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A questão da inimputabilidade por doença mental e a aplicação das medidas de segurança no ordenamento jurídico atual

A questão da inimputabilidade por doença mental e a aplicação das medidas de segurança no ordenamento jurídico atual

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O objetivo é verificar se o tratamento dispensado ao inimputável pelo Estado Democrático de Direito está de acordo com o estabelecido em lei, evidenciando o descaso político e social com relação ao doente mental infrator.

INTRODUÇÃO

O final do século XX e o início do século XXI, no Brasil, foram marcados por um aumento assustador no número de conflitos de relações inter-pessoais entre os grupos sociais, provocando um somatório alarmante de violência.

A crescente criminalidade assumiu requintes de crueldade e perversidade, tornando difícil considerar que determinados delitos são oriundos de pessoas providas de saúde mental e capacidade de entendimento e determinação.

O Estado, por sua vez, tende a punir os infratores da lei, jus puniendi, sem demonstrar qualquer preocupação em conhecê-los, para que outras medidas sejam aplicadas, além daquelas que visam somente à punição.

No ordenamento atual, as legislações civil e penal estabelecem que a saúde mental e a maturidade psíquica são requisitos para a capacidade civil e responsabilização penal do indivíduo. Nesse sentido, o portador de doença mental que, ao tempo do crime, era inteiramente incapaz de entender a ilicitude do ato ou de determinar-se de acordo com ele, está isento de pena e deve ser submetido à medida de segurança, cuja finalidade é curativa e preventiva.

O presente artigo consiste numa abordagem crítica acerca do instituto da inimputabilidade por doença mental, prevista no art. 26 do Código Penal, seus aspectos legais e implicações no mundo jurídico e social. Buscou-se identificar quem são os inimputáveis por doença mental no sistema penal brasileiro e qual o atual tratamento dispensado a eles.

Nesse contexto, foram analisadas as medidas de segurança no ordenamento pátrio, evidenciando as políticas públicas que, por lei, deveriam ser criadas para a execução desta espécie de sanção penal.

O objetivo é verificar se o tratamento dispensado ao inimputável pelo Estado Democrático de Direito está de acordo com o estabelecido em lei, evidenciando o descaso político e social com relação ao doente mental infrator.


1. A EVOLUÇÃO HISTÓRICA E SOCIAL DO DIREITO PENAL:

O estudo da inimputabilidade penal do doente mental requer, de início, uma abordagem sucinta acerca da evolução histórica do Direito Penal, para remontar as bases clássicas que buscaram conceituar o crime e definir seus requisitos estruturais.

A Teoria Geral do Crime, também chamada Teoria do Delito, Teoria do Injusto Penal ou do Fato Punível, tem por objeto o estudo dos elementos constitutivos e caracterizadores do ilícito penal, pressupostos legais para a aplicação da sanção penal pelo Estado, seja na espécie pena ou medida de segurança.

O legislador pátrio não conceituou crime no Código Penal, somente preocupando-se em diferenciá-lo das contravenções penais. A doutrina, por seu turno, tem se esforçado para estabelecer um conceito abrangente de delito, tomando como base a evolução do pensamento clássico que permeou a ciência criminal.

Na evolução histórica e social do Direito Penal, predominaram três conceitos de crime mais difundidos e aceitos pelas escolas penais: formal, material e analítico.

Sob a ótica formalista, crime será tudo aquilo que o Estado assim definir por meio de lei. Para que alguém cometa crime, portanto, basta realizar a conduta típica descrita na lei. A teoria material, por sua vez, considera crime toda conduta humana que viola os bens jurídicos considerados fundamentais pela sociedade e que necessitam da tutela do Estado.

Ao longo dos anos, as teorias formal e material sofreram modificações até chegar-se no conceito analítico, que considera como delito todo o fato típico e ilícito. Essa corrente preocupou-se em definir os elementos estruturais do delito. Estando presentes esses dois requisitos, tem-se o crime, cuja estrutura é bipartida.

Todavia, a tendência da doutrina hodierna é enquadrar a culpabilidade como o terceiro elemento estrutural do crime. Esse é o entendimento de Rogério Greco, Cézar Roberto Bitencourt e Guilherme Nucci, que defendem a divisão tripartida da teoria analítica, afirmando que delito é toda ação típica, antijurídica e culpável.

Parte minoritária da doutrina, por sua vez, não considera a culpabilidade como parte integrante do delito, afirmando que essa também é a posição do codex, uma vez que os arts. 1º, 23 e incisos, dispõem que, sem tipicidade e ilicitude, não há crime, ao passo que o art. 26, caput, por sua vez, quando trata de causa excludente de culpabilidade, estabelece as hipóteses em que o agente deverá ser isento de pena, sem desconsiderar a existência do crime.

A questão ainda é controvertida. Neste trabalho, compactua-se com o entendimento que considera a culpabilidade como elemento do crime, uma vez que esta representa o aspecto subjetivo do ilícito, isto é, a vontade de delinqüir ou o entendimento do indivíduo acerca da prática criminosa e a capacidade de determinar-se nesse sentido.

Sem o livre-arbítrio de agir criminosamente e sem a potencial consciência da ilicitude, o juízo de reprovação que deveria recair sobre o autor do fato delituoso, deixa de existir. Nessa lógica, não faz sentido considerar criminosa a conduta de um agente inimputável, se esta não é passível de reprovação ou censura.

No Código Penal, o tipo incriminador é formado pela descrição da conduta, seguida da respectiva pena, o que leva à conclusão de que crime é aquilo que a sociedade deseja ver punido com pena, e não, com sanção diversa. Se crime é fato típico e ilícito, merecedor de punição pelo Estado, a culpabilidade é o fundamento legal pelo qual o jus puniendi deverá agir. Desconsiderar a culpabilidade como elemento do crime é ignorar o agente humano que pratica a conduta. E não há delito sem reprovação ou censura social.

Perfilhando desse entendimento, Nucci (2007) sustenta que um fato típico e antijurídico, ausente a culpabilidade, não é crime, e sim, ilícito de natureza diversa. Na concepção deste autor, a conduta típica e ilícita praticada por um inimputável deveria ser classificada como um injusto penal, ao invés de crime, uma vez que, nesse caso, a sanção recomendada é a medida de segurança, e não a pena, como ocorre nos delitos praticados por imputáveis.


2. DA CULPABILIDADE:

Enquanto terceiro elemento integrante do crime, a culpabilidade é o juízo de reprovação ou de censurabilidade que recai sobre a conduta típica e ilícita, através da qual será possível culpar e punir o agente pela prática de um crime. São elementos da culpabilidade, segundo o Código Penal Brasileiro: a imputabilidade, a potencial consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa.

Por imputabilidade define-se como a capacidade do agente em entender o caráter ilícito do fato praticado e de determinar-se de acordo com isso. O autor de um crime, para ser considerado culpável, deve reunir condições físicas, psicológicas, morais e mentais que lhe confiram capacidade plena para entender o ilícito. Não basta, para isso, somente a consciência de sua ação, mas também a livre vontade de praticá-la, ou seja, o controle do agente sobre a sua própria vontade.

Essa capacidade está relacionada à existência de fatores biológicos (maioridade penal), psiquiátricos (sanidade mental), psicológicos (discernimento pleno e voluntariedade) e até antropológicos (entendimento dos padrões sócio-culturais que predominam num meio social determinado).

No Código Penal, a imputabilidade foi introduzida no Título III, pela rubrica "Da Imputabilidade Penal" e os arts. 26 a 28 tratam da matéria. O legislador brasileiro adotou a técnica da afirmação negativa, preferindo conceituar o inimputável para, inversamente, definir o imputável. Será imputável aquele que não for inimputável, segundo o codex. Apesar da lei penal não ter definido um conceito positivo de imputabilidade, estabeleceu as hipóteses em que esta não será verificada.

