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Breve introdução à teoria da Justiça de John Rawls

Breve introdução à teoria da Justiça de John Rawls

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Sumário:1. Considerações iniciais; 2. Os pressupostos éticos-epistemológicos do liberalismo de Rawls; 3. Os principais conceitos da Teoria da Justiça e sua articulação; 3.1 A posição original, o véu da ignorância e o equilíbrio reflexivo; 3.2 Os dois princípios da Justiça como Eqüidade; 3.3 A interpretação kantiana da Justiça como Eqüidade; 4. Análise crítica. 4.1 Os limites da antropologia atomista; 4.2 A concepção de sociedade decorrente do atomismo; 5. Considerações finais; 6. Referências Bibliográficas;


1.Considerações iniciais.

O presente trabalho tem por objetivo geral elaborar uma abordagem dos principais conceitos desenvolvidos por John Rawls em "Uma Teoria da Justiça", procurando responder ao seguinte problema: qual a concepção – se existe – de "bem comum" pressuposta pela teoria de Rawls? A teoria proposta pelo autor consegue realizar uma sociedade justa?

Nossa hipótese de trabalho é a de que o liberalismo político proposto por John Rawls (e seu pressuposto contratualista), vez que dependente de uma ética relativista, é incapaz de conjugar liberdade e eqüidade, portanto, falha em fornecer um aparato conceitual necessário à realização de uma sociedade justa.

Destarte, para alcançar os objetivos propostos no presente estudo, abordaremos, no segundo capítulo, os pressupostos ético-epistemológicos do liberalismo político, sua incapacidade em garantir uma ética deontológica universal, bem como sua conseqüente queda no relativismo. Já no terceiro capítulo abordaremos os principais conceitos da teoria da justiça e sua articulação interna, procuraremos, também, demonstrar a descendência destes conceitos dos pressupostos do liberalismo kantiano. No quarto capítulo proporemos uma análise crítica da teoria de Rawls, com o objetivo específico de expor alguns argumentos que se contrapõem às principais teses do primeiro.

O método que utilizaremos é o próprio da pesquisa filosófica, ou seja, a análise conceitual.


2.Os pressupostos ético-epistemológicos do liberalismo de John Rawls.

John Rawls formula uma teoria fundamentada na tradição liberal que parte de, pelo menos, dois pressupostos relacionados a) uma ética deontológica de origem kantiana, segundo a qual o sujeito moral, através da razão prática, escolhe livremente seguir a lei moral; b) uma epistemologia relativista que, nos moldes cartesianos, concebe o objeto de conhecimento a partir do sujeito cognoscente. Em síntese, pode-se afirmar que a teoria de rawlsiana é, seguindo a tradição liberal, produto de um processo de subjetivização [01].

Neste diapasão, podemos afirmar que Rawls inscreve-se na tradição relativista evidenciada por MacIntyre nos cinco primeiros capítulos de After Virtue (Macintyre, 2000). Esta tradição caracteriza-se pela negação de uma visão cosmológica de mundo e, conseqüentemente, do universal-metafísico e culmina por afirmar uma postura nominalista [02] de acesso ao conhecimento e à realidade. No plano epistemológico, portanto, a visão compartilhada por Rawls, implica numa dissociação entre fato e valor, vez que o valor-verdade não está mais no mundo, mas sim no processo racional interno ao sujeito cognoscente. O acesso à verdade, conforme o molde cartesiano, se dá eminentemente pelo modo indutivo, segundo o qual a razão constrói princípios universais com independência – ainda que parcial – da realidade, ou melhor, constitui a realidade.

Esta postura epistemológica tem seu correlato imediato no plano ético: a fundamentação dos valores na consciência do sujeito moral. Assim, o sujeito moral enquanto ser livre e racional, e por ser dotado destes atributos, é capaz de apreender o conteúdo de dever-ser exigido pelos princípios morais universais. Deste modo, a autonomia do sujeito, seu atributo de racionalidade, servindo como fundamento dos princípios éticos universais, enquanto vontade livre, serve também como fundamento da sociedade: mediante a formulação do contrato social.

