poderá solicitar à Secretaria de Estado de Segurança Pública, através da Delegacia de Polícia local, providências destinadas a fazê-los cessar. (grifou-se)

Como se vê, a realidade de nossa legislação revela que o excesso de barulho ou ruído é proibido independente do horário, mesmo que seja à tarde. Embora muitas pessoas acabem distorcendo o direito à liberdade de viver pacífica e respeitosamente a pretexto de exercer o direito do "eu posso tudo em nome do meu divertimento ou trabalho." No exercício extremo desse pseudo-direito do "eu posso tudo", exageram na produção de ruídos, excedem no volume, exacerbam na duração da perturbação, esquecendo que as outras pessoas também têm direitos (divertir, trabalhar, estudar e, sobretudo, descansar).

É importante ressaltar, ainda, que o excesso de ruídos toma proporções indevidas quando um indivíduo, através de seus ruídos (a pretexto de se divertir ou trabalhar), acaba invadindo o modo de vida do outro. Em razão dessa invasão o outro se vê compelido a interromper um estudo, um trabalho, um repouso. Este é um típico caso que configura o exagero do perturbador, que pode surgir tanto da intensidade quanto da duração do ruído. Tal perturbação pode deixar a vítima com seu estado de ânimo alterado se desse dano decorrer uma afetação psicológica (crises de nervosismo, descontrole, insônia, stress etc). Observe-se que, geralmente, quem sofre a incidência de uma perturbação dessa natureza vai se queixar com quem está produzindo os ruídos e o desconhecimento da lei por parte de ambos faz com que persistam cada um na "sua razão" o que acaba gerando conseqüências diversas traduzidas, p. ex., em "danos patrimoniais"; "danos morais"; "vias de fato"; "injúrias"; "lesões corporais" etc. Diante de tais circunstâncias, pessoas que nunca se envolveram com a Justiça acabam virando estatísticas criminais. Por isso, a perturbação do trabalho e do sossego alheios, que é punível mesmo antes das vinte e duas horas, deve ser rechaçada pela coletividade e qualquer cidadão que tiver seu sossego perturbado por sons ou ruídos não permitidos pode e deve solicitar providências policiais para fazê-los cessar.

Portanto, é urgente e necessário que haja uma ampla divulgação dessa legislação, que se encontra em plena vigência, de tal maneira que cada vez mais pessoas sejam conscientizadas sobre direitos e deveres entre vizinhos relativamente ao direito ao sossego, esclarecendo que é possível cobrar a solução desse estorvo junto ao órgão competente e que este órgão, no caso do Estado do Rio de Janeiro, é a própria delegacia policial.


Autor

  • Agnaldo Abrantes

    Agnaldo Abrantes

    mestre em direito, professor de Direito Penal, Processo Penal e Interpretação Jurídica (Universo);

    foi administrador e advogado no Rio de Janeiro; ex-analista judiciário do TRF/2ª Região. Autor de "As penas alternativas no modelo brasileiro de justiça criminal" disponível em:www.tj.rj.gov.br.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ABRANTES, Agnaldo. Direito ao sossego. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2093, 25 mar. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12509. Acesso em: 28 mar. 2024.