A potencial consciência da ilicitude, por sua vez, é o conhecimento inequívoco do agente criminoso acerca da tipicidade e ilicitude de sua conduta. Para tanto, é essencial que disponha de sanidade mental plena e discernimento, que possam auferir-lhe a possibilidade de saber que praticou algo errado ou injusto.

Para que alguém seja considerado culpável por um crime, é também necessário que o tenha praticado em condições normais e em situação não-adversa, na qual era possível exigir do autor conduta diversa da criminosa, isto é, o agente criminoso teve a chance de praticar comportamento diverso do adotado, todavia, optou pelo caminho do crime.

2.1. DA VERIFICAÇÃO DA INIMPUTABILIDADE:

No ordenamento jurídico, a inimputabilidade não pode ser presumida. Tem de ser provada por meio de perícia e em condições de absoluta certeza. São três os sistemas de aferição da inimputabilidade: biológico, psicológico e misto ou biopsicológico.

O codex, em seu art. 26, adotou o sistema híbrido denominado de biopsicológico, que combina os dois critérios anteriores. Primeiramente, deve-se verificar se o agente, ao tempo da ação/omissão, era portador de doença ou desenvolvimento mental retardado ou incompleto. Caso negativo, não será inimputável. Se, positivo, verifica-se se era capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com essa consciência.

Somente depois de averiguadas e constatadas ao menos uma dessas duas hipóteses, é que será atribuída a inimputabilidade ao indivíduo. A inimputabilidade, portanto, deve existir na ocasião do delito, pois a superveniência de enfermidade mental depois do cometimento do crime, não exclui a culpabilidade.

No que concerne às causas excludentes de culpabilidade, estão divididas em dois grupos no Código Penal: relativas à pessoa do agente e ao fato criminoso. Quanto ao agente, podem ser por: doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado (art. 26, caput [01]), por embriaguez decorrente de vício e, ainda, por menoridade (art. 27).

O art. 26 isenta de pena o indivíduo que pratica ato típico e ilícito quando, no momento da ação/omissão delitiva, era portador de doença mental ou desenvolvimento mental incompleto (menoridade ou retardado), e era completamente incapaz de compreender a ilicitude de sua conduta ou de determinar-se de acordo com ela.

Ou seja, para ser inimputável, não basta a pré-existência de doença ou capacidade mental incompleta ou retardada. Exige-se, também, que, ao tempo da ação ou omissão, o agente, em razão da enfermidade, não tenha sido capaz de compreender o fato criminoso, ou, caso o fosse, não conseguiu controlar o impulso delitivo.

Nessa lógica, a inimputabilidade, para ser reconhecida, exige a presença dos requisitos causal (doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado), cronológico (ao tempo da ação ou da omissão) e consequencial (inteira incapacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com ele).

Excetua-se dessa regra o indivíduo que, voluntariamente, coloca-se em estado de inimputabilidade, com vistas a cometer o delito. Nestes casos, deve vigorar o princípio da Actio Libera in Causa, segundo o qual se presume o ato delitivo no momento da tomada da decisão pelo agente. É o caso do salva-vidas que, objetivando omitir-se do dever legal de agir, ingere substâncias entorpecentes de maneira voluntária e se mantém inerte diante do afogamento de uma criança.

A incapacidade de entendimento da ilicitude do fato ou de autodeterminação diante da conduta criminosa, portanto, constituem requisitos da inimputabilidade. O parágrafo único do art. 26, por sua vez, admitiu a hipótese da imputabilidade parcial ou semi-imputabilidade, quando o indivíduo possui meia consciência da ilicitude ou da liberdade de agir. São os casos fronteiriços, em que o agente tem sua capacidade diminuída.

Nesta hipótese, a pena pode ser reduzida de um a dois terços se o mesmo, em virtude de perturbação da saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado, não era inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se nesse entendimento.

O citado dispositivo, ao tratar da semi-imputabilidade, emprega a expressão "perturbação de saúde mental", no lugar de doença mental, o que constitui um minus, isto é, uma mera turbação na capacidade intelectiva e volitiva, onde há perda parcial da capacidade de entender e de querer.

Verificada a semi-imputabilidade, o juiz terá duas opções: reduzir a pena de 1/3 a 2/3, ou impor medida de segurança, o que não exclui a imputabilidade do agente, pois, nesse último caso, a sentença continuará sendo condenatória, o que não acontece com os inimputáveis, cuja medida aplicável é a absolvição imprópria. A escolha por medida de segurança dependerá do entendimento do juiz acerca do laudo pericial, quando assim recomendar.


3. DA INIMPUTABILIDADE POR DOENÇA MENTAL:

Conforme visto, o Código Penal vigente, ao tratar da inimputabilidade por anormalidade mental, adotou o sistema misto ou biopsicológico, segundo o qual não basta a existência da doença para isentar o agente da pena.

Exige-se, primeiramente, a existência do elemento biológico, de natureza patológica, que é a enfermidade mental. O segundo elemento é o cronológico/temporal, ou seja, o autor, no momento do crime, em razão da doença da qual é portador, precisa apresentar um estado de anormalidade psíquica que o torne incapaz de entender o sentido ético-jurídico de sua conduta ou, caso tenha esse entendimento, ter a doença e seu estado de perturbação psíquica eliminado a sua capacidade volitiva. Em suma, é necessário que a anormalidade cause o vício de entendimento e de vontade.

Em Medicina, o estudo das doenças mentais chama-se Patologia Mental ou Psiquiatria. Toda doença tem causa infecciosa, tóxica, orgânica, psíquica e outras.

Entre as causas biopsicossociais que podem levar à irresponsabilidade penal, está a doença mental. O estudo dos transtornos mentais se faz necessário uma vez que, na prática, verifica-se que os operadores do Direito enfrentam dificuldades ao tratar do assunto, posto que, em sua maioria, são leigos e fazem confusão entre os conceitos de doença mental (de origem biopsicossocial), as anomalias advindas de retardo mental (origem biológica) e os desvios de personalidade (de origem psicossocial), o que acaba por prejudicar o réu e a correta aplicação da lei ao caso concreto.

Nesse sentido, nem todo criminoso sexual, por exemplo, será portador de doença mental, mas sim, de transtorno de personalidade, que nem sempre é sinônimo de loucura.

No entendimento de Nucci (2007), o conceito de doença mental deve ser analisado em sentido lato, abrangendo tanto as doenças de origem patológica, como as de origem toxicológica.

O médico Hélio Gomes, por sua vez, em Medicina Legal, referiu:

[...] as codificações sempre lutaram com grandes dificuldades toda vez que tiveram de fazer referências aos doentes mentais. Não há na Psiquiatria uniformidade entre os autores a respeito do sentido exato das expressões que usa e emprega. Essa falta de uniformidade entre os técnicos não poderia deixar de se refletir sobre os leigos, que são, em geral, os legisladores, a respeito das questões psiquiátricas. (GOMES, 1995, p. 799-800).

É por esse motivo que deveria ser obrigatória na grade curricular dos cursos de graduação em Direito, o estudo da Medicina Legal, bem como da Psicologia Jurídica, dada a complexidade do instituto da inimputabilidade penal.

O Código Criminal do Império, ao referir-se aos inimputáveis por doença mental, utilizou a expressão "loucos de todo o gênero". A aludida expressão, bem como outras que a sucederam, tais como "imbecilidade nativa", foram alvo de muitas críticas, não somente por estarem incorretas, do ponto de vista médico, mas por serem preconceituosas e pejorativas.

O codex atual, em seu art. 26, utiliza as expressões "agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado [...]". Em seguida, no parágrafo único deste dispositivo, ao tratar da semi-imputabilidade, dispõe que "a pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental [...]".