Assim, o sujeito racional tem sua liberdade assegurada, na medida em que, através do exercício da vontade livre, escolhe os princípios morais que passam no teste da racionalidade: a universalidade. Esta vontade livre, por sua vez, será, conforme já assinalado, o pressuposto da fundação da sociedade, através do contrato social.

Pode-se afirmar, portanto, que Rawls, uma vez concebendo a sociedade como fruto de uma vontade livre, filia-se ao liberalismo de orientação kantiana e com este compartilha três características essenciais: a) o procedimentalismo, vez que a justiça é concebida como imparcialidade; b) uma argumentação deontológica ; c) liberalismo constitucional, traduzido pela idéia liberdade e tolerância e de igualdade e vontade geral, conforme afirma Nytamar Oliveira (2003, p 17). A diferença em relação a o liberalismo kantiano, conforme veremos, fica por conta de que os princípios fundantes da teoria têm valor tão-somente enquanto procedimento para assegurar aos indivíduos a realização de seus projetos pessoais, não sendo fundamentos constitutivos de formas de vida: o construtivismo de Rawls é político, não moral, o que resta evidenciado já no parágrafo 40 da Teoria da Justiça.

Ainda que Rawls partilhe com Kant a tese de que o justo precede o bom, não endossa, entretanto, a antropologia kantiana. A tese kantiana assegura a prevalência da justiça sobre o bom recorrendo à noção de "liberdade do sujeito moral". Segundo este ponto de vista, a principal característica do sujeito moral é a total ausência de referência ao mundo fenomênico. O sujeito é livre justamente na medida em que, pela razão, se auto-impõe a lei do dever moral, o sujeito antecede seus fins:

"A descoberta de que tenho que me conhecer a mim mesmo, quer como sujeito, quer como objecto da experiência, sugere dois modos diferentes de conceber as leis que governam as minhas acções. Esta descoberta conduz-nos do argumento epistemológico para um argumento suplementar, prático, em favor da prioridade do sujeito. Enquanto objecto da experiência, eu pertenço ao mundo sensível. Tal como os movimentos de todos os objectos, também as minhas acções são determinadas pelas leis da natureza e pelas regularidades de causa e efeito. Em contrapartida, enquanto sujeito da experiência, eu habito o mundo inteligível, ou supra-sensível, no qual sou independente das leis da natureza e me apresento como sendo capaz de ser autônomo, isto é, capaz de agir de acordo com uma lei que dou a mim mesmo. (Sandel, 2005, 30.)

O problema de uma tal concepção é a fundamentação do justo sobre uma noção de sujeito incorpóreo, irreal, um sujeito puramente formal, arbitrário. Rawls reconhece o "excesso de metafísica" de Kant e se propõe uma teoria capaz de mitigar o idealismo metafísico. Propõe, então, para utilizar um termo forjado por Sandel, uma "deontologia com face humeana", o que significa abrir uma janela para o empírico, através da "posição original":

"Para Rawls, a concepção kantiana sofre de obscuridade e de um caráter arbitrário, na medida em que não se entende como é que um sujeito a quem se retirou o corpo poderia sem arbitrariedade produzir determinados princípios de justiça, ou, em qualquer caso, como é que as normas produzidas por um tal sujeito se poderiam aplicar a seres humanos concretos vivendo no mundo fenomênico. Apesar de todas as suas vantagens morais e políticas, a metafísica idealista cede demasiado ao transcendente e, ao postular um âmbito numenal, conquista para a justiça um lugar de primado, mas a preço de lhe negar sua condição humana."