A expressão doença mental disposta no CP, recebeu fervorosas críticas de doutrinadores que se opõem ao sentido genérico do termo, o qual abriga uma diversidade de transtornos, razão pela qual, acaba dificultando a identificação da doença quando da análise do caso concreto.

Entre esses autores está Leiria (1980), segundo o qual, o conceito psiquiátrico de doença mental, embora sirva de base para a formulação do conceito jurídico, nem sempre coincide exatamente com este. Igualmente, não é de se confundir a perturbação da saúde mental, com a doença mental propriamente dita. Nas enfermidades psíquicas, há sempre uma perturbação da saúde mental, mas tais perturbações nem sempre decorrem de uma doença mental, na concepção científica do termo.

Segundo Ponte (2007), o termo doença mental, na seara penal, engloba todas as alterações mórbidas da saúde mental, independentemente da causa, referindo-se tanto às psicoses endógenas ou congênitas, como também às neuroses e aos transtornos psicossomáticos.

De acordo com a Psiquiatria, são consideradas doenças mentais as chamadas psicoses. O psicótico costuma apresentar perda de contato com a realidade e sintomas produtivos, tais como delírios e alucinações. A grave alteração da consciência é capaz de provocar no indivíduo o efeito de estar sempre convicto da verdade, o que o impede de ver a realidade dos fatos.

A psicose pode ter origem orgânica (disfunções cerebrais) ou funcional (psicológica ou comportamental). São exemplos de psicose: a) esquizofrenia, b) transtorno bipolar de humor, c) paranóia.

Também podem ser consideradas doenças mentais o alcoolismo e a toxicomania.

A Lei Penal isenta de pena o agente que, em razão de dependência química, ou sob o efeito de substância psicotrópica, proveniente de caso fortuito ou força maior, comete crime. (art. 28, § 1º, II).

Se o indivíduo, ao tempo da ação/omissão, possuía capacidade parcial de entendimento ou determinação, a pena é reduzida, conforme o § 2º do referido dispositivo. A embriaguez voluntária ou culposa, no entanto, não exclui a imputabilidade. O indivíduo responde pela conduta criminosa como se sóbrio estivesse.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) considera o alcoolismo uma doença física, espiritual e mental. A Psiquiatria hodierna entende que o alcoólatra (patológico) não merece ser tratado como criminoso e deve ser isento de pena. Enquanto doença mental, a embriaguez patológica do agente (psicose alcoólica), caso detectada, constitui causa de exclusão da imputabilidade.

Com relação aos dependentes de drogas ilícitas, a Lei nº. 11.343/06, em seu art. 28, deixou de prever pena privativa de liberdade ao usuário de drogas, que deverá ser submetido a medidas educativas. O dependente químico, em razão do vício, tem diminuída sua capacidade de entendimento e de autodeterminação. E caso provada a dependência física e psíquica com relação ao tóxico, poderá ser isento de pena se cometer um crime, sendo submetido à medida de segurança.

É necessário, todavia, averiguar o grau de dependência do agente e suas condições subjetivas no momento do crime, pois nem todo usuário de entorpecentes é um irresponsável penal. Alguns autores consideram que o dependente leve é responsável, o moderado semi-imputável e o gravemente dependente um inimputável.

Para Führer (2000), a dependência capaz de gerar a inimputabilidade é aquela que induz o dependente à falta de conhecimento e entendimento do ilícito ou à incapacidade de controlar a sua vontade.

Ao lado da doença mental, entre as causas que excluem a imputabilidade do agente está o desenvolvimento mental retardado ou incompleto. São os casos em que a capacidade mental do indivíduo é incompatível com o estágio de vida em que se encontra, estando aquém do desenvolvimento normal para sua idade cronológica. Em razão da baixa capacidade mental, fica impossibilitado de avaliar racionalmente as situações da vida e, por conseguinte, é inimputável por não possuir o pleno entendimento e discernimento acerca de seus atos. Cita-se como exemplo os oligofrênicos e os portadores da Síndrome de Down.

Também estão enquadrados nesta hipótese, aqueles que ainda não amadureceram por falta de tempo, em razão da pouca idade cronológica (menoridade) ou da falta de convivência em sociedade (silvícolas).

Ponte (2007) estabeleceu a diferença entre desenvolvimento mental retardado e doença mental, referindo que esta abrange todas as manifestações mórbidas do funcionamento psíquico, impedindo o indivíduo de adaptar-se às normas reguladoras da vida em sociedade. Desenvolvimento mental retardado, por sua vez, dirige-se àqueles que não alcançaram um estágio de maturidade psicológica razoável, ou que, por causas patogênicas ou do meio ambiente em que vivem, tiveram retardado o desenvolvimento de suas faculdades mentais.

Há ainda que se falar nos chamados transtornos de personalidade anti-social. Segundo a definição de França (1998), são grupos nosológicos que se distinguem por um estado psíquico, capaz de determinar profundas modificações no caráter e no afeto. Não são, essencialmente, personalidades doentes ou patológicas, pois seu traço mais marcante é a perturbação da afetividade e do caráter, enquanto a inteligência se mantém normal ou acima do normal.

Em se tratando de personalidades psicopáticas, a grande polêmica diz respeito ao parágrafo único, do art. 26, da Lei Penal, que define esses indivíduos como semi-imputáveis.

Os perturbados mentais ou detentores de personalidades anormais ou desajustadas, não são, propriamente, portadores de doença mental. A Lei os considera semi-imputáveis pela capacidade de entendimento e posição fronteiriça com os enfermos mentais, o que constitui um grande equívoco, pois a realidade tem mostrado que os portadores de personalidades psicopáticas estão por trás da maioria dos crimes considerados bárbaros, com alto grau de violência e perversidade.

Os psicopatas, embora desprovidos de doença mental de origem orgânica, são fruto do meio social hostil em que vivem e acabam por desenvolver personalidades desajustadas, em razão de traumas sofridos e em decorrência de anomalias do caráter e do afeto. Das situações adversas, incorporaram à sua psiquê valores amorais e nocivos. Como disse França (1998), são privados do senso ético, deformados de sentimentos e inconscientes da culpabilidade e do remorso.

Embora providos de inteligência e capacidade de entendimento, são incapazes de controlar seus impulsos e de autogovernar-se, sendo carentes de um dos principais elementos da imputabilidade que é a capacidade de se determinar (vício de vontade).

São esses indivíduos que deveriam, na ordem penal, serem isentos de pena e submetidos a tratamento curativo nos hospitais de custódia, posto que suas anomalias raramente têm cura. São pessoas anti-sociais, com elevado grau de periculosidade.

Infelizmente, na prática, os aplicadores do Direito, ao arrepio da lei e por razões preconceituosas, acabam condenando o psicopata para cumprir pena privativa de liberdade nos estabelecimentos prisionais, onde convivem juntamente com os criminosos imputáveis e mentalmente sãos.

O resultado é desastroso, pois esses indivíduos, portadores de desvio de personalidade, após cumprirem as suas penas, retornam à sociedade ainda mais periculosos do que antes e, fatalmente, voltam a delinqüir. Ao passo que, se fossem considerados inimputáveis e recebessem medida de segurança, poderiam ficar perpetuamente sob tratamento, caso não fosse atestada, por perícia médica, a sua cura.

O citado parágrafo único do art. 26 do CP, ao colocar os indivíduos sociopatas na condição de responsáveis relativos, preconiza que fazem jus a uma atenuação sensível da pena. A situação é digna de insegurança jurídica.

Conforme visto, é possível a ocorrência da semi-imputabilidade. No entanto, seria mais sensato que o art. 26 do Código Penal fosse alterado, a fim de incluir, expressamente, ao lado dos portadores de doença mental e de desenvolvimento mental incompleto ou retardado, os indivíduos portadores de transtornos de personalidade anti-social, posto que também se enquadram nos casos de inimputabilidade e isenção de pena.

Com relação ao tratamento penal dispensado a esses indivíduos, o médico-legista Genival Veloso de França, em Medicina Legal, defende que:

A pena está totalmente descartada pelo seu caráter inadequado à recuperação e ressocialização do semi-imputável portador de personalidade anormal. A substituição do sistema do duplo binário – aplicação sucessiva da pena e da medida de segurança por tempo indeterminado – pelo regime de internação para tratamento especializado é o que melhor se dispõe até agora no sistema penal dito moderno. Este é um dos aspectos mais cruciais da Psiquiatria Médico-Legal, não somente no que toca ao diagnóstico e à atribuição da responsabilidade, como também quanto às perspectivas de reabilitação médica e social, já que a incidência criminal entre esses tipos é por demais elevada. As medidas punitivas, corretivas e educadoras, malgrado todo esforço, mostram-se ineficientes e contraproducentes, fundamentalmente levando em consideração a evidente falência das instituições especializadas. É preciso rever toda essa metodologia opressiva, injusta e deformadora. (FRANÇA, 1998, p. 359).

Para Führer (2000), a expressão "perturbação da saúde mental", utilizada pelo Código para tratar do semi-imputável, em verdade, equivale à doença mental, muito embora algumas perturbações mentais não mereçam o nome de doença.

O mencionado autor defende que, atualmente, a distinção entre doença e perturbação mental não é inflexível, pois o conceito jurídico de doença mental é abrangente e se estende aos estados próximos, de modo que toda doença mental perturba a saúde mental, e toda perturbação da saúde mental deve receber tratamento de doença, no mundo do Direito.

É sensato que, no âmbito jurídico, o conceito de doença mental seja elástico. Entretanto, seria mais prudente incluir, no rol dos inimputáveis do art. 26, a expressão "portadores de transtorno de personalidade".

Em se tratando de causas que excluem a imputabilidade, cabe ressaltar que o Código Penal, em seu art. 28, inciso I, não excluiu a imputabilidade do agente que, em estado de paixão ou forte emoção, comete crime. No entanto, atenua a pena daquele que pratica um delito em estado de violenta emoção.

A emoção altera a consciência e a vontade, podendo influir na capacidade de discernimento das pessoas. Marques (1997) equipara a paixão à doença mental, quando afirma que se a emoção ou paixão tiverem caráter patológico, a hipótese se enquadrará no art. 26, caput, do CP.


4. IDENTIFICAÇÃO DA INIMPUTABILIDADE: PERÍCIA MÉDICO-LEGAL:

O ordenamento jurídico pátrio adotou o princípio do livre convencimento motivado, no qual permite ao juiz julgar de acordo com o seu arbítrio, desde que o faça fundamentadamente. O Código de Processo Penal, por sua vez, incorporou o princípio da não hierarquia entre as provas processuais, colocando, no mesmo patamar valorativo, a prova científica e a testemunhal, por exemplo.

Muito embora o juiz seja livre para julgar de acordo com o seu convencimento, em se tratando de inimputabilidade por doença mental, a Lei Adjetiva determinou que a verificação da saúde mental do agente deve, obrigatoriamente, ser diagnosticada por perícia médica. O legislador entendeu que o juiz não é suficientemente apto para verificar e atestar a inimputabilidade do réu, o que requer conhecimentos específicos que, na maioria das vezes, fogem ao magistrado.

Os exames de corpo de delito e as perícias médico-legais estão previstos nos artigos 158 a 184, Capítulo II, do CPP. A finalidade da perícia é produzir uma prova científica a fim de demonstrar um fato. Ponte (2007) esclarece que existem dois sistemas jurídicos que regem a avaliação da perícia pelo juiz: o vinculatório e o liberatório. Pelo primeiro, o magistrado está subordinado às conclusões periciais, enquanto que no segundo, o juiz tem a prerrogativa de rejeitar o laudo pericial ou de acolhê-lo no todo ou em parte.

O Código Processual Penal adotou o sistema liberatório. Importante observar o contexto histórico em que o codex entrou em vigor, através do Decreto-Lei nº 3.639/41, em plena ditadura militar. É sabido que os governos ditatoriais têm como característica o autoritarismo e o desrespeito aos direitos e garantias individuais. O fato de o juiz poder rejeitar a prova científica, naquela época, era conveniente para respaldar as arbitrariedades do governo de exceção.

Atualmente, embora ainda vigore o princípio da não hierarquia entre as provas penais, o juiz, para acatar ou rejeitar um laudo que ateste a inimputabilidade do acusado, é obrigado a fundamentar sua decisão de forma precisa e coerente. Como aduziu Ponte (2007), o poder que a lei lhe confere de não ficar adstrito ao laudo pericial, não quer dizer que possa assumir as funções de expert. O juiz não pode ignorar a perícia sem embasamento científico.

Todavia, caso o magistrado entenda que o laudo pericial é falho, genérico ou incompleto, pode requisitar a retificação. Destarte, não lhe é permitido afastar o laudo como se esse não existisse, nem proferir opiniões pessoais que se sobreponham ao conhecimento científico e irrefutável dos peritos.

Não se pretende, com isso, afirmar que o perito está sempre certo, posto que, como ser humano está passível de erros e ainda de suspeição e impedimento. Por isso, o juiz deve ficar atento ao procedimento da perícia, verificando se obedeceu aos requisitos legais.

As perícias são realizadas nas instituições médico-legais, consideradas órgãos ou entidades públicas oficiais do Estado, ou, por profissionais médicos ou liberais de nível superior da área da saúde (peritos não-oficiais), nestes casos, nomeados pelo delegado de Polícia que presidir o inquérito.

No Estado do Pará, no ano de 2000, o órgão público responsável pelas perícias oficiais ganhou autonomia técnica, científica e orçamentária, tornando-se a primeira autarquia pericial do Brasil. A mudança de órgão para entidade pública, dotada de personalidade jurídica própria, representou um avanço na garantia de imparcialidade dos exames de corpo de delito produzidos no Estado, uma vez que se desvinculou da Polícia Civil.

Os laudos produzidos pelos órgãos ou entidades públicas oficiais gozam de presunção relativa de veracidade e idoneidade, até que se prove o contrário.

As perícias podem ser realizadas em pessoas vivas ou mortas, em animais e nos objetos. Exame de corpo de delito é o nome genérico que se dá às diversas espécies de perícias. In casu, interessa abordar os exames periciais de sanidade mental aos quais se submetem os réus suspeitos de serem inimputáveis. O laudo dos psiquiatras forenses deve ser solidamente fundamentado, referindo qual a patologia mental do examinado, o tratamento a ser dispensado e o grau de sua periculosidade.

A infeliz realidade é que, no Brasil, em seus diversos Estados, existe carência na quantidade de peritos especialistas em psiquiatria forense, o que contraria a crescente demanda para a produção de exames de insanidade mental e seus respectivos laudos.

A escassez de profissionais e a falta de interesse do poder público em investir na formação destes, acaba por acarretar a paralisação de inúmeros processos judiciais que dependem de laudo pericial para seu andamento, o que compromete a eficácia da prestação jurisdicional.

A demora na realização dos exames e na confecção dos respectivos laudos, constitui ofensa explícita ao art. 150, § 1º, do Código de Processo Penal, o qual estabelece que o prazo para realização do exame de sanidade mental será de 45 (quarenta e cinco) dias, prorrogável somente em caso de necessidade devidamente fundamentada.