"Deste modo, Rawls assume como seu projecto de preservar os ensinamentos deontológicos de Kant, substituindo as obscuridades germânicas por uma metafísica domesticada, menos vulnerável à acusação de arbitrariedade e mais de acordo com o temperamento anglo-americano. O seu propósito consiste em derivar os primeiros princípios a partir de uma situação hipotética de escolha (a posição original), caracterizada por condições destinadas a produzir um resultado determinável, adequado a seres humanos concretos. Aqui, não é o reino dos fins que prevalece, mas as circunstâncias ordinárias da justiça – tal como pedidas de empréstimo a Hume. Não um futuro moral que cada vez se afasta mais de nós, mas um presente firmamente ancorado nas circunstâncias humanas, e que oferece a ocasião à justiça [...]". (Sandel, 2005, 36)

Neste sentido é que o Liberalismo de Rawls é político, não metafísico, porque procura prescindir da noção de um sujeito fundante, o qual é substituído pela posição original que, após forjar os princípios da justiça, deixa a escolha dos fins à vontade de cada um.

É correto, portanto, afirmar que a teoria da justiça como equidade filia-se (ou pelo menos assume em seu interior), a um relativismo ético já que ao sujeito ou aos grupos de sujeitos é dado perseguir seus fins particulares, desde que respeitados os princípios procedimentais. Há, deste modo, uma tensão interna entre princípios de justiça universais: a igual liberdade e a igualdade de oportunidades, por um lado, e o relativismo ético decorrente do postulado da prevalência do justo sobre o bom: a negação de uma teleologia, por outro. Referida tensão, por sua vez, resta melhor evidenciada se abordarmos os principais conceitos da teoria, o que passamos a fazer.


3.Os principais conceitos e sua articulação.

Rawls articula sua teoria partindo de uma situação ideal que inscreve-se na tradição contratualista. Tal idealização é representada pela posição original que é uma situação hipotética na qual as partes contratantes – representando pessoas racionais e morais, livres e iguais – escolhem, sob um "véu de ignorância", os princípios de justiça que devem governar a estrutura básica da sociedade. A estrutura básica, por sua vez, é entendida como o "[...] modo pelo qual as instituições sociais, econômicas e políticas se estruturam sistematicamente para atribuir direitos e deveres aos cidadãos, determinando suas possíveis formas de vida." (Oliveira, 2003, p. 14).

Da articulação destes três conceitos, Rawls chega, então à formulação da sociedade bem-ordenada, ou seja, aquela sociedade que é efetivamente regulada por uma concepção de política e pública de justiça na qual cada indivíduo aceita – e sabe que todos os seus concidadãos aceitam – os mesmos princípios de justiça e, portanto, os termos eqüitativos da cooperação social, assim como as suas instituições políticas, sociais e econômicas, que são, por todos, reconhecidas como justas. A posição original pressupõe, portanto, o objetivo de fundar uma sociedade bem-ordenada, ou seja, uma sociedade de cooperação mútua para que cada indivíduo possua meios materiais (e psicológicos, já que Rawls inclui como um dos bens do sujeito sua auto-estima) para alcançar seus objetivos livremente escolhidos. As partes na posição original são mutuamente desinteressadas: cada uma busca sua auto-realização e o objetivo de estabelecer princípios que regulamentem o jogo cumpre o papel de assegurar a liberdade de escolha dos projetos.

Conforme ressaltado, a idéia de posição original, na medida em que procura ser compatível com um pluralismo de valores subjacentes, busca preservar seu procedimentalismo. Tal se dá pela proposição básica de que as partes, na posição original, escolhem os princípios de justiça sob certas condições, as condições do véu da ignorância. Este, por sua vez, introduz restrições ao conhecimento das partes sobre sua real situação pessoal, introduz uma neutralidade. Somente por esta neutralidade as partes serão capazes de chegar num consenso sobre os princípios da justiça, uma vez que, ainda que sejam auto-interessadas, desconhecem sua real condição e, portanto, uma parte não estará em condições de procurar impor à outra princípios que sejam favoráveis à sua condição pessoal.