5. INIMPUTABILIDADE NO PROCESSO PENAL:

A inimputabilidade do agente pode ser verificada em sede de inquérito, mediante representação da autoridade policial ao juiz competente (art. 149, § 1º, CPP). No entanto, somente o juiz poderá determinar a realização de perícia para apurar a higidez mental do indiciado. O magistrado poderá agir ex ofício, ou ainda, por requisição do Ministério Público ou do curador, defensor, ascendente, descendente, irmão ou conjugue do acusado.

Se considerar que a requisição não tem razão de ser, ou constitui medida meramente protelatória ou tumultuária, poderá o juiz indeferir a realização do exame (art. 184, CPP). Para isso, devem inexistir dúvidas acerca da integridade mental do acusado, caso contrário o indeferimento constituirá cerceamento de defesa. Mas, quando existem fundadas suspeitas acerca da higidez mental do réu, o exame é obrigatório.

A realização de perícia psiquiátrica durante o inquérito policial não obedece ao princípio do contraditório. Entretanto, uma vez que o exame é realizado, deve o juiz, concomitantemente, instaurar portaria para realização do incidente, perante o juízo da futura causa. Uma vez determinado o exame no curso do inquérito, antes da sua realização, é nomeado um curador ad cautelam ao indiciado.

Findo o inquérito, caso a perícia conclua pela insanidade mental do indiciado, os autos do incidente são encaminhados em apenso ao Ministério Público, para o oferecimento da denúncia. Caso o representante do Parquet seja favorável ao laudo pericial, deverá pugnar pela absolvição imprópria do denunciado (art. 386, VI, do CPP).

Mas caso o juiz receba a denúncia ou queixa, o curador do denunciado será formalmente citado para oferecer defesa prévia e atuar nas demais fases do processo judicial.

A recente reforma no Código Processual Penal introduzia pela Lei n. 11.719/08, trouxe a possibilidade de o juiz fazer o julgamento antecipado da lide, através da absolvição sumária, nas hipóteses do art. 397 e incisos. O inciso n. II, por sua vez, exclui a inimputabilidade, dada a imprescindibilidade desta ser atestada mediante exame de corpo de delito, conforme visto, não podendo o juiz julgar a questão sem a apuração da mesma durante a instrução.

No curso regular do processo, o juiz, de ofício ou a requerimento das pessoas legitimadas, é o competente para instaurar incidente de insanidade mental, hipótese em que lhe será nomeado curador, cuja falta acarretará nulidade absoluta (art. 149, § 2º, CPP).

Uma vez instaurado o referido incidente, os autos principais ficam suspensos até o julgamento do mesmo, que dependerá da conclusão do exame pericial e do respectivo laudo. O prazo para elaboração do exame é de 45 dias, o qual poderá ser prorrogado a critério do juízo, caso os peritos demonstrem a necessidade de dilação (art. 150, § 1º). Ao acusado, é garantido o direito de oferecer quesitos.

A suspensão do processo principal, em virtude do incidente, não obsta o prosseguimento da instrução processual e não impede a produção de provas documentais, testemunhais, dentre outras. O prazo prescricional tem curso regular e não se submete a causas interruptivas ou suspensivas.

Da decisão que determina ou indefere a realização do exame de sanidade mental, não caberá recurso, o que não é sensato, posto que a natureza da matéria discutida é de ordem pública e de interesse geral. O incidente terá prosseguimento, ainda que uma das partes desista da realização do exame, posto que uma vez determinado pelo magistrado, não há como voltar atrás.

O laudo pericial que concluirá pela imputabilidade, semi-imputabilidade ou inimputabilidade do acusado, poderá ser homologado ou impugnado pelo magistrado. Na última hipótese, o juiz deve apresentar argumentos consistentes e determinar a feitura de novo exame.

No caso do laudo ser homologado, cabe ao juiz reconhecer ou não a inimputabilidade ou semi-imputabilidade do réu. Reconhecida a insanidade mental, nomeará curador ao réu (art. 151) para acompanhar o trâmite, uma vez que o acusado tem sua capacidade processual afetada e é impedido de desempenhar atos em juízo.

O incidente de insanidade mental se processa em autos apartados e somente após a apresentação do laudo, será apenso ao processo principal (art. 153, CPP).

Encerrada a instrução criminal e superadas as fases dos arts. 499 e 500 do CPP, no rito ordinário, o juiz sentencia a causa. Se reconhecer a inimputabilidade, absolve impropriamente o réu, que significa isentá-lo de pena e submetê-lo a medida de segurança em estabelecimento de custódia ou ambulatorial, de acordo com o caso.

A absolvição imprópria, ao contrário do que muitos pensam, não exime o autor de responder pelo ilícito, nem o deixa impune, uma vez que a medida de segurança é uma espécie de sanção penal, de caráter preventivo e conteúdo condenatório, cuja finalidade é afastar o agente do convívio social e submetê-lo a tratamento curativo.

Pode ocorrer da insanidade do réu ser superveniente ao cometimento do crime, o que acarretará a suspensão do processo até o restabelecimento do estado de saúde. Se restabelecida, o feito retoma o trâmite regular. Neste caso, o juiz poderá ordenar a internação do acusado em hospital de custódia. O mesmo acontece com o condenado cuja pena já está sendo executada e a quem sobreveio doença mental.

No procedimento do Tribunal do Júri, caso atestada a inimputabilidade na fase de pronúncia, o juiz deverá absolver sumariamente o réu, conforme o art. 415, IV, da Lei Processual Penal [02]. A sentença que absolve o réu sumariamente é de mérito e produz coisa julgada. O art. 416 estabelece que contra a sentença de absolvição sumária caberá apelação.

Importante observar o parágrafo único [03] do citado art. 415, introduzido pela Lei nº 11.689/2008. De acordo com ele, nos casos de inimputabilidade por doença ou retardo mental, o réu, na fase da pronúncia, não será absolvido sumariamente, salvo quando esta for alegada como única tese defensiva. Caso contrário, o juiz deverá pronunciar o acusado para que o Júri, com base nas provas, decida a questão.

Precisa é a lição de Antonio Carlos da Ponte, em Inimputabilidade e Processo Penal:

Justifica a absolvição sumária a existência de prova cristalina, límpida, segura e incontroversa da existência de causa excludente da ilicitude ou dirimente da culpabilidade. A mínima dúvida extraída do conjunto probatório a respeito da veracidade de uma ou outra versão traz a certeza de que a absolvição liminar não tem lugar no processo, sendo caso de pronúncia. (PONTE, 2007, p. 110).

De acordo com o citado autor, a inimputabilidade, per si, não justifica a absolvição sumária do acusado, pois, quando existem dúvidas acerca da autoria do delito, a questão deve ser obrigatoriamente decidida pelo Júri.

No caso do semi-imputável o juiz, independente da matéria alegada pela defesa, deverá submetê-lo ao procedimento do Júri. Esse é o entendimento dominante da jurisprudência, conforme abaixo transcrito:

Se nos crimes da competência do Júri o juiz se convencer da existência do crime e de indícios de autoria, ainda que comprovada por perícia a semi-imputabilidade do acusado, deve pronunciá-lo, eis que tal circunstância não isenta o réu de pena, apenas recomenda a sua redução" (TJSP – Rel. Des. Cerqueira Leite – RT 756/569).

Caberá ao Júri não somente julgar o semi-imputável como também, no caso de condenação, votar acerca da aplicação de pena ou medida de segurança.

Poderá ocorrer, todavia, da doença mental ser superveniente à pronúncia do acusado. A hipótese gera controvérsias jurisprudenciais a respeito de submeter ou não o réu a julgamento. O art. 152 do CPP preceitua que o processo deve ficar suspenso até que a saúde do agente se restabeleça. Mas há julgados no sentido de que o juiz não poderá excluir do Conselho de Sentença a apreciação da causa, ainda que seja irreversível a perturbação mental do acusado.

Caso seja levado a Júri, o réu acometido por doença mental posterior à pronúncia, será julgado regularmente pelos jurados, que poderão absolvê-lo ou condená-lo, sem preocupação com o atual estágio da anomalia, uma vez que o mesmo não era inimputável no momento do crime. Se condenado, no entanto, o réu deverá ser encaminhado à internação em hospital de custódia. Persistindo a anomalia, o art. 183 da LEP determina que a pena seja convertida em medida de segurança.

Importante destacar a prerrogativa do Júri de produzir prova em plenário, assegurada pelos arts. 478, parágrafo único, e 497, inciso XI, ambos do CPP. Assim como o juiz pode determinar de ofício a instauração do incidente de insanidade mental, os jurados também têm esse direito, cujo indeferimento gera nulidade. Basta um voto para justificar a realização da diligência que, caso não se realize durante a sessão, dissolver-se-á o Conselho de Sentença e nova data será designada para a realização do Júri.

Se a defesa do acusado, durante o Tribunal do Júri, alegar doença mental, sem que haja nos autos qualquer prova nesse sentido, não caberá aos jurados, nem ao juiz togado acolher a inimputabilidade do réu, sem a devida comprovação por laudo psiquiátrico. Nesta hipótese, o juiz-presidente poderá suspender o julgamento e determinar a feitura do exame competente. Caberá aos jurados decidir sobre a inimputabilidade do réu submetido a incidente de insanidade mental.

Questiona-se sobre a possibilidade do Júri discordar das conclusões do laudo pericial. Pelo princípio da soberania das decisões, o Júri não é obrigado a acatar a prova científica. Entretanto, a Lei Adjetiva Penal garante o direito do réu recorrer das decisões do Júri que forem manifestamente contrárias às provas dos autos.

Ponte (2007) refere que os jurados podem repugnar o laudo pericial, desde que disponham de outro documento médico ou de esclarecimentos complementares de outros experts. Para ele, a liberdade do Júri não pode incorrer em abuso.

Nos Juizados Especiais Criminais é possível a composição civil entre o inimputável e a vítima. Na transação penal, o inimputável ou semi-imputável poderá ser submetido a tratamento ambulatorial, medida esta que não implica em privação de liberdade. Para isso, o curador do réu e seu defensor devem aceitar a proposta do Ministério Público que, homologada pelo magistrado, será fixada como condição para a caracterização da medida despenalizadora.


6. DAS MEDIDAS DE SEGURANÇA:

No sistema atual, sanção penal é gênero do qual derivam duas espécies: as penas e as medidas de segurança que são diferentes e comuns em diversos aspectos. As primeiras são destinadas aos imputáveis e aos semi-imputáveis. O reconhecimento da culpabilidade do agente é condição sine qua non para a aplicação das penas, que têm caráter retributivo e intimidatório. Sua finalidade maior é a reinserção social do condenado, com um efeito de prevenção geral e especial. As penas são aplicadas por tempo determinado e proporcional à gravidade do delito e ao bem jurídico violado.

As medidas de segurança, por seu turno, destinam-se aos agentes inimputáveis e, excepcionalmente, aos semi-imputáveis. Visam somente à prevenção especial, por meio do tratamento curativo do agente, com vistas à recuperação da sua saúde mental. Possuem prazo de duração determinado no mínimo, qual seja de três anos, e absolutamente indeterminado no máximo, cessando somente com o desaparecimento da periculosidade do agente, que deverá ser periodicamente verificada por exame médico.

Enquanto as penas pressupõem a culpabilidade do agente para sua imposição, a periculosidade é a condição para a aplicação das medidas de segurança. São pressupostos da medida de segurança a prática de fato típico e ilícito, a periculosidade do agente e a ausência de imputabilidade plena.

Por periculosidade, entende-se como a forte inclinação do agente inimputável por doença mental de reincidir no crime. É a probabilidade de que volte a delinqüir, em razão da sua perturbação mental, que compromete o entendimento acerca do crime ou ainda a capacidade de controlar o impulso delitivo. A periculosidade é o juízo futuro que se faz acerca do agente inimputável, enquanto a culpabilidade recai somente sobre o fato típico punível praticado, no passado, pelo imputável.

Pela redação do art. 97 do CP, existem, hoje, duas espécies de medida de segurança: a internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico, ou, na falta deste, em estabelecimento adequado, para os crimes apenados com reclusão; e o tratamento ambulatorial, para os ilícitos com pena de detenção.

A primeira espécie é denominada medida de segurança detentiva, e a segunda, restritiva. A espécie a ser imposta ao réu dependerá, exclusivamente, da pena cominada ao crime por ele cometido, e não, do grau de sua periculosidade.

A execução da medida de segurança começa logo após o trânsito em julgado da sentença que a decretou. É extraída a Guia de Internamento (GI) ou de Tratamento Ambulatorial (GTA), expedidas pelo juízo competente e remetidas à autoridade administrativa responsável pela execução da sanção. A internação somente estará autorizada mediante a expedição da referida guia.

Os hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico estão previstos no art. 99 da LEP. O tratamento ambulatorial deve ser prestado no próprio hospital ou em outro estabelecimento adequado.

Quanto ao prazo de cumprimento das medidas de segurança, é indeterminado, enquanto não verificada a cessação da periculosidade do agente. Mas a sentença que decide pela absolvição imprópria do doente mental, obrigatoriamente, deverá estabelecer um prazo mínimo de duração, que poderá ser de um a três anos.

No decorrer da execução da MS, poderá o juiz, mediante requerimento do Ministério Público ou do interessado, solicitar, fundamentadamente, o exame para verificar a cessação da periculosidade, ainda que não tenha findado o prazo mínimo do cumprimento da medida. Encerrado este prazo, realiza-se o exame de cessação da periculosidade, iniciado de ofício pela autoridade administrativa. A desinternação está condicionada à cessação da periculosidade.

Se verificada a cessação, o juiz determinará, por sentença, a desinternação do custodiado ou a sua liberação condicional, no caso de tratamento ambulatorial. A liberação somente se dará após o trânsito em julgado desta sentença (art. 179 da LEP).

Se o agente desinternado ou liberado, antes do decurso de um ano, praticar fato que indique a persistência da periculosidade, será revogada a desinternação ou a liberação condicional e restabelecida a situação anterior. A lei referiu-se a fato, ao invés de crime, o que significa que um quase-crime ou um crime impossível poderá justificar a reinternação do agente. Expirado o prazo de um ano sem que o agente volte a apresentar periculosidade, a medida de segurança é considerada extinta.


7. MEDIDA DE SEGURANÇA E PRISÃO PERPÉTUA:

Um dos aspectos mais polêmicos das medidas de segurança diz respeito ao caráter indeterminado de sua duração. A questão divide os penalistas: deve o doente mental periculoso permanecer perpetuamente sob a custódia do Estado?

Juristas questionam a constitucionalidade deste instituto, uma vez que a Carta Magna, em seu art. 5º, inciso XLVII, alínea "b", veda o cumprimento de penas de caráter perpétuo.

A indeterminação do tempo de execução da medida de segurança está diretamente ligada à possibilidade de não cessação da periculosidade do réu. Como reinserir no convívio social um indivíduo periculoso que não tem previsão de ser curado?

A questão fere direitos fundamentais do doente mental infrator. A CF/88 adotou o princípio da anterioridade ou da reserva legal, o qual veda a existência de pena sem prévia cominação legal. Verifica-se que a medida de segurança, no Brasil, obedece ao princípio da anterioridade legal, uma vez que está prevista em lei. Antônio Carlos da Ponte e Francisco de Assis Toledo, afirmam, no entanto, que as MS ofendem o princípio da legalidade, em face da não determinação de tempo máximo de duração.