A posição original tem, destarte, por objetivo estabelecer princípios gerais capazes de engendrar uma sociedade bem-ordenada – ou neutra. Esses princípios devem ser livremente escolhidos, liberdade assegurada pela neutralidade do véu da ignorância. Esta neutralidade é, entretanto, mitigada pela introdução do equilíbrio reflexivo, que tem por objetivo formular as condições em que o contrato é celebrado e alterar a posição das partes adequando-as aos princípios da justiça.

A introdução do "equilíbrio reflexivo" na teoria de Rawls culmina na formulação – ainda que velada – de uma concepção de sujeito, ou uma teoria da pessoa. Com efeito, o equilíbrio reflexivo confere à posição original uma duplicidade: as circunstâncias da justiça [subjetivas e objetivas] e a reflexão sobre a justiça, esta reflexão, por sua vez, é produto de um sujeito que reflete sobre sua condição, daí a necessidade de uma antropologia filosófica [de início negada por John Rawls].

Conforme demonstra Sandel, esta antropologia é o fundamento da posição original:

"A descrição da posição original é o produto de dois ingredientes básicos: por um lado, os nossos melhores juízos de ‘razoabilidade e plausibilidade’ (ainda por explicar) e, por outro, as nossas convicções reflectidas sobre a justiça. A partir das matérias-primas fornecidas pelas nossas intuições, devidamente filtradas e enformadas pela posição original, emerge um produto final. No entanto, trata-se de um produto final de dimensões duais, e é aqui que se encontra a chave da nossa concepção já que o que emerge numa extremidade como uma teoria da justiça tem necessariamente que emergir na outra como uma teoria da pessoa, ou, com maior precisão, como uma teoria do sujeito moral. Olhando numa direcção, vemos através das lentes da posição original dois princípios da justiça; perscrutando na outra, vemos um reflexo de nós próprios. Se o método de equilíbrio reflectido funciona com a simetria que Rawls lhe atribui, então a posição original tem de produzir não só uma teoria moral, mas também uma antropologia filosófica. (Sandel, 2005, 78)

Por fim, a teoria, para efeito de formular os princípios da justiça, não pode prescindir do pressuposto da racionalidade das partes. Por "racionalidade das partes" podemos entender que: a) os contratantes têm um sentido de justiça, i.é, visam a liberdade e a igualdade; b) possuem projetos pessoais auto-interessados e; c) têm auto-estima e não possuem inveja umas das outras. Estes são os atributos do "sujeito racional" de Rawls que fecha o ciclo conceitual inicial da justiça como equidade: se os sujeitos são racionais, se não têm conhecimento prévio de sua posição social e de seus atributos pessoais (véu da ignorância), se objetivam estabelecer uma cooperação mútua e, por fim, se partem de uma situação contratual fundante, deverão estar de acordo sobre o conteúdo dos princípios contratuais que servirão de base à sociedade.

3.2.Os dois princípios da justiça como equidade.

Os princípios da justiça em Rawls cumprem, primeiramente, a função de conjugar a liberdade e a igualdade de um modo coerente e ao mesmo tempo eficaz.

Assim, os dois princípios – escolhidos na posição original – devem efetivar a distribuição eqüitativa de bens primários – bens básicos para todas as pessoas independentemente de seus projetos pessoais de vida ou de suas concepções de bem. Os bens primários comportam, ainda segundo Rawls, o auto-respeito e a auto-estima, acompanhados das liberdades básicas (expressão e religião), rendas e direitos a recursos sociais (educação e saúde, por exemplo). Podem ser assim enunciados:

* Primeiro: Todas as pessoas têm direito a um projeto inteiramente satisfatório de direitos e liberdades básicas iguais para todos, projeto este compatível com o dos demais; e, nesse projeto, as liberdades políticas, e somente estas, deverão ter seu valor eqüitativo garantido.

* Segundo: As desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer dois requisitos: a) devem estar vinculadas a posições e cargos abertos a todos, em condições de igualdade eqüitativa de oportunidades; b) devem representar o maior benefício possível aos membros menos privilegiados da sociedade.