Virgílio de Mattos (2006) vai mais além, referindo que as medidas de segurança ferem os seguintes princípios: igualdade, pois a indeterminação de prazo de duração confere tratamento diferenciado aos imputáveis que recebem pena; e o da presunção da inocência, pois, o doente mental, ao permanecer sob a custódia do Estado por tempo indeterminado, é punido não pelas condutas que praticou, mas pela mera probabilidade de voltar a delinqüir.

Há também que se falar no princípio da humanidade. De acordo com Ferrarri (2000) nenhum cidadão pode receber sanção por tempo indeterminado, em respeito à dignidade da pessoa humana. As medidas de segurança também devem obedecer ao princípio da proporcionalidade, ou seja, proporcionais à periculosidade do agente e à gravidade do fato praticado, tal como ocorre com as penas.

Na opinião de Ponte (2007) num futuro próximo, as medidas de segurança terão as mesmas garantias das penas. Defende a adoção de tempo determinado às medidas de segurança, que deverá ser equivalente ao tempo máximo da sanção cominada, em abstrato, ao crime cometido.

O Supremo Tribunal Federal proferiu decisão no seguinte sentido:

MEDIDA DE SEGURANÇA – PROJEÇÃO NO TEMPO – LIMITE. A interpretação sistemática e teleológica dos artigos 75, 97 e 183, os dois primeiros do Código Penal e o último da Lei de Execuções Penais, deve fazer-se considerada a garantia constitucional abolidora das prisões perpétuas. A medida de segurança fica jungida ao período máximo de trinta anos. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC nº 84.219-4. Rel. Min. Marco Aurélio. São Paulo, j. 15.02.05, v.u. DJU 23.09.05, p. 16).

Desde 1995, tramita no Senado Federal projeto de reforma do Código Penal, que propõe a estipulação de prazo máximo para as medidas de segurança. A alteração parece sensata, uma vez que, ante o exposto, é latente a inconstitucionalidade das MS, no que se refere ao prazo indeterminado de cumprimento.


8. HOSPITAIS DE CUSTÓDIA NO BRASIL:

O primeiro manicômio judiciário do país foi fundado no Rio de Janeiro, em 1921. A instituição foi a segunda do tipo na América Latina, depois da Argentina. Idealizado e dirigido pelo psiquiatra brasileiro Heitor Carrilho, o estabelecimento foi reorganizado pelo Decreto nº. 5.148/27.

Em 1927, São Paulo, através da Lei nº. 2.245, instituiu manicômio judiciário, seguido pelos Estados da Bahia, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Pernambuco e Paraíba.

De acordo com Cristiano Carrilho (2004), atualmente, há dois tipos de instituição de assistência jurídico-psiquiátra no Brasil: o anexo psiquiátrico e o manicômio judiciário, cujas funções não se confundem. Os anexos, em tese, se propõem a tratar o criminoso antes do julgamento, durante a execução da pena e também depois, como vistas a prevenir a reincidência dos egressos.

O manicômio judiciário, por sua vez, segundo Carrilho, possui três finalidades básicas: atuar como um centro pericial de observação e tratamento dos internados, prestar tratamento de saúde aos criminosos inimputáveis e atuar como órgão de defesa social.

O Código Penal e a Lei de Execução Penal determinam a internação do inimputável em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico. O especial tratamento curativo é um direito do internado e uma garantia à sociedade, tendo em vista o caráter preventivo da medida de segurança.

No entanto, hoje, poucos são os estados brasileiros que dispõem deste tipo de estabelecimento ou, caso os tenha, oferecem precárias condições de funcionamento, em desacordo com a lei, constituindo verdadeiros espaços de exclusão, violência e desrespeito aos direitos humanos. São freqüentes as denúncias de maus tratos nestes estabelecimentos.

De acordo com informações divulgadas nos sítios dos Ministérios da Justiça e da Saúde [04] publicadas em sítios da internet, em 2002, apenas 19 estados brasileiros possuíam hospital de custódia. Em julho de 2007, reportagem publicada em sítio da internet [05], revelou que esse número aumentou para 29. No entanto, de acordo com a referida reportagem, dos hospitais existentes, apenas quatro dispunham de equipes de saúde para atender os internos, que chegam a quatro mil por estabelecimento.

No âmbito federal, esses hospitais, atualmente, vinculam-se aos Ministérios da Justiça e Saúde, que atuam em conjunto na gestão desses estabelecimentos. Em abril de 2002, foi publicada a Portaria 628, formulada pelos citados Ministérios que, pela primeira vez, aprovando o Plano Nacional de Saúde para o Sistema Penitenciário, reconheceram a população confinada em presídios e manicômios judiciários como uma clientela sob responsabilidade também da área da saúde.

Tornou-se consensual a compreensão de que o Sistema Único de Saúde e a rede de atenção à saúde mental devem responsabilizar-se pelo tratamento da pessoa submetida à medida de segurança.

Na atualidade, o que se vislumbra é o descumprimento explícito da lei, não somente quanto à ausência de investimento na construção de hospitais de custódia, como também, na precariedade das condições de funcionamento e carência de profissionais de saúde para atender os internos.

No Brasil, é notória a falência do sistema prisional público, com superlotação das cadeias e outros problemas. Ora, se o poder público ignora os direitos do criminoso imputável, dispensando-o tratamento sub-humano e indigno, o que dizer do infrator doente mental, cujo descaso alcança proporções cruéis e assustadoras.

A Promotora de Justiça Inês do Amaral Buschel (2004) referiu que durante anos, no Brasil, dirigentes de manicômios judiciários enriqueceram às custas dos cofres públicos, trancafiando e mantendo pessoas acometidas por transtorno mental, muitas delas apenas alcoólatras ou dependentes químicas.

Antonio Carlos da Ponte, por sua vez, em Inimputabilidade e Processo Penal, referiu:

Não se alegue que os hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico não se confundem com os presídios. A realidade tem mostrado que as diferenças se situam apenas no campo teórico. A chance de uma pessoa que acuse perturbação da saúde mental recuperar-se em um desses estabelecimentos é nula. (PONTE, 2007, p. 78).

Em virtude das atrocidades e irregularidades cometidas nos chamados manicômios judiciários, setores da sociedade vêm se mobilizando num movimento anti-manicomial. Em 2001, a Lei Federal nº. 10. 216, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais, representou um passo nesse sentido.

Mas a referida lei, de apenas treze artigos, limitou-se em versar sobre a política pública para a saúde mental, silenciando quanto aos internados nos manicômios judiciários. Quanto aos hospitais de custódia, o art. 12 da lei, apenas prevê a criação de comissão de saúde para acompanhar a implementação dos mesmos e mais nada. Inês do Amaral (2004-p. 96) alerta para a necessidade de aprimoramento desta lei, referindo que "a saúde mental pede passagem".

Alguns defendem que o especial tratamento curativo dispensado ao louco infrator deve ser incumbido à saúde pública, e não, à Justiça Penal. É o caso de Maximiliano Führer (2000-p. 126-127), quando refere que "a esperança reside no desenvolvimento adequado de uma verdadeira doutrina de Saúde Pública, que poderá retirar do Direito Penal este fardo estranho a seus fundamentos. A doença aos médicos, o crime ao promotor".

Já existem, embora raras, experiências interinstitucionais bem sucedidas no sentido de tratar o doente mental criminoso fora do manicômio judiciário, e sim, na rede SUS extra-hospitalar de atenção à saúde mental, especialmente nos Centros de Atenção Psicossocial.

O que é inadmissível, dada à situação de ilegalidade, é permitir que em virtude da ausência de hospitais de custódia ou de vaga nestes estabelecimentos, o doente mental aguarde preso e cumpra medida de segurança nas cadeias públicas.