Os princípios são organizados em ordem lexográfica, ou seja, o primeiro, da "igual liberdade", tem primazia sobre o segundo que se divide em dois: o "princípio da igualdade eqüitativa de oportunidades" e o "princípio da diferença". A ordem lexográfica implica na prioridade da justiça sobre o bem e, portanto, enquadra-se no modelo deontológico endossado pelo autor.

A ordem lexográfica garante que o primeiro princípio seja completamente satisfeito antes de se passar à aplicação do segundo, o que significa, em síntese, assegurar a inviolabilidade das liberdades individuais as quais estão acima de todos os ajustes sociais que visem a equidade.

Uma vez que os princípios aplicam-se à estrutura básica da sociedade, ou seja, distribuem direitos e obrigações, o primeiro princípio deve ser observado irrestritamente para que seja viável a garantia das liberdades fundamentais de modo universal e imparcial. As liberdades básicas mais importantes são: a liberdade política (votar e ocupar cargos públicos), a liberdade de expressão e reunião, a liberdade de consciência e de pensamento, as liberdades da pessoa (integridade pessoal, i.é, proteção contra a agressão física e psicológica), o direito à propriedade privada e a proteção contra a prisão e a retenção arbitrárias, em síntese, os direitos humanos e as liberdades civis.

O segundo princípio, condicionado à observância irrestrita do primeiro, objetiva efetivar uma justiça distributiva, onde cumpre um papel de destaque o princípio da diferença: os que estão em posição melhor somente podem aumentar seus ganhos se isso implicar em vantagem para os menos favorecidos. As desigualdades são justificadas por uma igualdade local (todos têm direito ao acesso às riquezas) ao mesmo tempo em que são mitigadas pelo princípio da diferença.

Com esses dois princípios Rawls procura oferecer uma teoria capaz de fazer frente ao utilitarismo, assumindo, de certa forma, alguns postulados dessa corrente: aqueles que levam ao igualitarismo. Sem abrir mão do postulado essencial das liberdades fundamentais. Como fazer isso mantendo a coerência? Através do procedimentalismo, assumindo a utilidade da igual oportunidade, mas sem endossar uma "doutrina do bem" uma doutrina abrangente, na linguagem rawlsiana.

3.3.A interpretação kantiana.

Rawls oferece-nos aquilo que ele denomina uma "interpretação kantiana da teoria da justiça como eqüidade" no parágrafo 40 de sua obra. Aqui ele expressa o que posteriormente chamaria de "construtivismo político", que dará fôlego à caracterização da teoria da justiça como um procedimento, ou, a "teoria não-ideal da justiça", que perfaz a terceira parte de sua obra.

O construtivismo político é marcado por uma leitura particular do conceito de autonomia do sujeito construído por Kant. Rawls parte da objeção de Sidgwick, segundo a qual a ética de Kant, enquanto afirmação de que o indivíduo realiza seu fim verdadeiro somente quando age orientado pela lei moral e não por desejos dos sentidos ou objetivos contingentes a nada conduz, vez que tanto a vida de um santo quanto a de um canalha podem passar pelo teste da escolha livre do "eu" numênico. Rawls assume essa objeção e afasta-se do "construtivismo moral kantiano" o qual qualifica como uma doutrina moral abrangente. Assim, segundo Rawls, a "falha" do construtivismo kantiano pode ser superada pelo construtivismo político da posição original, onde um conjunto de "eus numênicos" define os princípios de justiça que expressem sua condição de seres livres, racionais e iguais. Deste modo o construtivismo político rawlsiano difere do construtivismo moral kantiano nos seguintes pontos, conforme ressalta Oliveira:

"a) o construtivismo moral kantiano reivindica uma validez como "doutrina abrangente", " o construtivismo de Rawls representa um modelo teórico que visa estabelecer um consenso mínimo necessário fundado em princípios políticos; b) Rawls diferencia seu conceito de autonomia política do conceito kantiano de autonomia moral: este desempenha um papel regulador, "viabilizando a autoconstituição de valores morais e políticos pelos princípios da razão prática, ao passo que aquele apenas representa a ordem de valores políticos embasados nesses mesmos princípios; c) tal como Kant, Rawls mantém que os princípios da razão prática originam-se na consciência moral, ao contrário de Kant, concepções metafísicas não desempenham nenhum papel de fundamentação no estabelecimento de concepções básicas de personalidade (faculdades de um senso de justiça e de concepções de bem) e sociedade (associação de pessoas em cooperação social eqüitativa); d) enquanto a filosofia de Kant pode ser tomada como uma apologia da racionalidade (coerência e unidade da razão nos seus usos teórico e prático, tese dos dois mundos opondo e compatibilizando natureza e liberdade), a teoria de Rawls apenas desvela o fundamento público da justificação em questões de justiça política." (Oliveira, 2003, 29-30)

Ora, este "construtivismo político" irá, assim, possibilitar o fechamento da "teoria não-ideal" (ou teoria do bom) da terceira parte de sua obra, que estabelece um procedimento constitutivo e regulador de uma associação de sujeitos auto-interessados. O construtivismo político, deste modo formulado, é capaz de escapar da necessidade de formulação de uma doutrina moral abrangente, ao mesmo tempo em que funda uma comunidade política sob uma ética deontológica, preservando a autonomia do sujeito pela posição original.

O construtivismo político oportuniza a Rawls prescindir de uma concepção de natureza humana voltada a um fim. Toda a teleologia é afastada pelos princípios deontológicos e procedimentais da posição original. Uma vez adotados e observados os princípios, cada indivíduo é livre para seguir o objetivo que bem desejar, isso torna todos potencialmente livres e iguais forjando uma sociedade na qual a razão pública se adapta àquilo que o autor chamou numa obra posterior (Rawls, 2003), o "fato do pluralismo" – o relativismo é, deste modo, explicitamente assumido.


4.Análise crítica.

O objetivo principal da teoria de Rawls é reeditar uma teoria contratualista – cara ao individualismo liberal – que seja capaz de fazer frente aos reclamos da justiça distributiva, especificamente ao Utilitarismo.

Com efeito! Uma das maiores críticas desferidas ao liberalismo é a de que o mesmo não oferece nenhum mecanismo de distribuição dos bens primários. Rawls procura, assim, conciliar uma concepção individualista de ser humano, cujo postulado é o de que o indivíduo precede a sociedade e possui identidade independente de qualquer vínculo comunitário (Barzotto, 2003, 24), possui uma essência desenraizada, portanto, com uma concepção de sociedade que visa um bem comum: a maior liberdade e a maior igualdade possíveis aos indivíduos. Com o mecanismo dos princípios da justiça associados a alguma recorrência à vínculos comunitários, Rawls pretende fundar uma teoria que prescinda da formulação de um bem comum substancial, uma teoria teleológica, pondo-se à margem do utilitarismo e do jusnaturalismo clássico, mas tal teoria é realmente coerente? Há como fundar uma "justiça como eqüidade" abrindo mão de uma concepção de natureza humana, seja ela deontológica ou teleológica?

Em que pese a reconhecível coerência interna da teoria de Rawls, um de seus fundamentos põe por terra sua pretensão de validade. Assim é que a antropologia de rawlsiana [não assumida pelo autor, mas existente no interior de sua teoria] é incompatível com a tentativa de igualdade distributiva interna à teoria. Ao conceber o indivíduo isolado da comunidade e, a priori, indiferente a qualquer idéia de bem comum e contexto, Rawls não tem como fundamentar uma coesão ou integração de um grupo social qualquer, ou mesmo da sociedade como um todo. Se o indivíduo auto-interessado precede a sociedade, não há como ser estabelecido um vínculo social capaz de assegurar uma distribuição eqüitativa de bens.