Existem julgados que afirmam tratar-se de situação anômala, mas que deve ser tolerada em benefício da coletividade, desde que sejam tomadas as providências para que cesse o quanto antes.

Perdurando a situação além do tempo razoável e tolerável, constitui-se constrangimento ilegal, pois não se pode manter preso quem foi absolvido impropriamente pelo Estado.

Führer (2000-p. 180) afirmou que o "tempo desta prisão ilegal enseja reparação de danos, pois a falha no funcionamento do aparelho estatal não é causa excludente da responsabilidade civil do Estado".

Infelizmente, é comum hoje as cadeias públicas brasileiras criarem alas destinadas aos inimputáveis, onde os loucos não recebem o tratamento adequado e previsto em lei.

A Lei de Execução Penal, em seu capítulo VI, nos artigos 99 a 101, trata dos hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico, dispondo que devem obedecer determinados requisitos estruturais, dispostos no parágrafo único do art. 88, tais como: unidade celular com salubridade do ambiente pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana; e área mínima de seis metros quadrados.


9. INIMPUTABILIDADE E IMPUNIDADE:

Atualmente, milhares de indivíduos portadores de psicopatologias crônicas e incuráveis, com alto grau de periculosidade, ao arrepio da lei, se encontram amontoados nas penitenciárias brasileiras, condenados ao cumprimento de pena, ao invés de medida de segurança. Convivem com sentenciados imputáveis e lá permanecem sem qualquer tratamento psiquiátrico.

Percebe-se que setores variados da sociedade, principalmente autoridades públicas e judiciárias, possuem entendimento deturpado e até discriminatório acerca da inimputabilidade do doente mental, acreditando tratar-se de mais uma forma de impunidade.

Todavia, a não aplicação da lei ao caso concreto e o descaso das autoridades competentes com relação à inimputabilidade penal do doente mental, pode gerar reflexos desastrosos na sociedade.

Na prática, o Estado por razões discriminatórias e em decorrência da ausência e/ou precariedade dos hospitais de custódia no Brasil, prefere condenar o doente mental e aplicar-lhe pena. E, visando fugir de suas obrigações legais e sociais, incute na sociedade a idéia de que a inimputabilidade penal do doente mental é uma forma de impunidade, através da qual o criminoso procura esquivar-se de pagar pelo crime que cometeu.

O assunto é polêmico, uma vez que, conforme visto, os crimes cometidos por doentes mentais, em sua grande maioria, são dotados de alto grau de violência e crueldade, e geram revolta e indignação na sociedade que, por sua vez, cobra das autoridades judiciárias a punição devida aos agentes desses ilícitos. O Estado, em contrapartida, tem se posicionado no sentido de ignorar a doença mental do agente, preferindo apenas puni-lo.

Acerca do assunto, Genival Veloso de França (1998), em Medicina Legal, referiu:

O julgador não pode ser apenas um frio executor de decisões contra atividades anti-sociais, prendendo infratores da lei. Julgar um homem sem conhecê-lo, é uma forma indisfarçável de charlatanismo jurídico, simplesmente porque cada delinqüente é tão diferente dos outros, como desiguais e complicadas são as suas próprias infrações. Mais importante do que os homens conhecerem a Justiça, é a Justiça conhecer o homem.

(p. 397).

A questão é que, ao condenar inimputáveis, ao invés de aplicar-lhes medida de segurança, o Estado provoca situação temerária no seio social.

Após o cumprimento de suas penas, ou, ao serem beneficiados com a progressão de regime ou livramento condicional, a tendência é que tais indivíduos retornem à sociedade, ainda mais doentes e periculosos do que antes, ao passo que, se fossem internados nos hospitais de custódia, conforme determina a lei, estariam recebendo o tratamento psiquiátrico necessário para sua futura reintegração, ou, em último caso, permaneceriam sob tratamento por tempo indeterminado, caso não fosse constatada a possibilidade de cura.

A situação demonstra clara ocorrência de insegurança jurídica, na medida que, em curto espaço de tempo, esses indivíduos estarão gozando de liberdade, sendo grande a probabilidade de reincidência.


CONCLUSÃO

Este trabalho procurou discorrer acerca da inimputabilidade por doença mental, buscando evidenciar a situação de ilegalidade, omissão e descaso do Poder Público com relação ao doente mental infrator, tanto no que diz respeito à efetiva aplicação da regra do art. 26 do Código Penal ao caso concreto, como da estrutura que deveria ser criada para a execução das medidas de segurança.

Verificou-se que o Código Penal, ao tratar da inimputabilidade por insanidade mental, não estabeleceu um conceito jurídico do que seja doença mental, nem definiu estado de perturbação mental, constante no parágrafo único do citado artigo. Esses dispositivos deveriam trazer enumeração taxativa, pois, ao serem interpretados pelos operadores do Direito, deixam dúvidas na hora de definir se o réu é inimputável ou semi-imputável.

Outra questão levantada no trabalho refere-se à constitucionalidade das medidas de segurança em nosso ordenamento jurídico. Verificou-se que a indeterminação legal de prazo máximo de cumprimento, ofende a diversos princípios e garantias constitucionais, como a legalidade, igualdade, proporcionalidade e dignidade da pessoa humana. A medida de segurança, no Brasil, assumiu caráter de prisão perpétua, o que é inconstitucional.

Com relação aos estabelecimentos destinados ao especial tratamento curativo do inimputável, cuja existência é exigida em lei, verificou-se que poucos são os estados brasileiros que dispõem de hospital de custódia e tratamento psiquiátrico. E os poucos que existem, não estão adequadamente estruturados para atender os inimputáveis por doença mental, de forma digna e curativa.

Quanto ao tratamento dispensado pelas autoridades judiciárias aos inimputáveis por doença mental, no Brasil, firmou-se o entendimento equivocado de que medida de segurança é sinônimo de impunidade, enquanto que, na verdade, esta, ao lado da pena, constitui uma espécie de sanção penal, de finalidade diversa. Ao estudar as diversas anomalias mentais, concluiu-se que não seria justo aplicar ao doente mental infrator o mesmo tratamento dispensado ao indivíduo imputável.

Inúmeros são os casos envolvendo indivíduos portadores de psicopatologias crônicas e incuráveis, com alto grau de periculosidade, que são condenados à pena privativa de liberdade. E, após o cumprimento de suas penas, retornam à sociedade ainda mais doentes e periculosos do que antes, sendo grande a possibilidade de reincidirem no crime.

É preciso que o Estado repense o atual tratamento dispensado ao doente mental infrator, para garantir a correta aplicação da lei, com vistas à segurança e à paz social.


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NOTAS

  1. CP, Art. 26: "É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento".
  2. CPP - Art. 415. "O juiz, fundamentadamente, absolverá desde logo o acusado, quando": (Redação dada pela Lei nº 11.689, de 2008):
  3. IV – "demonstrada causa de isenção de pena ou de exclusão do crime";
  4. CPP – Art. 415 - Parágrafo único. "Não se aplica o disposto no inciso IV do caput deste artigo ao caso de inimputabilidade prevista no caput do art. 26 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, salvo quando esta for a única tese defensiva". (Incluído pela Lei nº 11.689, de 2008).
  5. Disponível em: < http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/Rel_Sem_Reo_Hosp_Custodia.pdf>. Acesso em: 22.09.2008.
  6. Disponível em: <http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2007/07/07/materia.2007-07-07.9004844454/view>. Acesso em 22.09.2008.

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MALCHER, Farah de Sousa. A questão da inimputabilidade por doença mental e a aplicação das medidas de segurança no ordenamento jurídico atual. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2104, 5 abr. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12564. Acesso em: 19 mar. 2024.