Por outro lado, a concepção normativista de sujeito, distinguindo o "eu" de seus fins, não é capaz de engendrar uma sociedade de sujeitos reais. A terceira parte da teoria de Rawls, a "teoria quase-ideal", é, na verdade, a mais ideal, a mais fantasiosa, porque pretende, pela concepção atomista de sujeito, que na sociedade real, os indivíduos, depois de tomarem consciência de sua situação real, mantenham os princípios de justiça acordados sob o véu da ignorância. Entretanto, resta patente que um "sujeito radicalmente desencarnado", que não compartilha com os outros uma forma de vida, não tem porque perseguir outro fim que não seu auto-interesse.

O atomismo só pode conduzi-nos ao relativismo de valores e este, por sua vez, é incompatível com a observância de princípios de justiça previamente estabelecidos. Tais princípios sufocariam a liberdade que Rawls pretende manter na medida em que implicam na adesão a valores compartilhados, valores universais (liberdade, auto-interesse, propriedade privada). Rawls sofre, assim, duas críticas certeiras. A primeira, dos comunitaristas como Charles Taylor (1997, passim), Michael Sandel (2005, passim) e Alasdair MacIntyre (2003, passim), que apontam a impossibilidade do atomismo jusnaturalista em garantir um vínculo social efetivo, vez que prescinde da noção de bem comum e, assim, não possui um efetivo critério de igualdade para pôr em prática. A segunda, ilustrada pelo "Liberalismo liberal" de Ronald Dworkin, que aponta a incompatibilidade do atomismo com o contratualismo jusnaturalista. Dworkin afirma que os indivíduos reais, já que auto-interessados, não têm motivos para submeter sua vontade a um acordo hipotético, mas sim somente a um acordo atual, através de um construtivismo de princípios que se opõe à ontologia que Rawls parece parcialmente preservar. Para ser coerente com o postulado da liberdade, não se pode concebê-la com base num acordo hipotético mas sim com base na construção atual de princípios, ou seja, não há sentido no fato de um sujeito "auto-interessado" (a não ser que tenha uma concepção de bem comum compartilhada, o que não é o caso), respeitar princípios que o desfavoreçam tão-somente pelo motivo de que estes foram acordados numa situação hipotética. Indivíduos coerentes em seu auto-interesse buscariam rediscutir esses princípios (Dworkin, 2001, 168-183).

4.2.A concepção de sociedade decorrente do atomismo.

O desdobramento do atomismo em Rawls é a concepção de sociedade que procura prescindir de uma noção substancial do bem comum. E aí cabe a pergunta: pode realmente prescindir do bem comum?

A justiça como imparcialidade pode garantir um critério justo de distribuição de bens negando qualquer doutrina moral abrangente? Mais uma vez o fantasma do atomismo atormenta Rawls e o leva à inconsistência, pois onde não existe bem comum não pode haver igualdade pela própria falta de critério de igualdade. Por isso, o primeiro princípio da justiça, o da liberdade individual, tem prevalência sobre o segundo, o da igualdade de oportunidades, porque, de fato, o que a teoria consegue assegurar, sem que com isso caia em contradições, é a liberdade do indivíduo contra a sociedade, inserindo-se, assim, na tradição liberal individualista.

De resto, este parece ser o objetivo de toda a teoria que se insere na tradição liberal: garantir que o indivíduo não sofra a interferência do Estado, seu inimigo.


5.Conclusão.

Conforme visto acima, a antropologia rawlsiana não é capaz de assegurar a coerência interna dos conceitos da justiça como eqüidade. Ao contrário do que o autor inicialmente propõe, a "justiça como eqüidade" põe, na verdade, a igualdade a serviço da liberdade individual e não possui um critério substancial de distribuição de bens e, portanto, não cumpre sua proposta de construir uma sociedade bem-ordenada – até porque a concepção do que seja uma "sociedade bem ordenada" não pode prescindir de uma teleologia.

Destarte, o máximo que a imparcialidade da teoria da justiça consegue propor é uma arena com regras que assegurar a liberdade individual de sujeitos auto-interessados que não compartilham uma noção de bem comum e isso está longe de uma "sociedade bem ordenada" capaz de fornecer um critério de "eqüidade".


6.Referências Bibliográficas.

BARZOTTO, L. F. A Democracia na Constituição. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003(a).

DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously, 18ª Edição. Massachusetts: Harvard Universty Press, 2001.

MACINTYRE, Alasdair. After Virtue. 2ª Edição. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2003.

OLIVEIRA, Nythamar Fernandes de. Tractatus ethico-politicus. Genealogia do ethos moderno. Porto Alegre: Edipucrs, 1999.

__________, Rawls. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2003.

RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Lisboa: Editora Presença, 1993.

__________, O Liberalismo Político, 2ª edição. São Paulo: Editora Ática, 2000.

SANDEL, Michael J. O Liberalismo e os Limites da Justiça. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005.

TAYLOR, Charles. As Fontes do Self. São Paulo: Editora Loyola, 1997.

VILLEY, Michel. Filosofia Do Direito: Definições e fins do direito. Os meios do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003.


Notas

  1. Charles Taylor (1997, p. 191), ao identificar já em Descartes essa "virada para o interior", assim descreve esse processo (itálicos no original):
  2. "(...) Agora é preciso construir uma representação da realidade. Assim como a noção de ‘idéia’ emigra de seu sentido ôntico para aplicar-se a conteúdos intrapsíquicos, a ‘coisas da mente’, assim também a ordem das idéias deixa de ser algo que descobrimos e passa a ser algo que construímos. Além disso, as exigências dessa construção incluem sua correta equiparação com a realidade externa, mas também vão além disso. Como argumentou Descartes de forma muito convincente, as representações adquirem o status de conhecimento não apenas por ser corretas, mas também por gerar certeza. Não existe conhecimento real quando tenho muitas idéias na cabeça que por acaso correspondem às coisas lá forma se não tenho também uma confiança bem fundamentada nelas. Mas, para Descartes, a certeza bem fundamentada decorre de a matéria apresentar-se a nós sob certa luz, na qual a verdade fica tão clara que é inegável, o que ele chama de évidence. ‘Toute science est une connaissance ceraine et évidente’ é a frase de abertura de seu Regulae ad directionem ingenii."

  3. Reportamo-nos ao nominalismo enquanto reconhecimento da existência real apenas de seres singulares. Michel Villey (2003, p. 132), conceitua a postura nominalista do seguinte modo (itálicos no original):

"(...) Sem dúvida porque íntimos de uma literatura judaico-cristã em que só entram em jogo pessoas, os nominalistas só reconhecem a existência real a seres singulares. Sócrates, Pedro ou Paulo. Quanto aos termos universais (‘cidadão de Atenas’) não se poderia dizer que lhes corresponda um objeto real. Que tenham a função de designar imediatamente uma coisa. São instrumentos lingüísticos que nos servem para ‘conotar’ (o que significa notar ao mesmo tempo – simultaneamente, num só relance) uma pluralidade de objetos que tenham entre si alguma semelhança. Assim, pelo termo ‘cidadão de Atenas’ designo ao mesmo tempo Sócrates, Alcibíades, Platão, etc. É uma economia de linguagem."

"Disso decorre que os ‘universais’ não têm uma existência para além da mental e instrumental; e nós os forjamos livremente. Não lhes pedimos sejam verdadeiros (quer dizer, reais adequados ao real), mas que nos ajudem a raciocinar, que possibilitem operações sobre os fenômenos singulares, que sejam simplesmente ‘operatórios’, como dizem os estudiosos atuais."


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BORGES, Charles Irapuan Ferreira. Breve introdução à teoria da Justiça de John Rawls. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2096, 28 mar. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12549. Acesso em: 29 mar. 2024.